José de Guimarães e o Oriente: arqueologia de uma paixão

Para assinalar o seu décimo aniversário, o Museu do Oriente, em Lisboa, convidou o artista plástico José de Guimarães a expor peças da sua autoria em diálogo com obras de arte orientais da sua coleção pessoal e peças do museu. O resultado é uma viagem entre diferentes mundos: desde jades chineses de há cinco mil…

Um feliz acaso», chama-lhe Sofia Campos Lopes, curadora da coleção Kwok On. Hoje com 13 mil artefactos ligados às artes performativas do Oriente – e continua a crescer! -, a coleção tem origem no encontro em Hong Kong entre um chinês apaixonado pelo teatro e o professor francês Jacques Pimpaneau, que lecionava naquele território. Em 1971, quando se aproximava a sua morte, Kwok On (assim se chamava o chinês) decidiu fazer de Pimpaneau o legatário de cerca de 600 objetos que reunira ao longo da vida – máscaras, instrumentos musicais, trajes, fantoches e outros artefactos diversos.

O conjunto de objetos acabaria por rumar à França, onde teve uma vida atribulada, passando por vários espaços até ao encerramento definitivo, em 1994, do museu na Rue du Thèatre. Mas há males que vêm por bem, e cinco anos depois a coleção era doada à Fundação Oriente, instalando-se em Lisboa.

Para assinalar os 30 anos da Fundação e os dez anos do Museu do Oriente, a instituição sediada em Lisboa convidou José de Guimarães para mostrar as suas obras em diálogo com peças da coleção Kwok On, numa exposição que harmoniza objetos de há cinco mil anos com «coisas que não foram feitas ontem, mas quase».

A exposição chama-se ‘Um Museu do Outro Mundo’ e estará patente até 3 de junho. «Esta ideia de museu do outro mundo cruza vários significados», explica Nuno Faria, curador e diretor do Centro José de Guimarães. Pode referir-se ao «mundo extraterreno» ou a um «mundo longínquo, exótico, distante de nós».

José de Guimarães é, de certo modo, ‘especialista noutros mundos’, um trajeto que iniciou há 50 anos (1968), quando foi para África como jovem oficial do exército, no contexto da Guerra Colonial. O interesse pelo outro, por outras culturas «desperta quando José de Guimarães esteve em Luanda», continua Nuno Faria, «e conhece os três mais importantes etnólogos a trabalhar em Luanda – José Redinha, Mesquitela Lima e o Padre Carlos Estermann».

«Estas coisas têm-me sempre acontecido por acaso», recorda o artista. «Fui para África por acaso, estive lá sete anos, comecei a gostar da cultura africana, e foi quando regressei à Europa que comecei a comprar coisas. Em África não tinha comprado nada». A sua coleção de arte africana tem atualmente cerca de cinco mil peças.

«Depois, por outras razões, fui parar ao México, que foi a maior descoberta que fiz, e continua a influenciar a minha obra».

Já no início da década de 90 José de Guimarães seria convidado «para fazer papagaios de papel no Japão e em simultâneo para expor numa galeria em Tóquio». Desde então tem ido com regularidade ao Japão – «duas ou três vezes por ano» – país onde há várias obras de arte públicas de sua autoria.

Caixas, caixotes e caixões

No Museu do Oriente, além de trabalhos seus e de peças da coleção Kwok On, José de Guimarães mostra alguns dos objetos de arte que tem adquirido ao longo dos anos. «Quando estive no México achei tão fascinante que procurei perceber o que era aquilo. O melhor nestas situações é ir às raízes», explica o artista. «E as raízes estão na arqueologia. Quando queremos saber como é que o México começou, como é que os Aztecas e os Maias funcionaram, os processos da sua vida, é na arqueologia. Com a China é a mesma coisa. Isso faz-me contactar com os artefactos e sempre que posso fico com eles».

Muito do que aqui vemos foi adquirido em «lojas, negócios em Macau, coisas a que se chamava ‘tin-tins’, e que já não existem». «Cometi vários erros no princípio», confidencia o artista e colecionador. «Estou convencido de que comprei vários falsos, mas fui aprendendo. Tenho documentação e sobretudo já não compro a desconhecidos, procuro comprar a pessoas sérias».

Entre as peças adquiridas encontram-se objetos de jade. «São objetos funerários, que acompanhavam o morto na sua viagem além-terrestre, diz Nuno Faria.

«Os proprietários destas peças usaram-nas em vida e depois as peças acompanham-nos na morte», sublinha José de Guimarães. «Se conseguimos hoje arranjar peças com cinco mil anos é porque estiveram enterradas esse tempo todo e a terra as protegeu. O uso dessas peças em vida dá poder à pessoa, o jade era mais precioso para eles do que o ouro». 

Nuno Faria continua: «Acreditava-se que o jade tinha propriedades medicinais. Segundo certas crenças, conservava o corpo». Por isso, «havia imperadores que comiam jade moído, pensando que aquilo lhes dava a eternidade», nota José de Guimarães. «Assim como mercúrio». Faria comenta com ironia: «Trazia-lhes a eternidade mais cedo…».

A antiguidade de alguns destes objetos em jade contrasta de forma flagrante com os expositores marcadamente contemporâneos, da autoria do artista. «Utilizámos a figura da caixa-relicário, uma caixa que contém objetos com fins propiciatórios e que vem, julgo eu, da origem da própria infância do José de Guimarães, da sua cidade de Guimarães, em que o relicário era uma presença muito marcante», comenta o curador.

Para o artista, «não tinha lógica expor estas peças como se estivesse num museu convencional onde as coisas são mostradas dentro de uma gaiola de vidro». Faria sublinha também «a importância da caixa, algures a meio caminho entre a arquitetura, o dispositivo de apresentação e até a própria escultura» na obra de José de Guimarães.

Um quarto ‘à oriental’

As caixas podem, pois, ser expositores ou relicários, mas também evocam casas de bonecas, favelas, caixões ou caixotes de transporte de bagagem, como os que o artista viu acumulados no porto de Luanda quando esteve a cumprir serviço militar em Angola. Ou ainda armários, como no caso da peça Garde-robe, que exprime «o conceito da favela, onde as pessoas vivem em pequenas caixas que se sobrepõem e dão pequenos amontoados», refere o artista. «Isto na sua dimensão é tipicamente um quarto à oriental, uma pequena coisa onde tudo se acumula, fecham-se as portas e fica transformado numa caixa».

Em diálogo com esta peça encontra-se um casal de divindades indianas – Shiva e Kali. «Podiam ter saído do Garde-robe», comenta José de Guimarães.

«Ela é a consorte do Shiva», explica Sofia Campos Lopes . «O Shiva transformou-se em demónio e ela também se transforma neste demónio-mulher. Acaba por cortar uma série de cabeças e a partir delas faz um colar» que ostenta ao pescoço. Normalmente as peças deste tipo, esclarece a curadora, «são levadas em procissão e afundadas no Ganges». A que se vê no Museu foi, pois, salva das águas. E bem merece.

O fim da viagem

A exposição ‘Um Museu do Outro Mundo’ foi concebida «como uma espécie de urbe que está algures entre o bairro tradicional de arquitetura mais precária e a própria construção tumular», refere Nuno Faria. Por isso, «a primeira sala, negra e escura, é construída numa sucessão de espaços oblíquos e intricados», explica o arquiteto Pedro Campos Costa. «A sua forma é labiríntica, como se fosse uma sucessão de espaços urbanos, ecléticos, diversos e inesperados. O peso e a energia das obras de José de Guimarães permitem essa evocação de construções contemporâneas orientais, ou de espaços urbanos onde se encontram o profano e o sagrado», refere ainda o arquiteto da exposição. 

Se o início do trajeto é escuro como um túmulo, a última sala ofusca-nos com uma explosão cósmica de luz e de cor, ao ponto de o visitante quase ficar atordoado. «Isto é o fim da viagem, onde há uma desmaterialização muito grande, há uma espécie de contaminação e sobreposições entre a obra de José de Guimarães e as peças do museu, muitas vezes é difícil perceber o que é o quê». A multidão de peças, multiplicadas pelo reflexo dos espelhos, faz também pensar numa praça algures na Índia, onde pessoas, divindades e animais convivem numa barafunda saudável. Seja «um mundo que se prolonga pela eternidade», como refere o arquiteto Pedro Campos Costa, ou um qualquer lugar sobrepovoado da Índia, uma coisa é certa: este ‘Museu do Outro Mundo’ transportou-nos para muito longe.  J