Se hoje, como Slavoj Zizek notou, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, nenhuma loja parece tão capacitada para integrar dentro de si todas as evoluções e transformações que fazem do capitalismo uma malha tão difícil de romper. A Fnac soprou as 20 velas e, nesse tempo, a sua entrada no país teve um impacto sem igual em diversos “ecossistemas” culturais, acelerando a extinção de lojas que subsistiam no limiar da rentabilidade, resistindo tanto quanto possível ao progresso que hoje já nos vai merecendo algumas suspeitas. Seja como for, é inegável que a Fnac, ao elevar a linha de água, ao fazer naufragar algumas livrarias e papelarias que viviam do atraso do país, promoveu um nível de qualidade e descentralização num país fortemente marcado pelas suas assimetrias. Para falar desta evolução e dos desafios do futuro para esta cadeia que tem hoje 29 lojas espalhadas pelo país – preparando-se para abrir mais duas -, fomos falar com a diretora de comunicação da Fnac Portugal, Inês Condeço.
Quais foram as linhas que quiseram destacar para fazer sentir estes 20 anos da Fnac em Portugal?
A Fnac já fez praticamente de tudo. Na comemoração dos dez anos fizemos um concerto no Meo Arena gratuito, com grandes nomes da música. Desta vez, a pergunta foi o que podemos fazer mais e de diferente para mostrar que esta é uma empresa diferente, é uma instituição cultural. Estivemos aqui às voltas e o que percebemos é que o que está no ADN da Fnac é levar a cultura todos os dias para junto das pessoas.
Isso não acontece com as outras lojas que vendem os mesmos artigos?
Não há muitas lojas onde se entra e esteja a acontecer um concerto ou se possa ter uma conversa com um autor sobre o livro que acabou de lançar… Temos sete mil eventos por ano. É uma coisa incrível, e eu própria não tinha noção de que chegava a tanto. Para assinalar o modo como a Fnac consegue criar esse momento cultural todos os dias e influir na rotina das pessoas, tivemos a ideia de fazer 20 concertos-surpresa nos sítios onde as pessoas passariam na sua vida normal – mercados, aeroportos, estações de comboio, universidades, shoppings.
Em que medida é que a Fnac Portugal tem autonomia da Fnac francesa e da rede espalhada pelo mundo?
É uma autonomia quase total. Somos uma multinacional, obviamente temos regras a cumprir mas, do ponto de vista do formato das lojas, da escolha do produto, dos eventos, da relação com os parceiros, da inovação tecnológica, nisso somos relativamente autónomos. Mesmo a nível de comunicação, onde as regras habitualmente são mais restritas. Até somos benchmark para França. Portanto, há algum intercâmbio de experiências, e muitas vezes é Portugal que leva as ideias e a inovação para a casa-mãe.
Pode dar-me alguns dados biográficos seus?
Tenho 40 – por pouco mais tempo, mas ainda tenho. Trabalhei na PT alguns anos e estou há dois anos aqui na Fnac. Estive na área internacional, na área da comunicação, no marketing, desenvolvimento de negócio… Fiz várias coisas na PT. Mas isto foi uma descoberta também para mim. A Fnac chega a ser subtil na forma como faz as coisas, e uma das coisas de que senti necessidade foi de levar a que as pessoas pudessem perceber o esforço que está por trás do nosso programa de atividades.
O que não vê o cliente quando olha para a vossa agenda?
Nós temos uma equipa grande de comunicação espalhada pelas lojas todas, a fazer uma programação cultural, a relacionar–se com as comunidades, a apostar nos artistas locais, e ninguém tem essa noção de um ponto de vista agregado. Há, no entanto, uma consciência difusa disto, e por isso é que a marca é uma love brand. Por isso é que é tão valorizada pelas pessoas, mas não se tem noção da dimensão deste esforço. Quando se fala em sete mil eventos, é difícil até imaginar. Só para ter uma noção, há quatro showcases por dia, dois lançamentos por dia…
Têm uma equipa no terreno em busca de talentos?
São os próprios artistas que nos escolhem para divulgarem os seus trabalhos porque sabem que é aqui que conseguem ter a audiência que valoriza a cultura. Há aqui uma simbiose fantástica e que eu, tendo chegado há pouco tempo, quis valorizar junto dos outros.
Gostava de perguntar-lhe como foi, tendo deixado a PT…
Não vamos falar da PT… (risos) Por favor.
Queria saber que diferenças vê entre uma e outra?
São muito diferentes. Aquela é uma empresa de tecnologia, que define as suas estratégias a médio/longo prazo, esta é uma empresa de comércio. Todos os dias temos de abrir a porta e… show business! Aqui temos de ter as pessoas empenhadas, informadas sobre os produtos, é uma dinâmica muito mais constante. O que interessa é que esta é uma marca com uma elasticidade gigantesca e que toca todos os universos que interessam de algum modo a toda a gente. É o universo das paixões.
E a PT?
A área das telecomunicações já é menos apaixonante. E no início, quando lá cheguei, vendíamos impulsos telefónicos… entretanto, a coisa melhorou, com os conteúdos. Mas aqui cobrimos todo o espetro. Uma das coisas que a Fnac tem é o programa Novos Talentos, que tem já algum sucesso, remontando a 2007, particularmente visível no que respeita aos novos talentos na música. Já saíram dali nomes como Deolinda, Samuel Úria, Richie Campbell, Capitão Fausto, Frankie Chavez…
Editaram pela primeira vez nos Novos Talentos?
Sim. O que nós temos é um júri, o Henrique Amaro, que trabalha na Antena 3, e que nos ajuda a selecionar os novos talentos, e é um programa de tanto sucesso que eles depois acabam por ter uma carreira, e a primeira música que editaram foi connosco.
Conseguiram replicar algum desse sucesso noutras áreas?
A fotografia também é uma história de sucesso. Não existe este fenómeno de os fotógrafos se tornarem estrelas porque isso não acontece tanto na fotografia, mas também ocorre um percurso semelhante. Este ano tivemos um recorde de candidaturas, com mais de 300 em papel. Ou seja, as pessoas imprimiram as suas fotografias, fizeram um book e enviaram para cá – isto nos nossos dias, em que toda a gente quer concorrer com uma frase, ou tagando alguém no Facebook, sendo esse o máximo de esforço a que se dispõem para participar nalgum passatempo. Isto é uma coisa diferente. As pessoas valorizam, dão-lhe relevância, e não há melhor prova de que o programa está vivo.
E nas outras áreas?
Este ano acrescentámos mais duas categorias. A escrita, que já tinha existido há uns anos e que quisemos recuperar. A lógica, agora, é um pouco diferente. Antes, o âmbito era geral, a literatura. Agora focamo-nos em temas porque sentimos que, de outra forma, o livro acabava por não ficar balizado num certo contexto. Quem comprava o livro acabava por não ter ali nenhum fio condutor. Entretanto decidimo-nos pelo tema da reinterpretação de grandes clássicos, e o que queremos é trabalhar no talento da escrita, mais até do que em ter histórias originais, que tenderiam a ficar um pouco dispersas e a não criar uma obra.
Com quem contaram para relançar esta categoria?
Lançámos esta iniciativa há cerca de um mês, e tivemos a Dulce Maria Cardoso, o Pedro Mexia, a Isabel Ducla Soares, o João Tordo… são os membros do júri dos Novos Talentos de escrita. Temos também o de cinema, que lançámos este ano. O que pensámos foi: isto é um programa-bandeira, que já tem imenso sucesso, mas está a trabalhar só duas áreas, a fotografia e a música. Queríamos dar relevo a outras dimensões. No cinema fizemos uma parceria com a Lusófona e com a Academia de Cinema. O presidente da academia é membro do júri também, juntamente com o João Canijo, realizador, o Paulo Trancoso, também da academia, e o Paulo Viveiros, da Lusófona. Não somos nós o júri.
E não é pernicioso ter esta megaestrutura comercial a mapear o campo cultural?
Desenvolvemos este trabalho, mas pretendemos que haja alguma isenção e prestígio associado ao programa. Acho que, assim, esta iniciativa vai ganhar outra profundidade que não tinha por estarmos limitados a duas categorias. Em maio, faremos a gala Novos Talentos, e então iremos dar a conhecer quem são estes novos talentos, o que nos permite também dar-lhes alguma projeção. No fim de contas, isso é o que importa. É aí que mais podemos ajudar: dando visibilidade a estas pessoas que, muitas vezes, não têm uma oportunidade para se tornarem conhecidos ou para sequer terem contacto com este tipo de pessoas.
E isso é fundamental porque…?
Porque uma das coisas que fazemos questão de promover com esta iniciativa é uma fase de aprendizagem com os membros do júri, através de workshops – isto para melhorar a escrita, para melhorar o conto ou o filme. Para nós, isso é decisivo. Não chega dar visibilidade e editar a obra, mas também criar relações com estas pessoas que depois podem ajudá-las mais à frente, ao desenvolverem o seu trabalho.
Nestes 20 anos, que tipo de público/cliente julgam ter criado?
Há pouco tempo fizemos um estudo de mercado e o curioso é que as pessoas que têm mais afinidade com a marca são as mais jovens – de 15 a 24 anos -, o que é interessante. Pensando que se trata de uma loja que tem já duas décadas, poderia ser preterida face a outras marcas mais recentes. Se calhar, até a nossa geração, que cresceu com esta marca, pudesse ter mais afinidade mas, efetivamente, os mais novos são aqueles que sentem a Fnac como um destino, como a sua terceira casa.
Uma das noções a que estamos sempre a voltar é a de cultura. Nos últimos anos, a ideia de cultura parece estar a diluir-se. Não se percebe muito bem onde é que esta se distingue de entretenimento.
A cultura não é uma coisa estanque. Os graffiti, hoje em dia, também são tidos como uma forma de expressão cultural, cultura urbana. Se calhar, há 20 anos não estaria abrangida. Temos de estar abertos às várias manifestações culturais e nós seremos sempre os primeiros a dar palco a essas aberturas, ainda que não assumam de imediato grande relevância social, mas sejam representativas apenas de um nicho – ou seja, não propriamente importantes do ponto de vista do mass market.
Quer dar algum exemplo dessas vossas iniciativas?
A poesia, por exemplo. A poesia tem passado tempos difíceis. As pessoas já não leem livros de poesia como liam antigamente. E está a surgir um novo movimento que é a leitura de poesia em bares. Foi em Londres que isto começou. O que fazem é juntar-se nos bares, promovendo aquilo a que eles chamam slam poetry, que é o jazz da poesia. Cada um vem e lê, interpreta o seu poema.
E como lhe pareceu que a Fnac poderia relacionar-se com esse fenómeno?
Quando me dei conta de que isto estava a acontecer, uma das coisas que quisemos perceber é se havia já, aqui em Portugal, alguém que o estivesse a fazer. De facto, havia. Estavam a fazê-lo de forma algo subterrânea, timidamente, e o que nós nos propusemos foi fazer uma parceria com eles para irem às nossas lojas fazer as suas sessões de slam poetry – portanto, tentar de alguma forma democratizar aquilo que começa a ser uma tendência. Agora, saber se vai ser um fenómeno com apelo de massas, uma forma de cultura para todos, não sei. Mas que para nós são relevantes estas pequenas manifestações, são. Apesar de serem de nicho, queremos dar-lhes palco e queremos que elas tenham expressão. Porque acho que é isso que define o nosso ADN.
Parece-lhe que a Fnac está conotada com a cultura das margens?
Obviamente iremos continuar a apostar na música popular, nos lançamentos de livros de youtubers nas nossas lojas, que sabemos que enchem e arrastam multidões… Esses são os eventos mais virados para as massas. Mas isso não quer dizer que vamos deixar de ter conversas e debates que, por vezes, não têm mais de dez pessoas na audiência – conversas sobre um tema muito específico, uma discussão sobre a forma como determinado tipo de arte irá evoluir ao longo dos anos. Nos nossos fóruns, o tipo de programação é muitíssimo abrangente. Tanto temos clássica e jazz, coisas um pouco mais elitistas, como nos voltamos para outros lados, para a cultura urbana, cultura pop… Não há bem uma regra. Vamos experimentando, promovemos a experimentação, esses testes, coisas novas, e não nos encerramos num buraquinho.
E qual tem sido a evolução dos últimos anos?
Tentamos estar sempre ligados à literatura, à música, ao cinema… Temos também coisas mais tecnológicas, na área da fotografia, fazemos alguns workshops de fotografia e de ilustração, de coding… Já temos na nossa programação cultural coisas que podem não ter necessariamente que ver com cultura, mas, hoje em dia, a cultura e a tecnologia também estão muito ligadas. Os próprios artistas já usam a tecnologia como âncora das suas criações. Portanto, trabalhamos essas áreas mais ou menos adjacentes à cultura. Não temos um agenda fechada. Também não temos as restrições de um museu, que segue uma linha editorial.
Sendo a Fnac uma grande cadeia de lojas, gostava de saber em que aspeto é que a promoção da cultura não se confunde com a lógica comercial?
Nem todos os eventos vendem. As coisas mudaram muito nestes últimos anos. Promover showcases e vender CD’s já não é uma equação simples. Muitas vezes, as pessoas aparecem só para fazer uma selfie com o artista. Independentemente de vendermos ou não, continuamos a apostar nestes modelos. Aliás, acho que nem medimos o lucro que se faz ao promover estes eventos, e isso é sinal do quão pouco estamos focados em garantir que um evento produza vendas de forma direta. Não é de todo esse o nosso objeto primordial na promoção de eventos. O objetivo é criar experiência na loja, criar proximidade, diferenciarmo-nos do que os outros fazem. Esse é o primeiro objetivo.
A diversidade e o lucro não se opõem?
Diria que outra forma como garantimos a diversidade é através da diferenciação na gama de produtos que oferecemos. Se comparar com os hipermercados, que agora levam uma grande fatia do mercado dos livros, o que vendem são as novidades. Vendem bestsellers. Não é essa a nossa missão. Obviamente, damos espaço às novidades – não podia ser de outra maneira, também não somos um alfarrabista… (risos) Estamos no meio das duas coisas.
Não estão cada vez mais próximos dos supermercados?
Tentamos garantir o acesso a uma gama alargada, temos cerca de 600 mil livros no nosso catálogo, além dos livros que estão em loja, que são cerca de 60 mil no Colombo, por exemplo. Depois, ainda consegue aceder a um catálogo dez vezes superior online, livros que no dia seguinte estão disponíveis na loja.
Dos primeiros anos, muitos recordam como a loja do Chiado entrou em força na área dos livros, dando mais espaço aos géneros minoritários do que a maioria das livrarias independentes. Mas se entrou como um Golias, esmagando a concorrência, depois tem vindo a encolher, a enfraquecer, até estar hoje ao nível de qualquer anão.
Muita gente talvez pense que, na sua origem, a Fnac está ligada aos discos e aos livros, mas na sua génese está a fotografia. Isto há 56 anos. Obviamente, a imagem que a maioria das pessoas tem desta loja está relacionada com os anos do início da sua atividade já cá em Portugal e pela forma como então ela veio democratizar a cultura. Lembro-me de ir às discotecas e os CD vendiam-se por quatro contos. Depois chegávamos à Fnac e eles vendiam-se a 1999 escudos, o nosso preço verde. E o que aconteceu foi que isso tornou a cultura muito acessível, não só pelo preço, mas também pela gama. Este balanço da tecnologia, dos gadgets e da inovação, para a Fnac, é mais ou menos orgânico. Não há propriamente um desinvestimento nos livros aumentando na tecnologia, é antes um balanço que é natural na gestão dos ecossistemas.
E a redução que tem ocorrido em algumas áreas?
Evidentemente, acompanha a generalização do uso de portáteis e outros periféricos… E pode ter levado a algum decréscimo de outras áreas, mas a verdade é que o mercado dos livros está muito estável, não decresce. Nós temos reservada aos livros a mesma área que tínhamos antes. A área que tem sofrido mais é a da música, porque se reformulou completamente a forma como ouvimos música.
Se as vendas dos livros estão a aumentar, são alguns títulos que vendem massivamente, ao passo que tudo o resto vem perdendo expressão. Esta ideia de ir atrás do que mais vende não pode ser fatal quando for tarde para impor outras coisas…? Porque, às tantas, também já os romances não vendem.
Sim, é verdade. Hoje em dia, olhando para o top de vendas, a autoajuda divide o pódio com os livros das celebridades, de receitas, dos youtubers…
Então e se o público agora já não quer romances, vamos também esquecer este género? No fundo, qual é o fim da linha? Quais são os vossos bastiões do ponto de vista cultural?
Por acaso tenho uma ideia diferente daquilo que vai ser o futuro. Obviamente, sempre haverá grandes fenómenos, aquelas coisas de que as pessoas, num momento, não se conseguem cansar e a que, no momento seguinte, viram as costas. Isso está a acontecer a nível mundial. Os fenómenos já deixaram de ser locais e estão a tornar-se globais. Mas o que antevejo para o futuro é que ninguém irá ter a mesma bibliografia da pessoa do lado. E isto seja no que toca a livros como no que respeita ao cinema e às séries. Como a oferta é tanta, é mundial, tenho a sensação que o que se segue será uma era da personalização mais do que da massificação. Parece-me que se estão a desenhar duas dicotomias. Teremos estes fenómenos de massa, em que vamos ter de estar presentes, vendendo livros, CD’s ou séries, e depois vai haver uma longtail gigante.