Quem por cá chega aponta, quase sem exceção, um grupo de características aos portugueses: que somos afáveis, disponíveis para ajudar, saudosistas. E dizem que Lisboa é linda, solar, ainda autêntica, castiça e cosmopolita, o Porto idem, que a comida é soberba – alguns queixam-se de alho a mais. Já aqueles traços mais recônditos, por carecerem da natural convivência do dia a dia, demoram mais a apanhar. Que retrato traçaram, ao longo dos tempos, os forasteiros que cruzaram as fronteiras em busca de uma estada mais prolongada ou até definitiva?
Fomos à procurar dessas impressões, vindas de um tempo que junto à Sé de Lisboa, havia corvos livres e quase domésticos – eram alimentados à mão todos os dias, com carne; em que os macacos e outros bichos mais exóticos eram animais de estimação. Um país pejado de senhores e escravos, mendigos, muitas armas, em que a liteira era preferida à carruagem dadas as estreitas ruas, que tanto são descritas como airosas como sujas e escuras e em que os palacetes e casebres convivem lado a lado. As considerações climáticas – um clima que tão depressa pedia sobrecasacas como o sol se tornava rapidamente impiedoso – é outra constante destes cadernos.
Ler estas opiniões é um exercício interessante, curioso e, muitas vezes, inesperado. Se uns caíram redondos de amor pelo clima e pelas gentes, para outros o desdém lê-se em qualquer frase. Por exemplo o pregador francês François de Tours no seu “Itinerário de Portugal, 1699”, que esteve meio ano em Lisboa, não ficou com a melhor das impressões. “Pelo que respeita à nação portuguesa é ela composta de gente orgulhosa e pérfida que não hesita em matar. Nos curtos seis meses que fiquei em Lisboa poucos dias houve sem a morte de um homem. Não sai o lisbonense à rua sem espada, adaga, punhal e longa capa negra”. Aos seus textos, publicados numa compilação de quatro testemunhos [Portugal nos séculos XVll e XVIII, ed. Lisóptima], juntam-se no mesmo livrinho os de Charles Dellon, que antes dele, em 1676, tinha estado em Portugal “muito contra a sua vontade”.
Este aventureiro que se dizia médico aportou em Lisboa com destino a Goa, onde fora condenado pela Inquisição a cumprir pena por trabalhos forçados. Ainda nestas condições menos favoráveis, Dellon ficou com uma boa imagem de Lisboa – a cidade que melhor conheceu, e ainda assim só o centro. Gostou das praças, como o Rossio, “onde durante todo o ano se realiza uma espécie de feira, na qual se encontram sempre mercadores em tendas portáteis, semelhantes às que se usam em Paris, na Ponte Nova”. E, embora sentisse um trato afável, achou a corte demasiado grande para a dimensão do país – o que justifica a quantidade de “soberbas habitações” que contribuem para o “embelezamento da cidade, para cujo brilho concorre frequentemente a gente de todos os países da Europa, atraídos pelo interesse e pela curiosidade”. E os habitantes? “É bastante conhecida a ostentação dos portugueses”, continua, detendo-se num costume que estranhou. “Trata-se do que ocorre nas festividades mais solenes, ficando exposto o Santíssimo Sacramento depois das celebrações; então aparecem mulheres ricamente vestidas que ao som das guitarras e castanholas dançam e cantam canções profanas com mil atitudes decentes e impudicas (…). Esta nação está de tal forma habituada a estes divertimentos que as pessoas mais austeras e os próprios sacerdotes assistem divertidos”. Nunca tínhamos ouvido semelhante costume, que soa até a caricato num país durante tantos anos descrito como conservador.
Há ainda Charles Alexandre de Montogn, um abade francês que foi agente secreto de Filipe V de Espanha e que veio a Portugal em 1729 para “poder informar os reis católicos da maneira como era recebida a infanta espanhola”. Nas suas memórias, que começam na fronteira perto de Elvas, descreve a corte, os ministros e embaixadores e até os reis como “meros personagens de uma comédia que se representava num palco vazio”, ignorando por absoluto os monumentos, costumes, plantações, campos.
Já o riquíssimo e irreverente William Beckford, que parou pela primeira vez em Lisboa em 1787, a caminho da Jamaica, acabou por voltar e encontrar uma segunda casa em terras lusas, nomeadamente na Quinta de Monserrate, em Sintra, onde residiu, apesar das “estradas abomináveis”. Deixou no “Diário de William Beckford” as suas vivas descrições sobre os costumes, qualidades e defeitos portugueses, a mais vívida memória daquela época traçada por um inglês. “Southey, nem Byron, nem Fielding [que também escreveram sobre o país] criaram um quadro tão vivo” desta coisa da portugalidade, defende a historiadora Rose Macaulay. E espantou-se, por exemplo, com a “familiaridade com que eram tratados os criados”.
Hans Christian Andersen faz um curiosíssimo relato em “Uma Visita em Portugal em 1866”, publicado há uns anos pelo jornal “O Independente”. “Que transição, ao entrar em Portugal vindo de Espanha. Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via à minha volta casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar um refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra, ou do restante mundo civilizado.” Chegado a Lisboa, esperava encontrar “ruas sujas, carcaças abandonadas, os cães ferozes e as figuras de miseráveis possessões africanas”, mas deparou-se antes com uma cidade “mais luminosa e bela”, com “ruas largas e limpas; as casas confortáveis, com as paredes cobertas por azulejos brilhantes de desenhos azuis sobre branco; as portas e janelas de sacada são pintadas a verde ou a vermelho, duas cores que se veem por toda a parte, mesmo nos barris dos aguadeiros. O passeio público, um jardim longo e estreito no meio da cidade, é à noite iluminado a gás e aí se ouvem concertos. As árvores em flor desprendem um perfume bastante forte; é como se estivéssemos numa loja de especiarias que preparasse e servisse gelados de baunilha”.
O dinamarquês ficou alojado na casa da família O’Neill com quem seguiu depois para Palmela – e não resistimos a transcrever mais esta passagem: “Da casa de um vizinho vinha um rugido terrível. Era de um leão criado por esta família, um leão de África, preso, segundo me contaram, como o cão bravo da casa”. O clima, porém, pareceu-lhe demasiado quente e os preços dos transportes exagerados. “É longo o caminho à volta dos muros da cidade, todas as distâncias são grandes e o preço do aluguer das carruagens é incrível, verdadeiramente inadmissível”.
Saltemos mais de um século para os escritos de Richard Hewitt, que veio dos EUA com a mulher para na década de 90 do século passado reabilitar uma casinha numa pequena aldeia de Sintra e depararam-se com uma parede burocrática quase intransponível. A aventura foi contada de forma hilariante em dois livros: “Uma Casa em Portugal” (1999) e “Regresso à Casa em Portugal (2005), ambos editados pela Gradiva.
E hoje? O que intriga os estrangeiros? Quais os costumes que acharam mais peculiares? Endereçámos um conjunto de questões a oito pessoas estrangeiras a residir em Portugal, temporária ou definitivamente – as respostas seguem já nas páginas seguintes.