Carlos Gaspar. “Se houver rutura com a Grã-Bretanha, a desintegração europeia é inevitável”

Construção europeia, NATO, Rússia, refugiados, Alemanha, Síria. Uma conversa pragmática sobre o estado do mundo e da Europa 

Escreve no final do livro que “o declínio da Europa é real mas não é irreversível”. Mas também diz que é preciso que os cidadãos se empenhem na defesa dos valores ocidentais. No entanto, a julgar pelas últimas eleições em vários países da Europa, esses cidadãos não parecem interessados na construção europeia, estão mais interessados em projetos nacionalistas.

Tem toda a razão. A frase que termina o meu ensaio sobre “A Balança da Europa” vai nesse sentido. Os últimos dez anos são anos de crise prolongada na Europa – crise do euro, crise de Schengen, crise dos refugiados – com consequências políticas marcadas. Em todas as eleições desde 2014, os partidos moderados, os partidos que defendem essa visão de uma Europa liberal, democrática e integrada, têm vindo a perder terreno substancialmente. Não apenas nas periferias mais afetadas pela crise, mas também nos principais países da Europa ocidental, incluindo Alemanha, França, Itália e Espanha. Em todos há mudanças significativas do esquema de partidos, instabilidade do sistema partidário, diminuição do peso eleitoral – para não dizer mais – dos partidos moderados, europeístas. A exceção a essa regra de transformação do sistema partidário é Portugal. Mesmo na Alemanha, apontada como referência de estabilidade, a CDU e o SPD, em conjunto, neste momento representam 50% dos votos e, pela primeira vez, a grande coligação não é grande. A primeira grande coligação, nos anos 1960, representava 80% do eleitorado. Aquilo que no passado era uma coligação que garantia estabilidade hoje parece uma coligação defensiva. Em Itália, 50% dos eleitores votaram no Cinco Estrelas e na Liga Norte – um cenário de catástrofe para todos os que defendem a necessidade de consolidação do centro europeu. Em França houve uma reinvenção do centro europeísta à custa da destruição do velho sistema de partidos e o início de uma fase de transição em que prevalecem numerosas incertezas. Em todo o caso, o partido presidencial, que tem maioria na Assembleia Nacional, representa um terço dos eleitores. São sinais que se multiplicam sem inversão de tendência e que nos obrigam a refletir sobre se existem condições de renovação, de reestruturação do sistema político europeu, no sentido da reconstituição desse consenso que prevaleceu desde a ii Guerra Mundial. 

Esse otimismo de que com sacrifício, com algum risco… 

… Não é otimismo, a frase é uma citação do Martin Wight, que insiste que a ordem internacional, a balança do poder só existe se as elites estiverem preparadas para fazer sacrifícios. É um aviso, e não um sinal de otimismo. A ordem europeia não está adquirida. Quando foi construída pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, República Federal da Alemanha, a seguir à ii Guerra Mundial, as elites estavam preparadas para fazer sacrifícios significativos para estabelecer essa ordem estável e de segurança. Hoje em dia, se olharmos para a ausência de resposta dos Estados europeus às ameaças à segurança regional nas suas fronteiras, a resposta é negativa. A Rússia anexou a Crimeia, mantém uma guerra híbrida na Ucrânia oriental, faz uma pressão acrescida sobre as repúblicas bálticas, sobre os países da bacia do mar Negro, intervém na guerra da Síria – onde há uma guerra civil há seis anos, com 200 mil mortos, 300 mil mortos – qual é a resposta europeia? A diplomacia, a passividade, uma resposta minimalista no domínio da mobilização de recursos militares. Há um escândalo na Europa quando os EUA reclamam que as democracias ocidentais gastem pelo menos 2% do orçamento em defesa. A China, oficialmente, gasta mais de 8%, e sem ser oficialmente gasta acima dos 10%. Há três países europeus que gastam mais de 2%, a Alemanha gasta 1,2%. São países que não estão disponíveis, por razões políticas, para assumirem as suas responsabilidades num domínio crucial que é a segurança e a defesa – crucial para a estabilidade do espaço europeu como grande região internacional, com segurança para as populações. Grande parte desta volatilidade eleitoral é, na minha opinião, inseparável da insegurança europeia: as vagas de refugiados, as redes de criminalidade, as vagas de atentados do terrorismo jihadista, mas também a perceção de que não há uma resposta robusta por parte das potências europeias a essas ameaças que se acumulam na frente leste, no Mediterrâneo oriental. Há uma espécie de arco de crises à volta do espaço europeu que se instalou nos últimos anos sem uma resposta afirmativa capaz de demonstrar que as elites europeias, que os Estados europeus estão dispostos a fazer sacrifícios para garantir a ordem internacional, neste caso, a ordem regional.

Parte da crise que a UE enfrenta deve-se a que, apesar de ter construído um mercado de 500 milhões, nunca conseguiu uma resposta comum em termos de defesa e de segurança.

Mas teve. Durante todo o período da Guerra Fria, independentemente das crises recorrentes entre os aliados, havia uma estratégia comum no espaço de segurança da comunidade transatlântica. Havia uma convergência no essencial, havia uma resposta no domínio das políticas de defesa e de segurança, que definiam bem objetivos comuns. Voltou a haver perante as guerras de secessão da Jugoslávia – é verdade que depois de um atraso estratégico. Também, de certa maneira, na resposta às ameaças mais difusas do terrorismo internacional. A NATO esteve no Afeganistão, interveio na reconstrução do Iraque depois da invasão anglo–americana. Desde o princípio da crise na Líbia, em 2011 – onde ainda houve alguma resposta, embora parcial e, na minha opinião, mal desenhada –, há retraimento e, dos Estados Unidos e das potências europeias, passividade; as elites estão viradas para dentro, para crises internas que têm muitas dificuldades em resolver, não tendo capacidade para encontrar uma vontade comum de garantir a estabilidade para lá das suas fronteiras. A comunidade ocidental era exportadora de segurança, garantia a estabilidade nas suas fronteiras – a transição post comunista na União Soviética, que foi um período bastante delicado, desenrolou-se sem conflitos maiores nos espaços contíguos à Europa ocidental, exceto as guerras da Chechénia e do Cáucaso. Esse período em que havia unidade estratégica e capacidade para exportar segurança para lá das fronteiras terminou e, agora, o espaço europeu importa insegurança – sob a forma de redes jihadistas, de refugiados que fogem das guerras em que as potências ocidentais já não querem intervir, das vagas de imigrantes, isto num espaço que não é capaz de definir e controlar as suas fronteiras externas. Aparentemente, já não há essa unidade de propósito, mesmo em relação aos problemas internos da UE. O Brexit é o caso mais evidente. A resposta à crise italiana também vai pôr à prova essa capacidade de definir uma posição comum dos Estados europeus.

Referiu-se ao Brexit, expressa no livro a ideia de que o Brexit pode até ser bom para o projeto europeu.

Aquilo que procurei defender no meu livro é que o Brexit é um sinal muito grave da crise europeia que não é possível desvalorizar. Ao mesmo tempo, também digo que é possível impedir que o Brexit seja o princípio da desintegração europeia se for possível reintegrar a Grã-Bretanha no espaço europeu. Os britânicos decidiram sair da UE e vão sair, mas é possível reconstruir as relações entre os países da Europa continental e a Grã-Bretanha se se puder evitar que o Brexit seja uma rutura política e securitária e se se conseguirem encontrar as fórmulas que garantam que a Grã-Bretanha continue a ser um pilar da segurança comum europeia e transatlântica, não apenas no quadro da NATO, mas também em quadros bilaterais ou “bimultilaterais”. Acordos entre a Grã-Bretanha e a UE no novo quadro da cooperação estruturada permanente são possíveis e são necessários, no domínio das indústrias de defesa, mas também das missões militares externas e, muito importante, no domínio das informações e da intelligence. Ainda é possível evitar que a separação da Grã-Bretanha e da UE seja uma rutura política, para poder reconstruir uma nova fórmula, mais complexa, no espaço integrado das democracias europeias.

De alguma forma, a saída do Reino Unido da UE também permite…

Estou mais preocupado com a necessidade de reconstruir as relações com a Grã–Bretanha do que em saber se existem oportunidades para avançar. Não quero dar a impressão de que o Brexit é uma coisa boa. O Brexit é um sinal muito grave da crise europeia que tem dominado a política na Europa desde o referendo britânico. Não devemos estar concentrados em virar do avesso essa realidade, mas em responder-lhe positivamente, isto é, em impedir que as tensões inevitáveis numa negociação muito complexa se transformem numa rutura – e quer na Grã-Bretanha, quer na Alemanha, quer em França há forças que querem a rutura. É importante para países como Portugal ou a Espanha evitar a rutura e reconstruir essa relação. Antes da Grã-Bretanha se integrar nas comunidades europeias, existia outra forma de equilíbrio entre a NATO e essas comunidades. É preciso reconstruir algo nesse sentido – conselho de segurança regional, o pilar europeu na NATO, o que seja, mas é preciso não desistir. Se houver rutura com a Grã-Bretanha, a desintegração europeia é inevitável e isso põe países como Portugal perante escolhas impossíveis entre países aliados e diferentes configurações do espaço europeu.

Para Bruxelas. as negociações do Brexit são muito delicadas porque a UE precisa de mostrar a todos os outros 27 Estados-membros que sair não é uma boa opção. O facto de ter de negociar de forma dura com o Reino Unido não poderá estragar a relação pós-Brexit? 

Esse argumento é um argumento de mercearia. O importante é impedir que o referendo britânico tenha como consequência uma rutura entre a Grã-Bretanha e a UE. Isso exige fórmulas positivas para reconstruir essa relação. A ideia de que é preciso fazer da Grã-Bretanha um caso exemplar é a tese daqueles que querem a rutura. A rutura é um perigo excessivo não apenas para a Grã-Bretanha, mas para a própria dinâmica de integração europeia. A ideia de que os países da UE são uns meninos malcomportados que é preciso disciplinar é uma abordagem pobre e relativamente paroquiana. O que está em causa com o Brexit é a configuração do espaço europeu e se é possível reconstruir uma unidade fundamental entre a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha. Sem essa unidade estratégica fundamental, a Europa está dividida e mais fraca perante os desafios externos. O processo de integração europeia não é uma iluminação divina, é uma resposta a uma nova situação em que a Europa deixa de ser o centro do sistema internacional e passa a ser um espaço continental relativamente reduzido, na altura, entre a União Soviética e os Estados Unidos. Hoje é a Rússia, Ásia oriental, novos grandes espaços continentais que estão a construir-se. Nesse sentido, a Europa ocidental não se pode permitir hoje, tal como em 1945, dividir–se em nome de pequenas querelas. Com certeza representam interesses importantes, é preciso encontrar as fórmulas de compromisso, institucionais, políticas, securitárias, económicas, mas é preciso ter a consciência de que, afinal de contas, mesmo esse espaço de 500 milhões é relativamente pequeno quando comparado com o espaço asiático que está a formar–se. 

Acha que a questão da fronteira irlandesa poderá tornar as coisas muito mais difíceis na negociação do Brexit?

É certamente uma questão difícil. Esse tipo de questões territoriais é uma novidade na política europeia e é, como quase todas as novidades da política europeia, uma má novidade – Catalunha, Escócia, divisões ou unificações são problemas complexos. Todos os responsáveis políticos europeus devem ter um respeito fundamental pela unidade e integridade dos Estados soberanos. A UE é uma união de Estados soberanos; qualquer proposta que vise prejudicar, perturbar ou pôr em causa a unidade de um Estado soberano deve ser rejeitada pelos responsáveis políticos europeus. Era o que nos faltava abrir questões de fronteiras a pretexto de movimentos de mercadorias!

Mas a questão da fronteira irlandesa é muito delicada politicamente. O Acordo de Sexta-Feira Santa, com aquela fronteira fechada…

Mas a UE não tem de interferir nessa matéria. Essa é uma questão entre a Irlanda e o Reino Unido e deve ser uma questão bilateral, e não tem de ser multilateralizada. 

Jean-Claude Juncker já disse que as exigências da Irlanda são as exigências da UE.

Mas não são. As exigências da UE são maiores que as da Irlanda e são maiores que as da Grã-Bretanha, e a primeira exigência da UE é respeitar a integridade e a soberania dos Estados. 

Não acha que a Irlanda irá fazer finca-pé em relação a esta questão? 

Deve ser uma questão bilateral entre Londres e Dublin. Portugal não tem nada a ver com essa questão e é um Estado-membro da UE. Tal como as questões entre Barcelona e Madrid são questões internas do reino de Espanha. Portugal não tem nada a ver com essa matéria a não ser respeitar o princípio constitucional da UE que é o do respeito pela integridade e soberania dos Estados.

Hoje, a política norte-americana é mais voltada para dentro das suas próprias fronteiras. Tendo em conta a boa relação entre Washington e Londres, acha que a saída do Reino Unido da UE poderá fazer com que se aprofunde esse eixo EUA-Reino Unido?

Absolutamente, por isso é tão importante o empenho na reconstrução dos vínculos entre as três principais potências europeias. Não queremos voltar a um quadro em que a Grã-Bretanha seja, como dizia o general De Gaulle, um cavalo de Troia na política europeia, e há um certo número de Estados europeus, dominados por partidos eurocéticos, nacionalistas, soberanistas, que podem estar disponíveis para formar com a Grã-Bretanha uma espécie de partido antialemão, a partir de uma dinâmica de rutura. A Polónia é um caso citado frequentemente, talvez amanhã a Itália, outros países. Não queremos entrar outra vez nessa lógica de divisão. É por isso que as questões do Brexit são tão importantes. E podem representar essa viragem no sentido de substituir o processo de integração – que todos associamos à paz e à segurança na Europa – por um processo de fragmentação onde a incerteza e as divisões e uma nova competitividade estratégica passem a prevalecer. Isso torna a Europa mais fraca no seu todo e pode mesmo tornar irrelevante falar, do ponto de vista internacional, num espaço europeu.

A criação de um exército europeu poderia fortificar o projeto europeu?

O exército europeu é um projeto falhado. É um projeto recorrente, repetidamente aparece porque a necessidade existe. Não faz sentido o espaço europeu não ser autónomo do ponto de vista estratégico, mas ele nasceu num quadro de dependência estratégica em relação aos Estados Unidos e à NATO e não é evidente que consiga alterar o seu código genético. Tudo aquilo que se fizer para reforçar as condições de autonomia é positivo e também é indispensável reconhecer que a defesa europeia é garantida pelos EUA e pela NATO e que vale a pena não partir a loiça antes de ter alternativas consistentes. 

Esta crise da UE é também uma crise da redefinição do próprio mundo geoestratégico? Passámos de um mundo bipolar para um mundo de “fim de história”, como se dizia, e agora estamos a assistir à emergência da Rússia, com a China a querer ser uma potência a nível mundial. O modelo da UE já não se adequa ao mundo de hoje?

Ele está adequado, as nossas ilusões, as nossas expetativas é que não estão. No fim da Guerra Fria, uma parte das elites europeias achou que a UE era uma grande potência internacional e que ia competir com os EUA. O que nós sabemos hoje é que a UE é – já era em 1991, mas é mais fácil reconhecer isso em 2018 – um espaço continental com capacidades limitadas e uma dependência estratégica e fundamental em relação aos EUA. A Europa como um todo e nenhuma das potências europeias fazem parte da balança internacional que é definida pelos EUA, pela Rússia e pela China. As potências da Europa ocidental estão confinadas, de certa maneira, a uma balança regional. No princípio e no fim deste período temos a mesma situação: a Europa deixou de estar no centro do sistema internacional e passou a ter uma posição secundária. Foi verdade durante a Guerra Fria e passou a ser verdade no post Guerra Fria. Hoje já não temos um Tony Blair a falar de uma superpotência europeia, já não temos presidentes da Comissão Europeia de uns Estados Unidos da Europa. O que temos é o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Sigmar Gabriel, a dizer: “Nós, europeus, somos herbívoros num mundo de carnívoros.” Isso já está mais perto da realidade e é um bom sinal. Como somos herbívoros num mundo de carnívoros, temos de manter a nossa unidade e ter meios de defesa e segurança carnívoros para nos podermos proteger dessas pulsões mais agressivas que estão a dominar o espaço à volta da Europa ocidental. 

Se a crise europeia se prolongar…

… ela está a prolongar-se…

… a Alemanha não poderá sentir a necessidade de fazer corresponder em termos militares aquilo que representa como potência económica?

Uma República Federal alemã democrática, ocidental e pacifista foi aquilo que foi criado, et pour cause, a seguir à ii Guerra Mundial e não há sinais de viragem na sua política. Pelo contrário, há sinais de continuidade, não há sinais de mudança.

O facto de haver pela primeira vez desde a ii Guerra Mundial um partido de extrema-direita no Bundestag e que, ainda por cima, vai liderar a oposição…

A Alternativa para a Alemanha [AfD] não é um partido de extrema-direita, é um partido mais nacionalista, eurocético, é um partido heterogéneo do ponto de vista dos seus alinhamentos internos, é um partido antissistémico, tal como o 5 Estrelas [em Itália]. Os dois são partidos que ainda não se definiram do ponto de vista ideológico. Há partidos racistas, xenófobos na política europeia; na AfD há uma corrente racista e xenófoba poderosa, mas não é todo o partido, que está agora a fazer o caminho nas instituições federais – tal como o 5 Estrelas está a fazer em Itália –, vamos ver qual é a sua evolução. Julgo que é mais importante procurar as formas de integrar esses partidos na política europeia e nos valores democráticos europeus do que excluir à partida forças que, provavelmente, representam hoje um terço dos eleitores europeus. Dez por cento podem isolar-se, correr-se mesmo o risco de os estigmatizar; 30% dos eleitores europeus é uma nova realidade à qual é preciso responder de uma maneira diferente. E a resposta que procura a integração, a moderação, a habituação às instituições políticas da democracia é possivelmente uma estratégia mais razoável do que a estratégia arrogante da estigmatização.

A votação na AfD não é um sinal do ressurgimento desse sentimento na Alemanha, um sentimento perigoso tendo em conta a história do país?

Com certeza que sim, o nacionalismo alemão, não por acaso, tem má reputação, as políticas raciais a mesma coisa, as francesas também, e as italianas. Temos de reconhecer que a insegurança – interna e externa – que foi exponenciada por vagas descontroladas de imigração é má conselheira. A criação de expetativas à escala europeia, às quais não é possível dar uma resposta, é má conselheira. A passividade internacional, a ausência de respostas às ameaças externas é má conselheira. A partir daí devemos construir as políticas europeias com maior moderação e maior valorização da capacidade de resposta aos problemas concretos, políticos, económicos, sociais e de segurança das populações. Isso é uma responsabilidade de todos os Estados-membros. O nacionalismo alemão não me preocupa mais do que o nacionalismo francês, têm, em ambos os casos, elementos de violência que até agora não se manifestaram, mas que podem, numa situação de crise mais acentuada, revelar-se e pôr em causa a continuidade democrática.

A crise dos refugiados foi mal gerida desde o princípio?

A crise dos refugiados foi pessimamente gerida. Em primeiro lugar, não cumpriram as regras do espaço Schengen e a primeira regra é que há uma fronteira externa. Essa fronteira externa não existiu nem na Itália nem no Mediterrâneo oriental. E depois, em vez de criarem novas regras e novos instrumentos para restaurar as fronteiras e dar resposta às centenas de milhares de pessoas em situação dramática que chegavam a Itália ou à Grécia, suspenderam-se as regras. De repente há um milhão de pessoas a atravessar os Balcãs na direção da Europa do norte, um movimento como não havia desde o fim da ii Guerra Mundial. Inevitavelmente, isso teria consequências políticas – e teve nas eleições alemãs e italianas.

O abalo no espaço Schengen foi tão forte que será difícil voltar a recuperá-lo com a filosofia inicial?

Desde o fim da Guerra Fria, a UE são duas coisas: moeda única e espaço Schengen. São os dois pilares da UE. Desse ponto de vista, é importante reconstruir as condições de normalidade nos dois pilares da UE, criar os mecanismos anticrise que não existiam no governo económico da zona euro, criar as fronteiras externas que, aparentemente, se volatilizaram. É preciso também fazer uma distinção, e nem sempre tem sido feita, entre refugiados políticos e refugiados humanitários e entre refugiados e imigrantes económicos. A confusão é perturbadora da nossa resposta a essa pressão nas nossas fronteiras. Os refugiados políticos são sagrados, nós temos um dever de hospitalidade para com eles. Não temos em relação aos refugiados económicos.

A crise dos refugiados deu força à direita musculada em países como a Polónia e a Hungria.

A insegurança, o medo, o confronto com estrangeiros, com outras culturas por parte de populações que, ao contrário do que acontece em Portugal, têm muito pouca exposição a outras culturas e outras religiões, está nos livros que tudo isso dá mau resultado. Correntes racistas, correntes xenófobas, sentimentos de insegurança, demagogos, não é novidade. A novidade é, neste caso, quer a Alemanha quer a Comissão Europeia definirem políticas minimamente responsáveis perante a vaga de refugiados. Porém, a imposição de quotas de refugiados aos países da Europa central e oriental é a melhor maneira de forçar as correntes autoritárias e racistas nesses países.

A falta de ação rápida em relação ao conflito da Síria… parece que se estava a pensar que era longe e não nos afetaria.

O conflito da Síria é um conflito muito próximo, de várias maneiras. O prolongamento da guerra, a incapacidade de intervenção – não apenas das potências ocidentais, mas também dos EUA – são reveladores da crise da ordem internacional. A guerra civil na Síria é uma espécie de réplica da Guerra Civil de Espanha, em que a França e a Grã-Bretanha também não conseguiam intervir. Essa paralisia da França e da Grã-Bretanha na Guerra Civil de Espanha antecipou, de certa maneira, a desagregação da ordem internacional da Sociedade das Nações. A guerra civil na Síria, essa incapacidade prolongada de intervir naquele conflito interno enquanto outras potências intervêm – a Rússia tem uma intervenção militar direta muito robusta desde o outono de 2015 dentro da Síria, como tem o Irão –, essa incapacidade sequer de limitar o conflito é um sinal adicional da decomposição da ordem liberal ocidental que foi criada no fim da Guerra Fria. Eu acho que esses sinais externos são perturbadores da ordem interna e mais um fator adicional de insegurança para as comunidades políticas na Europa.

Não houve uma certa arrogância ao olhar para a Síria?

É o mínimo que se pode dizer. É uma arrogância insuportável, uma passividade, e essas coisas pagam-se na política internacional e na política interna.

Vladimir Putin, assim que terminar a guerra que parece ir terminar a favor…

…não vai nada terminar, tem todas as condições para continuar. O presidente Putin já declarou a vitória várias vezes e ainda vai declarar mais algumas, sinal de que a crise interna na Síria vai continuar. O problema é se não vai haver uma escalada, uma vez que, tal como na Guerra Civil de Espanha, a guerra civil na Síria se tornou uma miniatura de um conflito regional e mesmo internacional. Pode expandir-se. A Turquia está a ocupar territórios na Síria, quer rever as fronteiras de 1922 com o Iraque, com a Síria e com a Grécia, já o diz publicamente. O Iraque tem uma fronteira difícil com a Síria. Os curdos têm uma autonomia efetiva, controlam uma parte do território e exercem esse poder com apoio dos EUA, da França, de Israel. Há várias milícias que se estão a instalar nas fronteiras com Israel, mais próximas ou menos próximas do Irão. Há ali, de facto, uma situação perigosa, como são as situações de guerra civil em que as potências responsáveis pela ordem internacional se demitem das suas responsabilidades.

Que papel tem e teve Putin na desestabilização da União Europeia?

Há uma mudança na estratégia russa que surpreendeu certamente os responsáveis políticos alemães e europeus ao longo de 2013. No passado, a preocupação principal da Rússia era com a NATO e o alargamento da comunidade de defesa transatlântica. Subitamente, ao longo de 2013, para a Rússia passou a ser igualmente importante conter a expansão da União Europeia, a quem não ligava nenhuma antes. Não era considerada como uma ameaça. O sinal de que mudou foi quando proibiram o presidente ucraniano, Yanukovitch, de assinar o acordo de associação entre a UE e a Ucrânia, invertendo uma política russa anterior, e depois, em cascata, a escalada que levou à anexação da Crimeia e à guerra civil. A partir daí há, por parte da Rússia, uma estratégia de oposição não apenas à NATO, mas também à UE.

Não foi um erro achar que se podia tocar na Ucrânia e a Rússia não reagir?

A intervenção russa na Geórgia, em 2008, é o primeiro sinal de viragem. Depois da invasão russa da Geórgia, a questão da integração da Ucrânia na NATO ficou congelada. Mas o veto russo não se aplicava à UE, e era um acordo de associação, não era a integração da Ucrânia na UE. O presidente Yanukovitch tinha sido eleito duas vezes com o apoio do presidente Putin, a negociação do acordo de associação durou – como é típico em tudo o que a UE faz – meses e anos intermináveis e, de repente, houve uma mudança política do lado da Federação Russa que surpreendeu os principais interessados, alemães e europeus. Depois, nem o presidente Yanukovitch nem os aliados da Rússia na Ucrânia, conseguiram controlar uma resposta forte dos nacionalistas ucranianos contra a rejeição do acordo. Não foram os europeus nem os alemães que andaram a dar tiros nos manifestantes do Maidan. Essas coisas, está nos livros, às vezes correm mal. Houve uma ilusão excessiva até à intervenção na Geórgia e, mesmo aí, a Alemanha opôs-se aos EUA no Conselho do Atlântico Norte, em Bucareste, no princípio de 2008, quando o presidente George W. Bush queria acelerar a integração da Ucrânia na NATO. E a França e a Alemanha disseram não. Por maioria de razão, depois da Geórgia, a questão ficou fechada. Mas isso aplicava-se à NATO, não se aplicava à UE, que não é um bloco militar. Ninguém no seu juízo perfeito imaginava que se ia integrar a Ucrânia na UE – por razões egoístas, era demasiado caro.

Poderia ter havido uma resposta mais dura quanto à anexação da Crimeia?

Poderia ter havido um sobressalto nas políticas de defesa, no sentido de robustecer, de redefinir o sistema operacional e mesmo a estrutura de comandos da NATO? Nesse sentido, podia. Dar sinais de determinação, de defesa do espaço europeu e da NATO. A Ucrânia não é membro da NATO e, nesse sentido, respostas do tipo ofensivo seriam irresponsáveis e imprudentes. Podia-se mostrar – e ainda se pode – uma maior determinação na reconstrução da capacidade de defesa.

A instalação de mísseis russos em Kaliningrado com alcance suficiente para atingir várias capitais europeias pode ser considerada uma provocação?

É um sinal de escalada. A evolução da doutrina militar russa, a sua teoria sobre o emprego de armas nucleares táticas para responder a ameaças convencionais, a mesma coisa. São vários sinais que desde 2014 se têm multiplicado. Perante esses sinais de escalada é preciso mostrar firmeza e determinação, explicar que há limites. No caso do desenvolvimento de novos mísseis de alcance intermédio, a questão é mais larga do que a NATO porque o desenvolvimento desses mísseis de cruzeiro pôs em causa os acordos de interdição das armas nucleares de teatro, o primeiro acordo assinado pelos presidentes Reagan e Gorbachov, em 1987. É uma questão mais geral que tem a ver com a balança estratégica e nuclear e os regimes de controlos dos armamentos à escala internacional, portanto, tem de ter uma resposta nesse quadro.

Haverá um aprofundamento da corrida armamentista. China, Rússia, EUA também querem melhorar o seu arsenal nuclear…

Não apenas nas armas nucleares, mas também nas novas armas que podem interferir na balança nuclear, designadamente as armas antinucleares – um míssil convencional que destrói um míssil com capacidade nuclear. É uma questão que está em aberto desde a guerra das estrelas, iniciativa de defesa estratégica do presidente Ronald Reagan. Todas essas coisas estão em cima da mesa e, obviamente, há uma competição acelerada nesse domínio que é reconhecida quer do lado da Rússia, quer do lado dos EUA, embora a Rússia tenha capacidades limitadas para manter essa competição, pelas limitações da sua capacidade económica.

A Alemanha quererá também ser potência nuclear?

É uma questão em aberto. O facto de não vermos sinais neste momento não quer dizer que não seja questão em aberto.

O que representa para a UE este novo governo de grande coligação na Alemanha?

Não é claro o que representa a médio prazo para a UE. No curto prazo representa uma linha de continuidade e uma janela de oportunidade para poder, talvez, robustecer o orçamento europeu, os mecanismos de crise ou de resposta à crise na zona euro. São elementos importantes para Portugal e para França, naturalmente, que é o grande iniciador recorrente dessas várias propostas. Não é evidente que essas mudanças tenham a escala ou o peso que os mais otimistas anteveem ou que sejam políticas duradouras. Acho que esta coligação é uma coligação de transição e não, como nos casos anteriores, uma grande coligação que garante estabilidade a médio prazo. Aliás, a forma como ela surgiu indica claramente que é uma coligação de transição. O SPD e a CDU estão cada vez mais próximos e menos diferenciados, há um efeito de bloco central, daí que seja de transição. A primeira grande coligação, em 1966, também foi de transição, para abrir caminho à alternância política na República Federal e ao primeiro governo dirigido pelo SPD. Esta quarta grande coligação também vai ser uma fórmula de transição mas, ao contrário do que se passava em 1966, nós não sabemos qual é o sentido, não sabemos qual é o senhor que se segue.

As soluções apresentadas por Macron para a Europa poderão ajudar a resolver parte da crise na UE?

Podem garantir maiores condições de estabilidade na zona euro. São certamente necessárias para garantir um maior equilíbrio financeiro da própria França neste processo complicado em que há uma nova força política que se quer consolidar e estabilizar, mas estou convencido que não existem condições para que os passos positivos nesse sentido não sejam mais que pequenos passos. Enquanto a ambição do programa francês, a criação de um grande orçamento europeu, não me parece realizável, mesmo com a convergência europeia tão forte entre o SPD e a CDU. Não tem uma sustentação interna suficiente – tanto o SPD como a CDU estão numa fase de transição dos seus dirigentes. No SPD foi muito rápido, no caso da CDU vai ser menos rápido, mas há um processo de sucessão aberto. Estes períodos são difíceis para ter uma capacidade de decisão forte e determinada, sobretudo para fora. São tempos em que as elites se estão a reconstituir, em que os consensos internos se estão a reconstituir, e não sabemos o resultado dessas sucessões políticas internas e qual vai ser a fórmula do próximo governo alemão.

Para Portugal e para os países do sul, o que se poderá esperar da UE?

Nós não temos que esperar da UE, temos, de uma vez por todas, de passar a ter políticas ativas na UE. O que está em causa para nós quer com o Brexit, quer com a próxima crise italiana, é demasiado importante para continuarmos a estar à espera de saber o que resulta da próxima cimeira entre a França e a Alemanha. Temos de ter uma política de ação, bem definidos os nossos objetivos e iniciativas concretas, na UE e na NATO. A passividade e a inércia não são uma opção para a política externa portuguesa.