Passam poucos minutos das sete da manhã. Na Islândia, ainda o negro do céu domina. A poucas dezenas de quilómetros da capital, muito perto do aeroporto que serve Reiquiavique, entramos num bacalhoeiro com menos de 20 metros e uma tripulação de uma dezena de homens. O Erling é capitaneado por Halldóv Gudjon Halldorsson. O homem é capitão há dez anos. O objetivo da jornada de trabalho é recolher oito redes e espera-se pescar cerca de 20 toneladas de bacalhau. Para nossa sorte, o mar está calmo e a temperatura ultrapassa ligeiramente os zero graus. As redes que vamos recolher estão a cerca de oito milhas do porto.
Dentro do barco, nesta viagem organizada pelo Lidl, para além dos jornalistas vão, entre outros, Gisli Gislason, diretor do Programa do Marine Stewardship Council (MSC) Islândia, organização que certifica a sustentabilidade de 14% da pesca mundial; Pedro Monteiro, diretor-geral de compras da Lidl Portugal; e Ricardo Alves, administrador da Riberalves, uma das duas maiores empresas portuguesas que pescam, importam, tratam e comercializam o bacalhau.
Toda a pesca neste navio é sustentável, o que implica não só o cumprimento rigoroso das quotas de pesca, para impedir a repetição do colapso dos bancos de pesca por sobrepesca, como se deu em 1992, como garantir um determinado tamanho da malha das redes, fazendo com que apenas sejam apanhados os peixes maiores.
Os melhores meses de pesca para o bacalhau são janeiro, fevereiro e março. Aqui na Islândia, há mais calma para pescar do que na Terra Nova, porque o peixe demora mais tempo a desovar à volta da ilha. Apesar disso, há condicionalismos naturais e humanos: o capitão da embarcação diz que na semana anterior só saíram dois dias ao mar devido ao mau tempo e que em 2017 tiveram dificuldades em cumprir a quota de pesca do navio, dado que os pescadores da Islândia estiveram em greve para conseguir aumentos salariais e melhores condições de trabalho, depois das baixas salariais a que os islandeses foram sujeitos quando da falência generalizada dos bancos no país.
Os 320 mil islandeses são um povo com tradições na pesca. Atualmente serão, segundo nos dizem no barco, mais de 10 mil os islandeses que estão ligados à pesca.
Chegamos à primeira rede. Lentamente, começa a ser içada. Não é uma rede de arrasto, o peixe não vem todo de uma vez. Vai chegando como se fosse organizado numa fila de um ou dois peixes. Na rede, no meio do bacalhau, só aparecem algumas raias maiorzinhas. À medida que vai entrando no barco, o peixe é imediatamente tratado. No navio há uma espécie de fabriqueta com uma linha de montagem em que os pescadores vão tirando as tripas e miudezas aos peixes. Sinal dessa operação é o enorme ajuntamento de gaivotas junto à embarcação que disputam, sob a ondulação, o despejar das miudezas do bacalhau no mar.
À medida que o peixe vai entrando na linha de montagem, o capitão da embarcação, que tem acesso a imagens do peixe, vai contando. Neste momento, a contagem está em 146 peixes, mas esta nova rede chegará quase aos 600. “Faço isto porque tenho a responsabilidade de lançar as redes, preciso de saber quais os sítios que têm mais peixe”, diz-nos.
O peixe, como é pescado com redes e métodos certos, e imediatamente tratado, sai do barco sem hematomas e em excelente condição, faz-nos notar o administrador da Riberalves.
É um trabalho duro, mas não comparável ao que faziam no passado os pescadores da chamada frota branca da campanha do bacalhau portuguesa. Na altura, como se relata no livro recentemente editado “A Campanha do Argus”, os portugueses pescavam o bacalhau à linha. Dos grandes pesqueiros saiam dezenas de pequenos dóris, com um pescador cada um, que iam tentando a sua sorte nos mares gelados. Não raro, essas pequenas e frágeis embarcações eram presa das mudanças do mar. Uma forma de vida muito dura.
No início da tarde, regressamos ao porto. O bacalhau, colocado em caixas, é levado para uma pequena fábrica em Saltver. Quando chegamos ao posto de comando desta pequena unidade industrial, um dos sítio onde é tratado o bacalhau da Riberalves que é comprado pelo Lidl, deparamo-nos com um cenário descontraído e uma dissidência desportiva. O jovem encarregado tem de um lado da sala uma bateria, guitarras elétricas e amplificadores, que compõem uma verdadeira sala de ensaios de uma banda de rock. Do outro lado, a ocupar a parede inteira está a bandeira do Manchester United, colocada lá pelo patrão. O jovem encarregado confessa-se do Arsenal e ironiza: “Estou sempre a dizer ao meu patrão que se fosse para ser do Manchester, era do City, que ao menos ganha.”
Chegamos durante a pausa para café. Quinze minutos depois, regressam os trabalhadores. Aqui, tudo se aproveita: as cabeças de bacalhau vão para Portugal, o grande mercado para essa iguaria, assim como as línguas e as bochechas; a espinha vai para a Nigéria, onde é considerada um petisco.
Esta relação entre Portugal e Islândia, mediada pelo bacalhau, é quase simbólica. Os dois países têm grande parte da sua identidade cultural ligada a este peixe. Na velha e mais célebre igreja da capital islandesa, o brasão é um bacalhau. Entre o final dos anos 50 e o início dos anos 70 deram-se as chamadas guerras do bacalhau, em que os islandeses guerrearam literalmente com os ingleses pelo seu direito a terem soberania sobre as suas águas. Apesar do desequilíbrio entre um país que não tem exército e uma das maiores potências marítimas do mundo, os islandeses levaram as suas reivindicações avante. Conta-se que na segunda guerra do bacalhau, que começou a 1 de setembro de 1972 e acabou com um acordo a 8 de novembro de 1973, o primeiro- -ministro do Reino Unido, para perceber os seus oponentes, pediu para lhe comprarem um livro do escritor mais célebre da Islândia. Trouxeram-lhe o “Independent People”, do vencedor do Nobel da Literatura de 1955, Halldór Laxness. Lendo o livro, o líder do governo do Reino Unido claudicou: “Os islandeses são um povo demasiado orgulhoso e teimoso para cederem.” E o acordo foi assinado.
Com efeito, os primeiros habitantes da ilha foram vikings fugidos da Noruega a quem não agradavam os impostos nem a submissão aos reis locais. Deve–se a eles um dos primeiros “parlamentos” do mundo. As tribos reuniam-se para discutir questões importantes num local a meio caminho em que, por coincidência, se juntam e neste momento se separam as placas tectónicas da Ásia e da Europa com a Americana.
Tal como a Islândia, Portugal está muito ligado ao bacalhau. Os portugueses são os maiores consumidores deste peixe: consumiram 33 596 toneladas de bacalhau até outubro de 2017, menos 3,4% do que em 2016, segundo o Conselho Norueguês das Pescas (Norges). O país é responsável pelo consumo de cerca de 20% do bacalhau pescado anualmente. Em 1968, a sobrepesca atingiu cerca de um milhão e oitocentas mil toneladas, pondo em causa a continuidade da espécie. A certificação é fundamental para garantir uma pesca racional que permita a reposição do pescado e a qualidade do que é capturado. O Lidl é a primeira grande empresa mundial que aderiu à certificação MSC, em 2006. Essa certificação é feita tendo em conta 30 indicadores. A cadeia de supermercados tem 23 referências com o selo MSC da pesca sustentável, das quais 11 referências são de bacalhau. “Para nós, o tema da sustentabilidade, que está associado ao tema da gestão de recursos, é essencial, e na área do pescado ainda mais. Sabendo que os oceanos atualmente produzem cerca de 200 milhões de toneladas de pescado, a maior fonte de proteínas que temos no mundo, cada vez mais temos de pensar que é preciso ter pesca sustentada para garantir que o peixe vai chegar aos nossos netos”, explica Pedro Monteiro, diretor-geral de compras da Lidl Portugal. A opinião é partilhada por Ricardo Alves, administrador da Riberalves, que sublinha que a sustentabilidade é também uma garantia de qualidade para o consumidor. “O melhor bacalhau é este [o da Islândia]: é pescado, passado duas horas está a ser tratado, como vimos, é salgado. Não é fácil conseguir um bacalhau melhor. É o peixe mais caro do mercado, salgado verde, maturado e com cura tradicional portuguesa de oito meses. E isso é muito utilizado para a marca Deluxe do Lidl e a da Riberalves.” O responsável da empresa responsável por cerca de 12% do bacalhau mundial acha que este combate pela sustentabilidade do bacalhau garante que os portugueses terão o chamado fiel amigo no futuro.
Como dizia Eça de Queiroz sobre ele próprio, numa carta ao historiador Oliveira Martins, ele escrevia romances franceses e até seria um afrancesado, não fosse um gosto especial por bacalhau de cebolada e mais umas minudências.