Mário Cordeiro diz que está na altura de combater o obscurantismo na desinformação sobre as vacinas, de que foram exemplo algumas ideias transmitidas esta semana no “Prós e Contras”, na RTP1. Para o pediatra, que publicou no ano passado um livro que ajuda a desmontar os mitos em torno das vacinas, é preciso perceber que são a melhor medida preventiva e que salvam vidas – no ano passado morreram milhares de pessoas de sarampo em todo o mundo. É preciso também derrubar ideias erradas que ainda existem entre os profissionais de saúde, como a de que crianças com febre não podem ser vacinadas ou que só as vacinas incluídas do Programa Nacional de Vacinação são desejáveis. Cordeiro, que ajudou a preparar normas de vacinação nos anos 90 para a Direção-Geral da Saúde, diz mesmo que outras vacinas como a do rotavírus, varicela ou meningite não estão disponíveis para todas as crianças por razões financeiras. “É uma questão de tempo.” Aos pais que podem pagar, recomenda-as, mesmo que tenham de cortar noutros bens mais supérfluos como intercomunicadores e esterilizadores.
O país vive um novo surto de sarampo, ligado ao aumento de casos na Europa à conta de movimentos antivacinação. Os pais expõem muitas dúvidas no consultório em relação à segurança das vacinas?
Sim. A confusão aumenta, à custa da contrainformação, da ação das redes sociais e da arrogância da sociedade ocidental, que acha que está tudo resolvido e que somos quase super-homens, imunes aos vírus e bactérias. Os pais expõem dúvidas e eu tento esclarecê-los, mas claro que a decisão deve ser deles. Tento esclarecer as suas dúvidas, tento mostrar-lhes o que a ciência demonstra, mas há casos em que não consigo convencê-los. Fico com pena, sobretudo das crianças, mas tenho de respeitar.
Publicou no final do ano passado um livro sobre os mitos em torno das vacinas, da ideia de que o Estado “está feito” com as multinacionais ou da ligação ao autismo, ou mesmo terem mercúrio, o que faria mal ao bebé. Que ideias são mais difíceis de rebater?
Podemos inventar coisas com cada vez mais facilidade. Ou seja, se eu publicar algo completamente abstruso na internet ou no meu Facebook – ou, tal como vi esta semana, na televisão (“Prós e Contras”, RTP1) – e se enviar isto para a Lusa, garanto-lhe que amanhã estará o que eu escrevi nos jornais e meios de comunicação, com uma chancela de verdade – não há escrutínio jornalístico, com a ânsia de publicar.
Nem sempre haverá essa ânsia de publicar, mas pelo que se percebeu no programa da RTP existe pelo menos um terapeuta de biomagnetismo em Portugal que transmite essas informações. Como se resolve? Ignora–se? Proíbe-se de exercer?
Se essa pessoa não tem nenhuma atividade ilegal, não se pode proibir de exercer. Quanto ao dito biomagnetismo, confesso que não sei (nem quero saber), mas quando afirma coisas falsas há que denunciar energicamente, bem como noções erradas, e responsabilizá-lo se alguma criança morrer ou ficar com sequelas devido às suas indicações… assim como ele quer culpar os que defendem as vacinas pelos tais efeitos secundários letais que não existem. Aliás, instado a dizer quem tinha feito estudos, etc., escudou–se nos ”imensos estudos” e na “falta de liberdade”… como se no nosso país não se pudessem dizer até asneiras. A vacina antissarampo é cultivada em embriões de pintos. Eu sou um grande defensor das medicinas complementares e até faço uso delas, mas têm de ser baseadas em verdades científicas e executadas por profissionais credíveis que não andem a vender a banha da cobra.
A ligação da vacina ao autismo é algo que continua a ser veiculado.
O conhecido “médico do autismo” já não é sequer médico – foi expulso da Ordem dos Médicos ingleses porque o estudo que engendrou era uma fraude; a revista “Lancet” pediu, aliás, desculpa por ter sido enganada e ter enganado os leitores desta maneira. Outro colega, nos EUA, suicidou-se quando um neto morreu por uma doença evitável pela vacinação. A história do mercúrio presente nas vacinas é similar. Quanto ao mercúrio, a quantidade que era necessário para fazer mal – um pouco à semelhança dos edulcorantes – seria brutalmente grande (impossível para um ser humano) e, portanto, essa teoria é completamente errada, estúpida e perigosa. Uso as palavras sem aspas.
As autoridades de saúde têm sublinhado que em Portugal não existem grandes bolsas antivacinação. Ainda assim, 5% das crianças não se vacinam na idade certa, o que dá cerca de 4500 bebés por ano. Já teve pais a dizerem-lhe claramente que não iam vacinar os filhos? Um médico pode ser assertivo ou, em última instância, é uma decisão dos pais?
A decisão é obviamente dos pais, sem sombra de dúvida. Mas eles que se responsabilizem, por escrito, pela não vacinação, e se alguma coisa acontecer aos seus filhos, então devem responder perante os tribunais. Para mim, não vacinar é negligência. É maus-tratos. É expor a criança a um risco que pode ser evitado. Bolas, então exponham essas crianças a andar de carro sem cadeirinha, então deixem–nas não ir à escola, então não as alimentem.
É uma discussão irritante para um médico?
Confesso que começo a estar saturado de ver que a medida mais eficiente de saúde pública pode vir a ser posta em causa por meia dúzia de idiotas e mais meia dúzia de ignorantes que são antivacina porque está na moda ou porque associam a coisas que nada têm a ver umas com as outras: ecologia, ambientalismo, autismo… céus! Que completa e total estupidez: todos os pais que dão beijinhos aos filhos, espero que diariamente, transmitem-lhe vírus e bactérias, e estas vão fomentar a imunidade do bebé para que não venha, depois, a ter doenças invasivas graves. As vacinas complementam essa vacinação que os pais, repito, diariamente fazem no quotidiano. Ponto final. Chega de obscurantismo e de negação, às crianças, dos seus mais elementares direitos. Como membro do board da UNICEF-Portugal e ex–membro das Comissão dos Direitos da Criança e da Comissão de Saúde da Mulher e da Criança, prometo defender, sempre, a Convenção da ONU – e as vacinas estão incluídas nesses direitos.
Chegou a debater-se uma obrigatoriedade das vacinas e lá fora há exemplos de países onde só é possível matricular as crianças nas creches se estiverem vacinadas. Seria desejável ir por aí?
Se, pessoalmente, desejaria a vacinação obrigatória, salvo casos excecionais, tive de analisar este assunto do ponto de vista médico e jurídico quando, na DGS, fui encarregue de emitir um parecer para a então ministra da Saúde. Ser obrigatório parece-me inadequado pelas simples razões de que, por um lado, se for obrigatório obriga a uma coima para quem não se vacinar: como é que se procede? Em França tentou-se e foi um desastre porque penalizou os suspeitos do costume: os mais desfavorecidos. Depois, como se averigua a responsabilidade da não vacinação?
Que problemas podem surgir?
Se foi o patrão que não deu autorização para os pais se ausentarem, se o centro de saúde estava em greve, se a criança foi remetida para trás pelos enfermeiros porque estava “ranhosa”.
Isso acontece?
Se foram os enfermeiros os grandes heróis do sucesso do PNV, no seu início, muitos deles são atualmente os seus grandes adversários… Na minha experiência, muitos enfermeiros desincentivam da vacinação, designadamente quanto às vacinas que ainda não fazem parte do Programa Nacional de Vacinação (PNV). Ouvir a bastonária da Ordem dos Enfermeiros [na RTP] fazer acusações a outrem e retirar-se da questão dá-me quase vontade de rir, não fosse trágico aproveitar situações de doença para fazer politiquice partidária ou corporativa.
Relativamente aos profissionais de saúde, como agora tem estado em discussão, a vacinação devia ser obrigatória?
Não. Mas é altamente recomendável e aconselhável – e pensar nos outros é obrigação. Aliás, o surto deste ano veio revelar uma nova dimensão: haver uma franja de pessoas que não tiveram a doença “selvagem” e ainda foram vacinadas com a vacina mais antiga ou apenas com uma dose, não beneficiando da imunidade de grupo que decorre do facto de 95% das pessoas ou mais estarem vacinadas. É que vacinar é um ato também altruísta: protegemo-nos a nós e protegemos a outros. Acredito que qualquer profissional, se tiver indicação para isso, se vacinará. Os esquemas de vacinação estão sempre em mudança. A vacina da varíola deixou de se fazer quando a doença foi extinta, outras têm mudado o esquema de vacinação (o sarampo começou por uma dose e depois foi inserida uma segunda), a da hepatite B foi antecipada para idades menores… Tudo vai mudando porque o mundo muda, não necessariamente porque alguém estava errado, designadamente a ciência.
O que é um argumento que se ouve.
É o argumento soez dos ignorantes e dos vários movimentos antivacinas que querem arranjar qualquer pretexto para liquidar a vacinação. Que tenham vergonha e que pensem em todos os milhões de pessoas, sim, milhões, que morreram por não haver vacina: de tuberculose, varíola, sarampo, tétano, poliomielite… além dos que desejariam que houvesse vacina e que morreram de peste negra ou sífilis. Vergonha é o que sinto relativamente a esse estilo de pensamento. Vergonha da condição humana. Vergonha por estarmos arrogantes num mundo que se crê civilizado, mas desdenha as suas próprias conquistas civilizacionais.
Há a ideia de algumas contraindicações, como a alergia ao ovo ser incompatível com a vacina do sarampo. Tem fundamento? Existe algum motivo clínico para não fazer a vacina, mesmo que seja estar com febre ou uma otite quando faz os 12 meses, ou todas as crianças devem ser vacinadas?
Mentira, mentira, mentira. Só as reações anafiláticas graves ao ovo (raríssimas) são contraindicações. Aquilo de mandar comer um ovo antes de dar a VASPR vai contra o que está escrito – fui eu quem redigiu! – nas normas de vacinação de 1990! Há enfermeiros que ainda propagam essas ideias erradas, mesmo alguns formados depois de 1990. Chega de, por todos os meios, impedir a vacinação, sobretudo através da ignorância e da má prática. Estar com febre ou com uma otite, como refere, não é contraindicação absoluta. Ou seja, se os médicos da OMS chegarem a uma aldeia africana depois de semanas e semanas de esforço e sabendo que só lá regressarão daí a meses, devem vacinar mesmo os doentes. Se for em Portugal, podendo as pessoas regressar ao centro de saúde daí a dias e não havendo epidemias – esperemos! -, então o bom senso sugere não vacinar, mas sobretudo para não manchar o bom nome da vacina, caso apareça algum efeito da doença que depois seria atribuído à vacina e poderia fazer baixar as taxas de vacinação.
A diretora-geral da Saúde tem sublinhado a ideia de que o facto de os pais de hoje já não terem presente os grandes surtos de doenças infecciosas faz baixar um pouco a guarda e não serem tão rigorosos com o calendário da vacinação. Tem memórias de grandes surtos de sarampo, em criança ou já como médico?
A dra. Graça tem toda a razão. A memória já nem é curta: é curtíssima! Não me recordo apenas do meu sarampo… recordo-me de ter lidado na DGS, em 1989, com um surto que provocou cerca de 50 mortos.
Que imagens ficam desse surto? Há registo de milhares de casos e relatos de que as pessoas eram até vacinadas nas igrejas.
Eu tinha acabado de entrar para a DGS. O sarampo era endémico, mas tinha surtos epidémicos mais ou menos de quatro em quatro, cinco em cinco anos. O anterior tinha sido, creio, em 1984. Foi uma coisa terrível, e ainda há a contar os casos de pan-encefalite esclerosante que ficam em alguns casos do sarampo.
O que significa?
Aparece décadas depois e o cérebro esclerosa, ou seja, fica em tecido cicatricial, com perda progressiva e rápida de todas as funções. Mirra. Mas ainda agora, no ano passado morreram, no mundo, mais de 130 mil pessoas de sarampo. Tanto alarido, e ainda bem, pelos mortos nos incêndios, e tanta passividade com a hipótese de voltarem a morrer crianças com sarampo no nosso país. Depois, não venham culpar o governo. Os pais são os primeiros responsáveis pela saúde, proteção e defesa dos direitos dos filhos – cada criança que morrer pode ter nos pais os responsáveis pela sua morte.
A vacina do sarampo faz parte do Programa Nacional de Vacinação, como muitas outras. Como disse, há vacinas que os pediatras recomendam e colocam à consideração dos pais como a do rotavírus, da meningite ou até da varicela e que não estão abrangidas pelo PNV, e as famílias têm de pagar na íntegra do seu bolso. Não é uma mensagem algo contraditória às famílias sobre a importância da vacinação?
Não deve ser. A diferença entre a necessidade delas e a importância é que o Orçamento do Estado paga umas e não paga (ainda) as outras. Mais: as doenças para as quais existem vacinas ainda não incluídas no PNV acabam por ser mais prevalentes dado, exatamente, a cobertura vacinal ainda não ser grande. Tome-se o exemplo da meningite C, considerada em 2002 pelo então ministro da Saúde, Correia de Campos, como inexistente em Portugal, apesar de o próprio laboratório do Estado, o INSA, demonstrar que mais de metade das meningites bacterianas eram causadas por este agente… o esforço dos médicos e do ministro que lhe sucedeu permitiram que a vacina fosse introduzida no PNV.
Com que resultados?
A meningite C desapareceu e ficou a B. Pena é que o que a Associação Amuras conseguiu – distribuir 450 mil doses por todo o país – fosse proibido pelo ministro Correia de Campos: Resultado: nos dois anos em que essas doses poderiam ter sido usadas, poder-se-iam ter poupado cerca de 150 mortes. Cento e cinquenta! A Região Autónoma da Madeira teve uma política diferente e vacinou todos entre os 0 e os 18 anos com essas vacinas conseguidas pela associação: a meningite C desapareceu quase instantaneamente da região. Curiosamente, foi o mesmo ministro que, dois anos depois, já no governo de Sócrates, veio anunciar a medida de incluir a vacina no PNV (medida aprovada pelo governo anterior) e gabar-se de “ir poupar vidas” com a “sua” medida… um episódio lamentável da vida política nacional. Não tendo acontecido nada de político ao ministro (foi eurodeputado e é presidente do CES), estou seguro de que lhe pesarão sempre na consciência os 150 mortos que poderia ter evitado.
Mas essas vacinas não abrangidas pelo PNV são mesmo necessárias em Portugal?
Pessoalmente, recomendo todas essas vacinas: a varicela mata, embora cada morte não tenha tempo de antena. Causa encefalites, pneumonias gravíssimas e outras coisas menos agradáveis. Chega de sofismas, chega de mentiras, chega de minorar as doenças. As doenças matam, as vacinas salvam.
Vê muitos pais optarem por não seguir o conselho médico por causa do preço?
Alguns, embora o meu consultório não sirva de barómetro, dado que atende uma população já de si mais afluente. Quando os pais me explicam que têm alguma dificuldade financeira, tento sempre delinear com eles uma forma de poupar dinheiro noutras coisas, desnecessárias, como esterilizadores de biberões, sapatinhos XPTO, intercomunicadores, roupas, brinquedos… e insisto para os familiares oferecerem vacinas em vez de presentes, como eu próprio faço com os meus netos.
Vê uma explicação técnica para estas vacinas não serem comparticipadas?
Creio que o tempo levará a que as vacinas sejam incluídas no PNV – aliás, a vacina antimeningite B já o está para casos especiais. As outras seguir-se-ão, estou certo. A questão é apenas financeira.
Muitos dos mitos em torno das vacinas vão sendo alimentados por uma série de links virais, por vezes fake news que circulam na internet. O “dr. Google” tem-se tornado um inimigo dos médicos ou mesmo assim consegue ser mais vezes um aliado?
Não gosto de emitir juízos de valor sobre a internet, dado que tem do melhor e do pior. O que sei, sim, é que um fenómeno tão grande e que se universalizou a custo quase zero para todo o mundo, e em tantas formas de comunicação, não deu ainda tempo de estudar os seus efeitos secundários – ao contrário de outras formas antigas de tecnologia, cuja divulgação e instalação era mais lenta e mais limitada – e estamos a ver o que pode acontecer de mau (como no caso da Cambridge Analytica), mas também não podemos esquecer a ampliação do mundo e os incríveis benefícios que a “rede” trouxe.
Mas é problemática a relação dos pais com as informações que vão buscar à internet?
Quanto ao Google, há que o saber usar. É como tudo: se achar que pode secar o seu gato no micro-ondas depois de lhe dar banho, pode vir a ter uma surpresa desagradável. Tudo tem de ser bem usado, sem maus usos ou abusos, e com conhecimento pleno do que é o fenómeno e dos seus vários efeitos.
Sem ser na área da vacinação, em que outros campos parece haver mais mitos instalados entre os pais e lhe parece que era importante intervir?
Alimentação (o exagero da teoria de que tudo faz mal), a confusão reinante sobre a deificação ou a diabolização da internet e das novas tecnologias, o desconhecimento do que são os ritmos biológicos e a necessidade de alternar movimentos de crescimento (adrenalínico) com movimentos regressivos e de tranquilidade (endorfínicos). E ainda o problema do sistema de ensino/aprendizagem. Os pais são muito bons e têm de se convencer que são os melhores pais que os seus filhos poderiam ter, mas não podem deixar-se submergir pelas dúvidas, pelas inquietações ou pelo sentimento de não serem capazes, com autoflagelações e culpabilizações. Há muito que melhorar, mas já somos muito bons pais! Quanto às vacinas, apenas uma palavra: vacinem os vossos filhos com as vacinas do PNV e com as outras, se puderem. Nunca, na história da humanidade, houve medida preventiva tão boa e tão eficiente. As doenças matam, as vacinas salvam. A escolha é vossa, mas a vida é a dos vossos filhos!