O subprocurador-geral da República Federativa do Brasil Alcides Martins nasceu em Vale de Cambra, Portugal, em 1948, e o seu sotaque ainda o denuncia. Aceitou receber o i na última terça-feira, nas instalações da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e falou sobre a Operação Lava Jato e as dificuldades que o MP atravessa por estar a tocar nos políticos e empresários poderosos. Considera que o mais provável é que o Supremo Tribunal de Justiça não altere a condenação de Lula da Silva, o que impossibilita a sua candidatura. Numa entrevista em que abordou as ligações entre Brasil e Portugal fala também nas diferenças dos arguidos dos dois lados do Atlântico: diz que aqui são mais verdadeiros. Também fala do caso em que o ex-deputado Domingos Duarte Lima é acusado de homicídio no Rio de Janeiro e comenta a extradição do suspeito da Lava Jato Raul Schmidt, detido em Portugal em 2016.
Quais os maiores desafios do Ministério Público (MP) brasileiro nos próximos anos?
Temos tido alguns problemas em relação a colegas, porque aumenta o número de magistrados e, por consequência, aumenta o número de problemas. Os desafios são manter a atividade administrativa em dia e fazer justiça, não só fora de casa como dentro de casa, entre os próprios colegas. Recentemente votei – e o conselho acompanhou-me – num processo administrativo de relevância pelo afastamento de um colega. É uma coisa que nos custa, que nos dói, mas enfim… Estava envolvido num desses casos polémicos e era suspeito de praticar uma conduta de improbidade administrativa, passagem de informação e recebimento de vantagem ilícita. Foi afastado e agora o processo vai seguir e vamos ver o que vai acontecer. E há outros casos.
Em Portugal temos assistido a casos idênticos. Acha que o MP no Brasil está preparado para esse autocontrolo?
Não tenho dúvidas em relação a isso e isso tem acontecido, ao ponto de haver colegas meus a pedirem a exoneração, o que é anómalo, considerando que é uma carreira típica do Estado e que é uma carreira cujos vencimentos – apesar de desfasados, hoje, por razões de ordem política – são extremamente atraentes. Apesar da exigência da entrada, a procura é de tal forma expressiva que há 18 anos eu presidia, no estado do Rio de Janeiro, a uma comissão de concurso e para o país todo tivemos cerca de 15 mil candidatos para cem vagas, com um exame rigorosíssimo. Era necessário uma prova de conhecimentos gerais, uma segunda bateria de testes e uma terceira fase de provas orais. Após isso, nos dois primeiros anos, os estagiários ficam sob uma fiscalização muito intensa, podendo ser demitidos sem maiores formalidades. Depois desse período de estágio já é preciso haver motivos muito fortes. Isto, na magistratura judicial, também existe.
O que é preciso mudar no financiamento do MP para o deixar menos exposto?
O MP, como órgão do estado, tem o seu orçamento elaborado pelo próprio MP e o mesmo é submetido ao parlamento e ao executivo, que o aprova. Quem custeia o MP é o estado, assim como acontece com o judiciário. O que tem havido é alguma restrição – entre os poderes há aquele sistema de freios e contrapesos. É evidente que, como nos últimos quatro anos o MP tem enfrentado o poder legislativo e o próprio executivo, isso tem gerado atrito e a má vontade quer do congresso nacional, quer das lideranças – por exemplo, do partido do governo.
E não há forma de blindar o MP a esses interesses?
Não é fácil. Só o tempo vai demonstrar às instituições, ao próprio Estado, que os magistrados são independentes. E que assim como nós cumprimos as leis elaboradas pelo legislativo, o legislativo tem de se submeter às leis que nós fazemos cumprir.
O MP em que hoje trabalha não tem nada a ver com aquele em que começou. Como é que vê esta malha tão apertada à corrupção depois de muitos anos de uma outra justiça? Este não é o Brasil em que começou a trabalhar…
Certamente que não. Diria que assim como na vida extra trabalho, no poder judiciário e no MP, as coisas também têm acontecido assim. O MP foi inspirado na legislação francesa, inicialmente, e evidentemente com uma relação muito mais forte com Portugal – afinal de contas, a legislação de Portugal se aplicou no Brasil até à proclamação da República. Essa influência continuou, só que o MP foi desde o início da República crescendo, se empoderando. No início, o MP federal era uma dependência do Ministério da Justiça e as pessoas eram nomeadas, não havia concurso – eu sou do 7.o concurso e agora já estamos no 27.o. Mas a partir da Constituição de 1988 nasceu um novo MP, um ponto de viragem. Se entendeu colocar o MP ao nível do poder judicial, se calhar até com alguma vantagem a mais. E este é outro MP, diferente daquele em que eu comecei.
Como vê toda a polémica de magistrados de topo no Brasil – juízes e procuradores – reclamarem pelo direito a receber apoio à moradia (ajudas de custo)? Lembro-me, por exemplo, do juiz Sérgio Moro…
Se calhar, essa luta pelo auxílio moradia não é o melhor exemplo, mas é uma forma de – e está previsto na lei – conseguir uma espécie de salário indireto. Eu entendo que esse, se calhar, não é o melhor caminho: há colegas que têm moradia e recebem, há os que não têm e não recebem, e há casos, muito pontuais, de colegas casados em que os dois recebem auxílio moradia – o que não faz sentido, porque vivem na mesma casa.
Falou em salário indireto…
O que acontece é que no Brasil há uma inflação embutida, camuflada, que a gente sente nos preços, anualmente, de 10%, e há quatro anos que não são atualizados os vencimentos da magistratura federal nem do MP federal. Isso é mais desleal do que receber o auxílio moradia, que é uma forma compensatória. Porque é que as outras carreiras – teria de se perguntar ao poder executivo e legislativo – tiveram os seus vencimentos atualizados, e a magistratura federal e o MP federal não?
Acha que é um recado por causa de casos como a Lava Jato, que estão a tocar no poder político?
Não tenha dúvidas de que é, isso parece-me óbvio. Mas não tenho dúvidas de que vamos encontrar meios e formas de mostrar isso à opinião pública, porque as carreiras federais de destaque tiveram todas os seus vencimentos atualizados. E não tem sentido uma pessoa no último grau da carreira ganhar menos do que um membro do Ministério Público estadual que acaba de ingressar. Eu tenho 36 anos de Ministério Público.
Qual o salário médio de um magistrado do MP federal?
Aproximadamente, a média será em torno de 4500 euros líquidos.
É um valor baixo para as responsabilidades…
E é um valor baixo sobretudo se considerarmos que o poder público não nos dá saúde, que pagamos moradia muito cara e, no meu caso, viajo sempre a minhas expensas. E não é só: tive de colocar as minhas filhas na Universidade Católica. No Brasil, o ensino é caríssimo. Mais tarde, uma das minhas filhas veio para aqui porque eu disse para vir, porque aqui em Portugal é mais barato. Estados como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro são extremamente caros. Voltando ao tema, se não houver a compensação aos magistrados, e eu nem gostaria de ir por aí, pode parecer que está a haver retaliação.
Nem só de combate à criminalidade económica vive o MP. A PGR em Brasília está atenta à escalada de violência e às queixas de abuso de poder relacionadas com as soluções encontradas para controlar o fenómeno, nomeadamente a colocação de militares nas ruas do Rio de Janeiro?
Sim, o MP no Rio de Janeiro tem sido muito atuante. As instituições não estão desempenhando bem o seu papel e a violência aumentou de forma assustadora. A crise se faz presente de forma muito acentuada, sobretudo no Rio de Janeiro. Nos últimos governos aumentou o desemprego, fecharam mais empresas, a dimensão da população que vive na rua é assustadora e o tráfico de droga também.
E, em paralelo, dificuldades nos pagamentos até à polícia…
A polícia está à mesa sem receber, com os vencimentos muito desfasados, seja a Polícia Militar (PM), seja a Polícia Civil, o que leva a um grau de contaminação muito grande, sobretudo da Polícia Militar. Em função disso está-se pagando um preço muito elevado, porque todas as semanas temos policiais mortos – mais de 70, talvez, desde o início do ano. Isso faz com que a polícia fique enclausurada, não está nas ruas, e você se sente absolutamente exposto, mesmo na zona sul do Rio de Janeiro, onde os bairros são mais tranquilos. A violência recrudesceu e há pouco empenho das autoridades policiais, seja a PM, que fica nas esquinas falando no celular, ou a Polícia Civil, que fica aquartelada e só vai a reboque da criminalidade. Isso é muito mau para o estado e estamos pagando um preço muito alto por essa gestão terrível levada a cabo pelos últimos governos do Rio de Janeiro. Sucatearam.
E as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) fracassaram?
As UPP eram, na verdade, sustentadas por um empresário, Eike Batista [detido por envolvimento num megaprocesso que envolve também Sérgio Cabral, ex–governador do Rio de Janeiro]. As UPP viviam expostas e recebendo benefícios dos pontos de venda de droga, então fracassaram. Diminuíram, são pouco eficientes e acabam por ser vítimas do tráfico, do crime organizado. Há os que atiram de metralhadora, de fuzil, com AR15, que derruba até helicóptero. É uma pena que o estado do Rio de Janeiro tenha chegado a este ponto…
Vamos então falar um pouco sobre a Operação Lava Jato. Qual o ponto de situação agora?
Em primeiro lugar, é uma operação singular porque pegou o estado maior da criminalidade, enfrentou-o, e quase de forma inédita na história da República, e começaram a ser afastados membros da cúpula do poder político, empresários que se consideravam imunes e membros do executivo.
Há quem critique, dizendo que existe um enfoque maior da investigação em pessoas e políticos de esquerda. Como vê essas críticas, essas colagens a fações políticas?
O Ministério Público está um pouco exposto a isso, nós somos organizados em carreira, mas não recebemos ordens do PGR. E não investigamos em função da cor política de quem quer que esteja envolvido. Lá, o que ocorre é que, independentemente da sigla partidária, os partidos são ricos em fornecer elementos que praticam condutas desviantes ao MP. (risos) E estão sendo enfrentados, e não diria que se pensa no Brasil que a investigação atinge mais uns do que outros. O que se ouve são tentativas de políticos de etiquetamento, de rotulagem, para se defenderam junto dos seguidores. Isso não é verdade, procuramos ser imparciais, imparcialidade em função das condutas desviantes.
Veio a Lisboa falar da Lava Jato. Qual o seu papel no caso Lava Jato?
Hoje, o meu papel está bastante atenuado porque não estou na linha da frente. Isso poupa-me de um sofrimento maior, mas não de todo. Eu oficio perante o Superior Tribunal de Justiça e os recursos chegam lá. Até há pouco tempo estava na quinta secção e o que nos chega lá são recursos especiais, habeas corpus, recursos de habeas corpus. Agora, a minha intervenção é ainda mais atenuada porque estou na terceira secção, que é um organismo especializado do Superior Tribunal de Justiça, e quando chegam lá matérias chegam já muito triadas – e quando chegam damos uma atenção especial, tal como damos aos outros processos.
Onde é que a Lava Jato vai dar? Isto vai parar algum dia?
Eu espero que sim, se não é sinal de que… Pelo menos, a atuação mais forte quer seja por parte da alta criminalidade, quer seja por parte do judiciário, sim. Senão, o judiciário terá de se ampliar, melhorar os seus mecanismos, nós temos de dispor de mais colegas para a equipa da Lava Jato. Fica difícil prever, porque infelizmente há conclusões, mas já vamos na 47.a fase e há sempre um caminho novo e sempre alguém que ainda não foi atingido.
À luz da lei brasileira e da sua experiência, acha possível que Lula da Silva venha a candidatar-se?
Isso vai depender do resultado da decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Se sair ilibado, poderá recandidatar-se, se ficar em liberdade, mas é extremamente difícil dizer o que vai acontecer. O Supremo tem tido a postura de não alterar a condenação de segundo grau de jurisdição [o equivalente ao Tribunal da Relação], e se isso acontecer, ou seja, se se concluir dessa forma…
Porque no Brasil o Supremo tem sobretudo uma função de tribunal constitucional e entende que a confirmação em segunda instância é suficiente…
Exatamente, pelo menos a jurisprudência, até agora, tem sido nesse sentido. Nós estamos com uma população carcerária que é assustadora, é a terceira maior do mundo, 730 mil presos, fora os mandados de captura que não são cumpridos.
Mas voltando a Lula da Silva…
Qualquer que seja a decisão do Supremo haverá muita contestação, manifestação da opinião pública. O Supremo tem direito de mudar a sua jurisprudência, mas como este é um caso muito pontual, mudar em função dele…
O que me diz é que o mais provável, o mais natural, é que venha a ser tomada uma decisão coerente com o que se defendeu até hoje, ou seja, manter a condenação – o que, a acontecer, impossibilita uma candidatura.
Exatamente. Agora, de todo o modo, acredito que a decisão do Supremo fique cinco a quatro, que o tribunal fique dividido. Até porque três dos juízes já mostraram vontade de mudar a decisão no Supremo.
As justiças brasileira e portuguesa são, apesar da inspiração, muito diferentes. A investigação sobretudo…
Diria que a justiça brasileira, sobretudo na primeira fase de investigação, tem sido escancarada para a opinião pública num momento em que o procedimento deveria ser sigiloso, mas sou minoria. Porque muitas vezes prende-se alguém e transforma-se aquele caso num grande escândalo, a pessoa é execrada e não há nada. Eu tenho um caso prático disso, de uma escola em São Paulo: execraram os dirigentes, um ficou louco e o outro não sei quê, porque lhes imputaram o crime de violência sexual contra crianças, e depois viu-se que não era assim. Anos depois viu-se que era resultado de uma má investigação policial, passou-se isso para a opinião pública e o estado de São Paulo teve de pagar uma indemnização. E a vida daquelas pessoas? Foi destruída.
Acha então que deveria haver mais sigilo no Brasil…
A primeira fase deveria ser mesmo sigilosa, essa coisa de transmitir os julgamentos fica algo… Enfim, que informassem o resultado, mas não mais que isso. Eu, lá, tenho de cumprir a lei, mas eu acho que a lei portuguesa é bem mais cautelosa. O que temos lá que é mais vantajoso é um pouco mais de celeridade, mas a abertura excessiva de um processo que está nascendo, não.
Já se arrependeu de ter acusado alguém ou de ter destruído uma vida?
Quantas vezes eu acusei pessoas e depois pedi desculpa pública e pedi absolvição… Eu tive essa dignidade, com uma aeromoça [hospedeira] que levava três gramas de droga depois de acabar com o namorado. Eu pedi a absolvição dela por tráfico internacional de droga. E o mesmo aconteceu com esquemas de imigração ilegal com passaportes falsos. Depois de me ter apercebido que os que adulteravam a documentação não eram apanhados, que a Polícia Federal não estava muito interessada nisso, eu pensei: “Eu vou denunciar o coitado que deu dinheiro para entrar nos Estados Unidos?” E disse: “Não vou!” E comecei a arquivar e a pedir a absolvição dos que havia denunciado. Há situações que deveriam obrigar a uma cautela maior.
E como tem sido a cooperação com Portugal, apesar dessas diferenças?
Em Portugal, as pessoas têm sido extremamente acessíveis, com um grau de colaboração muito grande e que não é de hoje. Eu lembro-me de há uns anos estar na Procuradoria-Geral da República, em Lisboa, com o então procurador–geral da República, o dr. Cunha Rodrigues, numa altura em que se estava a tentar a extradição do padre Frederico para Portugal. Eu conversei com ele e disse que a extradição seria muito difícil e que o interessante era mandar o processo para lá para cumprir pena lá. Enfim, depois perdi o contacto, mas tive aproximação com o dr. Cunha Rodrigues, como com os procuradores que lhe sucederam, até à atual, a dra. Joana Marques Vidal.
Acha que existem reticências em Portugal relativas à justiça brasileira pelo uso de instrumentos como a delação premiada?
Não posso julgar o comportamento ou a visão dos colegas aqui em Portugal. São institutos novos e é natural que haja alguma resistência, em princípio, em relação a isso. Mas não tenho dúvidas de que a tendência é as instituições amadurecerem e caminharem nessa linha da colaboração premiada, eu imagino que vá por aí. Eu acho que em Portugal há outra postura, mesmo da parte dos arguidos, que são muito mais verdadeiros do que no Brasil. Lá o sujeito nega, nega, nega. Mesmo quando há todas as evidências, está ali a prova pericial, a prova testemunhal, o camarada continua negando: “Não, doutor, eu não cometi crime nenhum, estão-me imputando isto…”
São diferenças culturais, sobretudo…
Sim, sem dúvidas.
Em Portugal foram detidos dois suspeitos da Lava Jato, um deles é Raul Schmidt. Este caso teve um volte–face há alguns dias, depois de ter transitado em julgado a decisão de extradição, uma vez que a nova lei da nacionalidade lhe permitiu passar a ser cidadão de origem. Tem acompanhado esse caso?
Tenho dificuldades em responder. Em primeiro, porque considero que a questão está a ser submetida ao judiciário dos dois países e não tenho o domínio da legislação daqui. Em princípio, como disse, deve ser cumprida qualquer decisão transitada em julgado. Mas há recursos na própria lei, lá como aqui, que definem que as decisões judiciais podem, em determinadas circunstâncias, ser alvo de revisão, por exemplo se houver provas novas. Lá, como aqui, como regra não se extraditam nacionais e há várias formas de adquirir a nacionalidade. A mais simples é a decorrente de sangue: filho de português, neto de português, português é. Desde que cumpra os requisitos para essa obtenção, a pessoa equipara-se aos que nasceram em território nacional. Não sei se Raul Schmidt obteve antes ou depois da decisão de extradição, mas mesmo que tenha obtido depois, talvez isso seja um óbice à extradição, porque não se extraditam nacionais. Agora, segundo a lei brasileira, se já havia uma condenação e há uma naturalização, é diferente.
E se não houver extradição, isso poderá significar uma pedra na engrenagem entre os dois países?
Tenho dificuldade de fazer essa avaliação porque ele já preenchia os requisitos da nova lei antes. Agora, avançar e entender se isso é óbice ou não, não posso. Certamente acontecerá o mesmo que em casos como o do padre Frederico. Independentemente de poder ou não ser extraditada, se a pessoa de que fala praticou atos tidos como ilícitos no Brasil e os mesmos forem tidos como ilícitos aqui, poderá responder sem extradição aqui, no país de origem. E sofrerá as limitações decorrentes das fronteiras do país e dos tratados dos dois países. Ou seja, num terceiro país, como Espanha, poderá acontecer-lhe o que aconteceu ao ex–presidente da Catalunha na Alemanha.
Há outro caso que também marcou a atualidade em Portugal e em que não foi possível a extradição. Estou a referir-me ao processo em que o ex-deputado português Domingos Duarte Lima foi acusado e pronunciado por homicídio pelas autoridades brasileiras. Em que ponto está este caso?
Neste momento, não estou a acompanhar. O juiz de Saquarema que tem este caso foi estagiário da nossa procuradoria e até onde acompanhei, dada a negativa de extradição para cumprimento de pena no Brasil, eu sugeri ao colega da cooperação internacional que encaminhasse para Portugal o processo. Se, hoje, o interesse da defesa é o oposto, não entendo. Eu acho que o que tem de ser visto é o cumprimento da lei, a parte não elege, não é um contrato privado em que as partes intervenientes elegem o seu próprio foro. As partes ficam submetidas à lei, àquela jurisdição, e eu imagino que a jurisdição natural desse arguido será Portugal.
Já foi tornado público que a defesa de Duarte Lima prefere um julgamento no Brasil, por ser tribunal de júri. Porque acha que isso acontece?
Eu fui promotor [procurador] do júri durante um ano, mais ou menos. Realmente, o júri tem uma certa sensibilidade e vai muito mais pela técnica do advogado e do membro do MP do que pela verdade, que os jurados não conseguem perceber. E eu me dececionei com o júri quando, atuando num caso de homicídio, o arguido foi absolvido. Então eu fui para o gabinete do procurador-geral e não sei até hoje como não me puniu, porque lhe disse que me tinha autorremovido do tribunal de júri de Itaguatinga. Tudo porque o júri absolveu num caso de homicídio e eu tenha ficado tão dececionado com isso.
Mas o que pretende dizer com isso?
Que talvez seja essa esperança que tenha o arguido que, apesar de não morar lá, sabe que o júri é suscetível de ser influenciado com um belo de um advogado. Antigamente havia advogados no Rio de Janeiro especializados nisso.
Quer dizer que, se bem feita a defesa, o júri é mais facilmente manipulado do que um coletivo de juízes, é isso que me está a dizer?
Perfeitamente, eu não diria melhor. Hoje temos tido júris federais que têm ocorrido de forma muito diferente, felizmente. Mas são casos muito pontuais de homicídios de líderes indígenas, etc.
Nasceu em Portugal e conhece muito bem a realidade do país. Conhecia algum dos envolvidos neste caso?
Sim, conheci a D. Rosalina Ribeiro porque ela me pediu orientação lá numa hipótese e eu dei, e depois pediu-me ajuda lá em Brasília e eu dei a ajuda que ela pretendia. Depois, num belo dia, eu estava em casa e me ligou uma senhora que é cantora de fado e me disse: “Você sabe da D. Rosalina?” Eu disse que não e foi aí que ela me disse que tinha desaparecido.
E o que lhe pareceu a investigação e qual o acompanhamento que fez daí para a frente?
Não examinei ao pormenor, tive algum contacto com o juiz da comarca e encaminhei depois a ideia para o juiz e para o então secretário de Cooperação Internacional, meu colega Edson de Almeida, de que o melhor era o envio para Portugal.