Há uma ideia de que não basta resgatar a memória, é mesmo perceber que a mentira está dentro dela. Para chegar a um vislumbre de uma qualquer verdade é preciso multiplicar as janelas sobre a História, fazer com que a ficção nos devolva a parte do humano que escapou aos relatos oficiais das marchas a passo de ganso.
Quando era criança vi uma vez uma garrafa de vinho do Porto que era a figura do Gungunhana de robe verde e agarrado a uma garrafa de bebida. A imagem que os portugueses davam do Gungunhana era de um homem dissoluto e bêbado. Nos seus livros, ele não é muito diferente.
Não é assim tão diferente. Eu começo este livro com um personagem que usei no “Ualalapi”, em que pela primeira vez mostro uma imagem do Gungunhana muito diferente do discurso oficial [moçambicano], em que ele aparecia como um herói da resistência. No meu livro, ele é um dissoluto que corresponde à imagem popular que ficou dele. Era um grande ditador.
Porquê essa trajetória oficial? Era necessário à FRELIMO reinventar um passado e criar um herói da resistência?
Eu sigo uma linha não oficial, mas parece-me óbvio que a ideia era criar esses pequenos mitos da chamada resistência anticolonial para, depois, isso legitimar a história da gesta nacionalista. O Gungunhana emerge como esse grande mito. Mas para a população que foi espezinhada por este império de Gaza, ele foi sempre um ditador. Acho que é interessante termos estas vozes diferentes sobre a História. É esta diversidade que nos permite não ter uma visão monolítica da História.
Começa, aliás, o livro com duas vozes completamente opostas: Ayres d’Ornelas, que vê em Gungunhana um chefe belo, inteligente e com uma enorme grandeza, e o Dr. Liengne, que lhe chama um bêbado inveterado capaz de todas as bestialidades.
O primeiro, Ayres d’Ornelas, é militar e admira toda aquela organização guerreira; mas o Dr. Liengne, que esteve na corte e o viu como pessoa, achou-o uma criatura pavorosa.
Não há uma certa injustiça nessa apreciação? Não estamos a tirar o homem da época em que viveu? Era comum nos reis europeus, numa certa fase do seu poder, exercerem o poder com uma grande crueldade, como o Ivan o Terrível, por exemplo, para construírem os seus impérios. Aquele império só se mantinha pela força? Não havia nenhuma outra forma de coesão e legitimidade?
Estamos em sintonia. O que eu quis, na verdade, foi entrar pelo lado do homem, e não na versão que ficou na História. Eu, quando comecei a escrever os meus livros, era professor de História, e na altura dava o império de Gaza em cerca de seis aulas. No livro tentei dar uma outra versão, uma que fosse além das obras da historiografia oficial, que fosse para além até dos factos históricos e que fosse capaz de dar o lado humano e pessoal que se esconde por detrás dessas narrativas. Acho que, se há a possibilidade de abrir várias janelas na História, isso é que é positivo.
Uma das coisas que coloca no livro é que a memória é sempre palco de um combate mas, mesmo sendo “pura”, ela é sempre, de alguma forma, mentira, como quando cita a frase de Kundera em que este diz que se deve criticar os que deformam o passado, mas não se deve esquecer que mesmo a memória humana falsifica esse passado.
A memória é sempre costurada. Por vezes é preciso escangalhar tudo para abrir outros horizontes, janelas e caminhos. A literatura joga um papel fundamental nisso, para conseguir de alguma forma ultrapassar os alinhamentos da História, que é uma ficção controlada, como dizia Agustina Bessa-Luís. A literatura abre as portas e as janelas.
A sua vinda para o campo da literatura tem que ver com o seu convívio em Cabo Delgado e Niassa com a realidade dos campos de reeducação e a necessidade de escutar outras versões da História, dessas pessoas que estavam detidas.
Essa experiência foi logo no início quando fui colocado, em 1978, quando comecei a trabalhar na província mais a norte, o Niassa, uma província normalmente desconhecida e esquecida. Até se dizia no tempo colonial: “O Niassa, esse desconhecido.” E confrontei-me lá com outras realidades que não havia nas páginas dos jornais, que eram os campos de reeducação para transformar o homem. E a realidade com que me deparei era bastante cruel. É óbvio que eu não fui para os campos, mas a capital da província, Lichinga, era uma zona de trânsito quer dos que vinham dos campos, quer ainda os que iam para os campos. E essa realidade marcou-me, eu era jovem, tinha 20 ou 21 anos, de tal maneira que senti a necessidade de aprender e escrever para um dia poder dar voz a essa realidade. Mas não foi o tema da minha primeira obra. Só consegui escrever sobre isso muito tempo depois. O meu primeiro livro [”Ualalapi”, de 1987] é já sobre Gungunhana.
Naquela altura, a existência de campos de reeducação não estava afastada de uma perspetiva de engenharia social. Lembro-me que havia noutras áreas ideias de reorganizar a vida dos camponeses com as chamadas aldeias comunais, por exemplo.
Havia a tal engenharia social, como diz, um termo muito bonito. Isso era uma perspetiva que o governo tinha de urbanizar o campo, o que era muito difícil. Como sabe, da perspetiva do próprio camponês existe essa grande ligação à terra que torna muito difícil retirá-lo daquele espaço. Isso foi um sistema que também falhou. Os campos de reeducação tinham outra perspetiva: propunham–se acabar com a prostituição, a criminalidade e outros comportamentos através do confinamento e da reeducação das pessoas. Sem critério nenhum, levavam as pessoas, destituíam-nas de tudo o que lhes conferia a sua cidadania e direitos, ficavam até sem os documentos. De 1975 até 84 houve um grande período de grande destabilização social. Nas grandes cidades, como Maputo e Beira, as pessoas não sabiam da dimensão dessa realidade que então se vivia nas províncias. A mim, marcou-me isso até hoje. Mas demorei a escrever sobre isso. Não sabia como pegar o assunto. Só depois, no “Entre as Memórias Silenciadas”, 2013, é que venho a pegar no assunto e retratar esse mundo.
É também por isso que se entende que tendo começado a luta da FRELIMO em Cabo Delgado e nas províncias mais distantes, a RENAMO também vá aparecer aí?
A RENAMO começa fundamentalmente na zona centro. Mais tarde há a tentativa da RENAMO de libertar os presos dos campos de reeducação, como o Uria Simango [pastor presbiterano que chegou a vice-presidente da FRELIMO e que foi preso e executado depois da independência, quando era dirigente do Partido da Convergência Nacional, alegadamente criado pelo agente de Salazar Jorge Jardim] e a esposa, entre outros. Não há dados que possam comprovar, mas terá havido uma tentativa de os resgatar desses campos. Os campos dos presos políticos estavam todos no Niassa. Diz-se que eles foram liquidados para que não pudessem vir a incorporar as forças da RENAMO. Não há dados que possam comprovar isso porque a história oficial não se refere e esconde esse tipo de acontecimentos, de tal modo que sobre a liquidação dos opositores da FRELIMO nunca foi dada nenhuma justificação.
A certa altura coloca um discurso final no Gungunhana em que ele, depois da queda, amaldiçoa os seus inimigos e prevê as desgraças que se vão suceder depois, acabando por dizer que as terras a que corresponde hoje Moçambique nunca terão paz, nem depois de os negros voltarem a mandar. Estão condenados?
Temos 42 anos de independência, já se vislumbra este espaço de paz para Moçambique. Agora, na zona dos grandes recursos, como Cabo Delgado, começam a surgir alguns pequenos focos que dizem estar ligados a gente com os mesmos princípios do Daesh. Se não se tomarem medidas, voltaremos a ter um conflito.
Existem muitos muçulmanos em Moçambique.
Quase toda a região norte, sobretudo a parte costeira, é islamizada, tem uma forte presença de muçulmanos. Sobretudo Nampula, Cabo Delgado e parte do Niassa. Isso deve-se ao facto de o Índico ser uma espécie de zona de trânsito do comércio e das pessoas.
Na segunda parte do romance reinventa uma memória, recriando a vida das mulheres do Gungunhana depois da sua prisão. Porque sentiu essa necessidade?
Quando estive aqui em 2014, para o lançamento do “Chiriro”, disse ao meu editor [João Rodrigues] que queria escrever sobre as mulheres do Gungunhana, porque sabia que umas quatro delas tinham regressado a Moçambique. Na altura comecei a fazer uma investigação para tentar saber quem eram elas. Em 2015, quando voltei cá, depois de já ter anunciado em Moçambique que ia escrever sobre as mulheres do imperador, eu já estava à rasca, não conseguia descobrir nada sobre elas. A coisa não deslocava. Não encontrava nada sobre elas nos arquivos de Moçambique e de São Tomé.
Coloca mesmo no romance que o editor do jornal, que era mestiço, não noticia o regresso das mulheres a Moçambique.
Isto apesar de os jornais terem o hábito de noticiar os passageiros que desembarcavam. Foi o João Rodrigues que depois me conseguiu fazer chegar os documentos dizendo quais foram as mulheres que tinham regressado. Foi a partir de 2016 que comecei a trabalhar. Até um historiador brasileiro que fez uma tese em Moçambique não percebia o meu esforço e dizia: “Isto é ficção, podes colocar o que quiseres.” E eu contrapunha que pelo menos alguns factos verdadeiros deviam estar na base dessa ficção. A partir dos nomes reais consegui entrar e começar a escrever. Já tinha o cenário de São Tomé: tinham estado na roça tal, e a partir da roça eu podia fazer com que viajassem para Moçambique.
Foi complicada essa colocação dentro da cabeça das mulheres?
Foi um pouco. Elas eram quatro e tinha de encontrar diferenças neste mundo feminino. Mas acho que elas me acompanharam e permitiram que eu pudesse caminhar. Senti-me feliz por estar com elas e levá-las até Maputo [Lourenço Marques na altura]. Uma coisa interessante: elas queriam regressar à terra, mas não sabiam que a terra se chamava Moçambique. Para elas, Moçambique nunca existiu, existia apenas o império de Gaza em que tinham vivido, em que existia o espaço delas. Quando regressam, elas apercebem-se de que voltaram para outra coisa.
Simultaneamente há uma continuidade, porque a mulher que tem visões, quando passa a fronteira da cidade dos brancos para o sítio onde os negros habitam, recupera a sua capacidade de ver e prever o futuro e diz: “Voltamos à terra.”
Ela sente que a cidade está dividida. Havia, na altura, a estrada de circunvalação, que dividia a parte branca da negra – parte branca, é como quem diz, porque existia uma grande comunidade chinesa e indiana que ocupava uma grande parte da cidade. E aqueles conflitos no primeiro ano da República, em 1911, retratam um pouco isso. E depois havia a parte negra, que era do outro lado, onde elas sentem que estão de regresso à terra que é o espaço delas modificado.
Elas conseguem de facto voltar à terra ou já não a encontram?
Algumas conseguem voltar. Há uma cujo filho ainda estava no movimento de resistência. Ela consegue encontrá-lo e vai para a África do Sul, para a zona dos zulus. Uma outra consta que estava no Cha-Chai e que tomava, todos os dias às cinco da tarde, chá com o administrador da região. E uma delas voltou para a zona espiritual. Outras perderam-se. Isso corresponde à realidade, é que elas foram mesmo para esses locais. Isso é que me permitiu traçar um pequeno perfil delas.
Gosto particularmente da revolução física e biológica que é o facto de o Mouzinho de Albuquerque se ter suicidado com dois tiros.
(Risos) Como é que é possível…
Muita teimosia, mesmo depois de morto. Por que razão no império de Gaza consideravam que o peixe não era comida de homens livres?
Eles [os povos de língua nguni] tinham essa tradição e havia até o mito de que muitas vezes se recusavam a atravessar rios e tinham de dar uma volta enorme. Há qualquer coisa neles, como um tabu, que os impede de se alimentarem de peixe. Daí serem grandes criadores de carne. Eles, apesar de estarem numa zona perto do mar, não iam lá. Eram mais criadores de gado e ficavam pelo interior. De alguma maneira, isso já acontecia em São Tomé: ao contrário de Cabo Verde, onde há uma cultura de praia e de mar, lá, não há. Em São Tomé estão virados para o interior.
Virados para a roça.
A praia não é o espaço e toda a mitologia é virada para o mundo das roças. Não consigo dar uma explicação, já tentei, mas é facto que muitos dos descendentes do nguni, em Moçambique, não comem peixe.
Há um certo realismo mágico na sua escrita. O herói do seu primeiro romance vai morrer no início deste, depois de a sua mulher prever a sua morte. Como é que joga essa magia com a realidade?
Uma das coisas que nos levam ao realismo mágico são os nossos curandeiros. Quando se vai a uma consulta, eles têm essa espécie de dom de nos dizer o futuro. Então, tudo isso mostra a nossa mentalidade de ir um pouco a essa realidade, a que eu chamo noturna. Se perguntarmos de dia a alguém se foi a um curandeiro, ele responderá que não conhece; mas, à noite, ele vai certamente.
Há, aliás, uma passagem do seu livro em que as tropas portuguesas cercam uma aldeia durante a noite onde se ouvem tambores e se veem danças, e quando a atacam, de manhã, está deserta.
Isso nota-se mesmo no tempo da tropa colonial, esses relatos a que chama realismo mágico: “Íamos atacar uma aldeia mas, quando fomos, a aldeia desaparece e somos atacados por abelhas.” Existe essa mitologia toda que está latente e que entra pela cabeça das pessoas. Se me pedir para explicar as razões, eu não sei explicar.
Porquê Ungulani e não Francisco?
Porque Ungulani é o meu pseudónimo, é o meu nome animista. Para a minha geração, nós tínhamos um nome cristão e um nome animista escondido. Depois da independência, já podíamos assumir os nomes animistas. Ungulani era o meu nome do meu tio-avô. Quando eu vim da região centro, os meus pais estavam separados e o meu pai é da região sul, neste momento é que me batizaram com o nome do meu tio-avô. O meu nome cristão é Francisco, e é o do avô da parte da mãe. E eu disse que para ficção ia utilizar o meu nome animista.
O que significa o seu nome animista?
Ungulani Ba Kha Khosa, diminui dos Khosa, porque eles na região são muitos. Eu recuperei este nome. Tenho um irmão cujo nome tradicional é Ingosi, que significa sangue. Então decidi recuperar o meu nome animista: na grafia tsonga, Ungulani é com “h”. Mas como é uma letra muda, retirei-o.
Porque escolheu dar o nome que os portugueses davam ao último imperador de Gaza, Gungunhana, e não Ngungunhane?
Isso foi uma estratégia da editora, porque em Portugal, na grafia da época, o nome era Gungunhana. Essas adulterações dos vencedores eram comuns. Por exemplo, a Nwamatibjwana caZizacha Mpfumo, que quer dizer o rei dos Zizachas, os portugueses, por preguiça, chamavam Ziazacha ou Zilhalha. Para eles era muito complicado e por isso chamaram-lhe apenas Zilhalha.
Os portugueses tiveram sempre uma relação difícil com africanos, indianos e chineses?
Mesmo depois da independência, quando eu cá vinha a Portugal, havia gente que me comentava: “Vocês encheram-nos de monhés.” Eram os homens dos táxis que se queixavam porque eles entravam no carro quatro, com a mercadoria toda, e dividiam a despesa, para desespero dos taxistas. Depois também protestavam contra os chineses. E eu dizia sempre a essas pessoas: esse é o vosso problema, porque nós sempre convivemos com eles, estes séculos todos.
Num romance de um escritor sueco, Henning Mankell, que viveu muito tempo em Moçambique, onde dirigia um teatro, ficcionava-se uma espécie de invasão de chineses em Moçambique. Algum sentido nessa ficção?
É preciso dizer que os chineses entraram em massa depois da independência, mas eles sempre estiveram presentes em Moçambique, de tal modo que se vê o fenómeno de miscigenação, sobretudo nas cidades do Maputo e da Beira. Veio muita gente de Macau e da Formosa. O que a gente sente neles é quando eles exploram intensivamente a nossa madeira: estão a estoirar com tudo. Mas normalmente não se sente a presença deles, parecem quase invisíveis.
Há uma menor miscigenação?
Neste momento, talvez, mas houve uma grande miscigenação durante o período colonial, que se expressa até nos nomes. Se encontramos nomes como Caetano Hang, é porque isso existiu muito. De tal modo que há uma grande comunidade de descendentes de chineses.
Um aspeto interessante do seu romance é constatar que durante o início da i República, pouca gente falava o português, e falavam línguas nativas. De alguma forma, a cultura atual de Moçambique é produto dessa junção das línguas nativas com o português ou a cultura europeia passou ao lado?
Acho que não. Mesmo quando colocam a questão do futuro das línguas nacionais, tenho a profunda convicção de que a sobrevivência das línguas nacionais passa pela consolidação do português. O futuro das nossas línguas está na incorporação de significados no português. Quer uma pessoa seja do norte ou do sul, o trajeto é ela entrar na língua portuguesa. O que agora se está a fazer, no ensino, é introduzir primeiro as línguas nacionais para logo introduzir o português, conseguindo assim uma maior progressão até no português.
Mas há escritores que escrevem nas línguas dos povos de Moçambique?
Não porque não chega à meia dúzia. Mesmo eu, que falo uma língua nativa, se me puserem a ler, eu fico na primeira página umas duas horas para conseguir perceber o que lá está. Até porque nunca fomos alfabetizados, a não ser aqueles que, pela igreja, por causa das Bíblias, foram alfabetizados nessas línguas. Foram os únicos nichos que sobreviveram por causa das traduções da Bíblia. Grande parte dos alfabetizados nessas línguas perderam-se nas grandes cidades.
O que seria um romance nacional moçambicano?
É muito difícil. O nosso mundo é tão diversificado e rico que cabemos todos, dificilmente haveria um único romance nacional. Abrem-se muitos caminhos, talvez daqui a 50 anos se possa fazer esse caminho.