‘A derrocada de la lys deu origem a anedotas cruéis sobre os portugueses’

A batalha de La Lys é hoje recordada como o maior desastre militar do exército português no século XX. No centenário da catástrofe, o historiador Filipe Ribeiro de Meneses explica o que se passou, mas também os motivos da derrocada portuguesa, num dia ‘verdadeiramente aterrador’. 

 

A 9 de abril de 1918, após uma resistência que os seus camaradas de armas consideraram heróica, o oficial Mário Ribeiro de Menezes tornava-se um dos cerca de 6600 militares portugueses feitos prisioneiros naquele dia. Ferido, passaria meses em cativeiro na Alemanha.

Menezes teve, ainda assim, melhor sorte do que os cerca de 400 elementos do Corpo Expedicionário Português que perderam a vida no campo de batalha de La Lys, em resultado de uma poderosa ofensiva alemã.

Cem anos depois, o seu neto, o historiador Filipe Ribeiro de Meneses, que vive e dá aulas em Dublin (onde o seu pai foi embaixador), recorda este episódio negro do nosso século XX em De Lisboa a La Lys – O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial (D. Quixote).

Chegou a conhecer o seu avô, Mário Ribeiro de Menezes, que combateu na Flandres?

Não. Ele nasceu em 1880, foi para a guerra já com 37 anos, como capitão. Quando o meu pai nasceu o meu avô estava quase a fazer 60 anos, ele devia ter sido quase meu bisavô, e só por isso é possível alguém da minha idade ter um avô que combateu na Primeira Grande Guerra.

Ele falava à família sobre o que tinha vivido na guerra?

O meu pai, que tinha 14 anos quando ele morreu, tinha curiosidade natural por isso, mas o meu avô, como muitos antigos combatentes, tinha relutância em falar. De vez em quando fazia-o. Sobre o 9 de abril falava numa experiência inaudita, uma explosão de violência, um caos, um dia verdadeiramente aterrador. Ninguém estava à espera que a guerra pudesse ser assim. Também falava da experiência do cativeiro, das privações que tinha passado, mas em geral era preciso perguntar-lhe sobre a guerra mais do que propriamente ser ele a falar.

Muita gente que viveu essas experiências diz que não vale a pena tentar explicar a quem não esteve lá porque nunca há-de perceber.

Exatamente. É uma experiência tão única, tão diferente, que quem nunca tenha passado pela guerra nunca entenderá. Como muitos antigos combatentes, o meu avô procurava a companhia de outras pessoas que tivessem passado por aquele conflito, por haver o entendimento de uma experiência comum. Então sim, podiam falar sobre o que tinha acontecido.

Gostava que me fizesse um ponto de situação do Exército Português em 1917. Era um exército ativo, que tinha combatido recentemente?

Antes de o Exército português partir para França, a sua experiência recente de combate vem de África, são as campanhas ditas de pacificação, sobretudo em Angola e Moçambique, mas também noutras colónias.

Mas em África era diferente…

Era completamente diferente. Havia uma desigualdade tecnológica muito, muito, muito grande. O principal inimigo em África eram as condições, eram as doenças – morriam sempre mais soldados devido a doenças do que propriamente à ação do inimigo. Do tipo de guerra europeia não há experiência desde os tempos napoleónicos. Grande parte da vida do Exército português é a vida de caserna, de quartel, realiza-se uma manobra anual, mas é um exército pobre, mal equipado, com oficiais velhos, em que o mérito não é reconhecido – as promoções são pela antiguidade, não pelo mérito demonstrado pelo oficial.

Podemos dizer que o Exército estava um bocadinho ‘enferrujado’?

Estava ‘enferrujado’ e sobretudo não havia forma de identificar quem eram os melhores e quem eram os piores oficiais, quem devia e quem não devia ir. Apesar de pequeno, o CEP [Corpo Expedicionário Português, força de 35 mil homens que foi enviada para o palco da guerra, depois reforçada com mais 20 mil homens, num total de 55 mil] vem absorver praticamente todos os recursos militares do país. Durante a guerra fala-se muito na necessidade de criar mais oficiais para substituir aqueles que eram ineficientes ou de promover sargentos a oficial. Mas isso era muito difícil, tendo em conta as debilidades estruturais do país. Temos um país com 70% de analfabetos, o Exército também conta um número enorme de analfabetos, e não se podem transformar analfabetos em oficiais.

Imagino que muitos saíram do país pela primeira vez…

Claro. Alguns, antes de serem recrutados, nem nunca tinham saído da sua terra natal.

E como foi esse contacto com um país estrangeiro?

Muitos portugueses tinham o fascínio de França, mas essa França eram os restaurantes, os cabarés, as lojas, a vida de Paris. A Flandres, a província francesa, as suas gentes e o seu modo de viver, tudo isso era um mistério. Os soldados sofrem muito porque não falam francês. Têm de lidar com uma população civil que está a tentar beneficiar com a guerra, e as relações não são fáceis. Os soldados portugueses recebiam um soldo muito mais pequeno do que o dos britânicos, portanto tinham menos dinheiro para gastar, eram menos atraentes como clientes para os donos de lojas, estaminés e restaurantes. Há muitos relatos escritos por oficiais que tentam não referir esses conflitos e que criam a ideia de um soldado português que se adapta com facilidade, que desperta enormes paixões nas mulheres francesas, mas lendo a documentação oficial fica-se com a ideia de que as coisas não foram assim tão fáceis.

Como foi o CEP preparado para participar no conflito?

Primeiro há umas manobras e uns treinos ainda bastante rudimentares em Portugal, em Tancos. Quando chegam a França são então treinados na arte moderna da guerra sob tutela britânica. Os ingleses queriam ser eles a treinar diretamente homens e oficiais, mas os portugueses dizem: ‘Não, têm de ser oficiais portugueses a ensinar os outros oficiais e os soldados’ e por isso vai um primeiro lote de oficiais que é treinado pelo exército britânico para se tornarem instrutores. Feito esse segundo treino, começam então a subir às linhas da frente. Primeiro vão companhias, inseridas em batalhões britânicos, depois vão batalhões, inseridos em divisões britânicas, e depois então vai a divisão inteira para a linha da frente.

Sabemos que entre os franceses e alemães havia no início da guerra alguma bazófia, acreditavam que venceriam a guerra com rapidez e facilidade. Entre os portugueses o estado de espírito era diferente?

Sim. Para começar porque, sendo um contingente pequeno no meio daquela imensidão da Frente Ocidental, percebia-se que os portugueses não iam fazer a diferença. Os portugueses nunca trariam a chave da vitória. Havia a sensação de que a única coisa que podiam fazer de facto era morrer. Bastava uma grande batalha como a do Somme ou a de Verdun – e já as tinha havido quando os portugueses lá chegaram – para desaparecerem todos de um dia para o outro. As possibilidades da nossa intervenção contribuir para a vitória eram questionáveis e então fica a ideia de um sacrifício que será feito à custa deles.

O oficial João Ferreira do Amaral falava na ‘mentira da Flandres’. Que mentira era essa?

O livro de memórias dele – que é um livro bastante amargo – chamava-se ‘A Mentira da Flandres… e o Medo’. A mentira a que ele se refere é dizerem que o envio do CEP é essencial e que era a vontade nacional ter aquele exército em França. Ele diz que não é. Atenção que Ferreira do Amaral já tinha combatido em Angola e decide ir para França numa altura em que nem estava escalonado para ir, por isso é alguém que não está a fugir ao dever nem pode ser acusado de cobardia. Como oficial vai, mas acha aquilo desnecessário.

Refere que quando os primeiros soldados portugueses lá chegam estão 18 graus negativos. Iam equipados para tanto frio?

Acho que ninguém estava equipado para aquele frio. Não é um frio comum em França, foi um inverno excecionalmente rigoroso, e não, não estavam preparados para tais temperaturas. Felizmente para eles, isso é quando chegam os primeiros navios, e ainda estão no porto de Brest, não estão ainda em campo aberto. Mas todo o trajeto até chegar a Aire-sur-La-Lys, o ponto de reunião, ainda é feito sob essas temperaturas. E é um choque muito grande. São muitos os soldados que adoecem nesse primeiro contacto com a França. E há muitos – isso é que espanta forma os britânicos – que já vão doentes. Tuberculosos, sifilíticos, enfim, toda uma panóplia de doenças que o CEP leva consigo para França.

Dá ideia de que os britânicos a certa altura encaram os portugueses quase como um empecilho. É exagerado dizer isto?

Não, não é. Eles têm dúvidas sobretudo sobre o valor dos oficiais. E também esperavam uma total adesão dos portugueses aos métodos e às práticas britânicas, e o que vemos é uma relutância de grande número dos oficiais, e especialmente do Estado-Maior, em aceitar essa subordinação. E isso irrita sobremaneira os britânicos.

Ao fim dessa preparação os portugueses estão aptos para combater um exército altamente bem treinado e eficiente como o alemão?

É um processo cuja lentidão frustra muito o exército britânico, que está a ceder parte da sua frente aos portugueses e tem algumas dúvidas sobre se eles são capazes. No verão de 1917 ainda estão a chegar tropas portuguesas para a segunda divisão, e os britânicos começam a sugerir que só houvesse uma divisão na frente e outra à retaguarda, para permitir que as unidades descansassem. Têm o receio de dar demasiada frente de combate aos portugueses, mas a política fala mais forte. Creio que mesmo assim, e apesar de todas as dificuldades com que o CEP se deparou, a sua prestação militar foi melhorando. Em março de 1918 as duas divisões estão lado a lado nas trincheiras e são frequentemente visadas por ataques de artilharia constantes, mas também por raides às trincheiras que conseguem repelir. Nessa altura os portugueses estão eles próprios a efetuar os seus raides às trincheiras alemãs, demonstrando um espírito de iniciativa e uma capacidade que antes se calhar não tinham. Mas há aqui um paradoxo: a prestação militar do CEP está a subir, mas o seu estado moral está a decair e chega a um ponto de rutura em finais de março, em que começam a dar-se motins entre unidades portuguesas. Soldados da retaguarda que se recusam a regressar às trincheiras, que dizem que precisam de reforços, estão cansados, estão fartos de ser sempre eles. E há a questão das licenças: os oficiais podem ir de licença a Portugal, os soldados e os sargentos não podem, o que cria uma grande sensação de injustiça.

Como era a vida nas trincheiras? Muita lama?

Naquela parte da Flandres era difícil cavar trincheiras porque aparecia logo água. As trincheiras eram pouco fundas e o que havia era sacos de areia a fazer um muro para proteger os soldados, o que demonstra que tudo aquilo era um bocadinho frágil. Porque é que deram aquele setor aos portugueses? Porque, precisamente por causa da natureza do terreno, se julgava que era impossível haver avanços grandes de infantaria. Depois de um bombardeamento, pôr a infantaria a marchar ali criaria um enorme lamaçal e seria difícil avançar. Mas nos meses antes de 9 de abril chove muito pouco e o terreno endurece. Os alemães apercebem-se disso, que é possível um avanço fulgurante porque o terreno está seco, e dá-se o ataque.

Como eram as dormidas, as refeições, o quotidiano nas trincheiras?

Tirando as sentinelas, há uns abrigos onde os soldados passam a noite. A vida das trincheiras é muito desgastante. É o frio, a chuva – neste caso choveu menos, mas a chuva tinha sido uma constante até então –, são as ratazanas, os mortos que não se podem ir buscar porque estão na terra de ninguém, as latrinas que nem sempre são bem despejadas. Há todo um conjunto de circunstâncias que tornam aquela vida suportável apenas alguns dias de cada vez.

Além da própria guerra…

Além do perigo de fazer a guerra, claro.

Recordo-me de nas aulas de História se insistir muito na falta de equipamento e de preparação. Acha que o desastre de La Lys resultou disso ou da estratégia militar?

São dois os grandes problemas. Um é que as unidades do CEP estão muito enfraquecidas porque desde finais de outubro que não há reforços, as baixas não são substituídas. E depois a missão é de sacrifício. Os portugueses têm de aguentar as duas primeiras linhas. Numa ofensiva de grande porte essas linhas são quase sempre conquistadas. Acontece também que os alemães atacam de uma forma nova que ninguém sabe bem ainda como travar. Aproveitam a noite, há nevoeiro, fazem uma barragem de artilharia rápida mas muito eficaz, que corta as comunicações aos portugueses. As linhas telefónicas estão cortadas, os caminhos que levam às várias unidades estão sempre a ser batidos pela artilharia, é impossível o general Gomes da Costa contactar as suas unidades e saber o que se passa. O CEP está de certa forma paralisado, está cego e os alemães vão enviando as suas tropas de elite ainda durante a barragem. Por isso eles vão avançando, vão explorando as linhas portuguesas e onde há uma cratera aberta pela artilharia, eles vão entrando e, combatendo o mínimo possível, vão-se infiltrando. Quando há uma pausa, os portugueses percebem que têm alemães atrás. ‘Como é que isto aconteceu? Estamos cercados, fomos traídos, houve aqui qualquer coisa inexplicável’. Uma onda de pânico apodera-se do CEP e os portugueses começam a retirar.

A ofensiva funciona como uma espécie de pega de touros, em que há o forcado da cara – neste caso a primeira linha – que depois é apoiado pelas segundas linhas, até conter por definitivo o ataque?

A ideia é ir desgastando, travando o avanço, que acaba sempre por parar. Na Primeira Guerra Mundial o atacante está a andar, literalmente, por isso o ataque realiza-se à velocidade a que um soldado de infantaria, com mochila, com espingarda, com capacete de ferro, se consegue deslocar. É um avanço necessariamente lento, e a defesa tem uma logística, tem os caminhos-de-ferro atrás, podem ir sendo criadas novas linhas de defesa, podem ser enviados reforços de outros pontos, e assim vão-se montando sucessivas linhas de defesa e o ímpeto acaba por quebrar. Mas os coitados que estão nas primeiras linhas, esses vão sempre ser sacrificados.

Nesse sentido os portugueses eram quase carne para canhão para aguentar o adversário?

Eram carne para canhão, mas é preciso ter em conta que por esta altura os britânicos já tinham sofrido mais de um milhão de baixas, entre mortos, feridos, prisioneiros, estropiados e gaseados, por isso tinham mais do que…

Legitimidade?

Tinham uma legitimidade moral enorme de dizer: ‘Nós seguramos centenas de quilómetros, mas neste bocadinho da frente de combate são vocês. Era o que vocês queriam, vir para a guerra, aqui é o vosso ponto, e vocês têm esta missão. É aqui que vocês vão combater, é aqui que provavelmente vão morrer. Mas os reforços serão enviados e vocês têm de aguentar o máximo possível’. E foi isso que não aconteceu.

Foi a retirada caótica que deu aos portugueses a fama de incompetência que os outros lhes colaram?

A divisão britânica a Sul do CEP, que é a 55.ª, aguenta, e continua a defender o seu terreno. O CEP cede e a norte havia a 40.ª divisão britânica que também cede e tem de recuar. Mas recua combatendo, e com alguma disciplina. Perde muitos homens, há muitos que são capturados, mas há um comando que continua operacional. O CEP não consegue. A retirada torna-se uma derrocada, e quando o general Haking pede a Gomes da Costa para ajudar a assegurar a defesa da linha dos rios, que deverá ser mais fácil, Gomes da Costa tem de confessar que já não consegue. Muitos dos homens abandonaram as armas no caminho para recuar mais depressa e a retirada transformada em derrocada vem de forma cruel confirmar muitos dos preconceitos britânicos sobre os portugueses. Há toda uma série de anedotas e de histórias bastante cruéis sobre essa derrocada que depois são reproduzidas no exército britânico.

E valeu a pena o sacrifício humano?

Há duas questões. Uma é porque é que Portugal entrou na guerra, a outra é porque é que Portugal enviou o CEP. Parece-me que Portugal não poderia escapar à guerra, por causa das questões africanas e da vizinhança entre as colónias portuguesas e alemãs. O envio do CEP parece-me um excesso de voluntarismo, assente num cálculo errado de que era necessário enviar tropas para França para assegurar a República, para lhe aumentar o prestígio doméstica e internacionalmente e para criar uma nova imagem de Portugal no mundo. Acho que isso não é verdade. E sobretudo não perceberam que quanto maior fosse a contribuição portuguesa para o esforço militar em França, maior seria a nossa dependência dos britânicos, porque eram eles que alimentavam, municiavam, equipavam o CEP.

Poderíamos ter participado sem enviar tropas para a frente?

Há o exemplo do Japão. O Japão entra em guerra com a Alemanha logo em 1914, conquista várias colónias alemãs asiáticas e atinge os objetivos a que se propôs. Mais tarde enviará alguns navios para ajudar a patrulhar o Mediterrâneo, mas está finda ali a sua guerra. Não deixa de estar representado na conferência da paz de Paris e não deixa por isso de manter as colónias alemãs que conquistou nem de auferir grande prestígio. Uma boa vitória militar em África teria tido muito mais impacto, creio eu, que a presença do CEP em França, que causou um grande desgaste à imagem de Portugal, à imagem do Exército, mas também feriu muito gravemente a própria república.

Acabou por sair cara aos políticos intervencionistas…

Aí é que está. Enquanto o exército francês e o exército britânico estavam em França para derrotar militarmente a Alemanha, o nosso exército está em França por fins políticos. E isso vai criar enormes problemas não só para os governantes mas para toda a república e vai ter um papel no nosso século XX que eles nem sonhavam.