La Lys. O centenário de uma tragédia anunciada

Ontem, na capital francesa, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa prestaram homenagem aos portugueses que combateram em La Lys. Com os seus 400 mortos e mais de 6 mil prisioneiros, a batalha será sempre recordada como uma das mais pesadas derrotas do Exército Português

Derrocada, colapso, desastre e hecatombe são algumas das expressões habitualmente usadas pelos historiadores para descrever a magnitude da derrota que o Corpo Expedicionário Português (CEP) sofreu às mãos do exército alemão em La Lys, a mais mortífera batalha da i Guerra Mundial (1914-1918) para os portugueses.

O primeiro contacto dos soldados nacionais com a França – país com que muitos sonhavam por causa dos boulevards, cabarés e restaurantes de Paris – fora um choque. As temperaturas impiedosamente baixas fizeram uma grande quantidade de doentes e a interação com os civis, que desejavam lucrar com a presença de tropas estrangeiras, também não correu de feição. A vida nas trincheiras era dura: além do frio, as condições sanitárias e os ratos constituíam obstáculos impossíveis de ignorar.

Pelas primeiras horas da madrugada de 9 de abril de 1918, o desconforto deu lugar à tragédia. As forças portuguesas da 2.a Divisão encontravam-se vulneráveis, enfraquecidas e desmoralizadas: apenas cerca de 15 mil homens tinham a seu cargo cerca de 40 quilómetros de defesas, um número claramente insuficiente, ainda para mais tendo em conta o desgaste provocado pela falta de substituição dos soldados na frente. Um primeiro bombardeamento, rápido e intenso, deu início às hostilidades no campo de batalha de La Lys.

“O CEP está cego e paralisado”

“Os alemães atacam de uma forma nova que ninguém sabe bem ainda como travar”, explica o historiador Filipe Ribeiro de Meneses, autor do livro “De Lisboa a La Lys – O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial” (ed. D. Quixote). “O que eles fazem já não é aquele avanço em massa dos primeiros anos da guerra, é algo muito mais inteligente. Aproveitam a noite, há nevoeiro, e fazem uma barragem de artilharia rápida mas muito eficaz, que corta as comunicações aos portugueses, que atinge os caminhos, as estradas, as trincheiras de comunicação. As linhas telefónicas estão cortadas, os caminhos que levam às várias unidades estão sempre a ser batidos pela artilharia inimiga, é impossível o general Gomes da Costa contactar as suas unidades e saber o que se passa. O CEP está de certa forma paralisado, está cego e os alemães o que vão fazendo é enviar as suas tropas de elite ainda durante a barragem, o que revela bastante coragem e iniciativa. Vão avançando, vão explorando as linhas portuguesas e onde há uma cratera aberta pela artilharia – ou onde a cobertura é menor –, eles vão entrando e, combatendo o mínimo possível, vão-se infiltrando. E quando então acaba essa barragem, quando há uma pausa, os aliados, e neste caso os portugueses, percebem que têm alemães atrás: ‘Como é que isto aconteceu? Estamos cercados, fomos traídos, foram os ingleses que os deixaram entrar, houve aqui qualquer coisa inexplicável.’

Incapazes de resistir, instala-se o pânico entre os soldados, que começaram a recuar de forma anárquica. Quando, às 13h40, o general Gomes da Costa recebe dos britânicos ordens para defender a linha do rio Hawe, uma tarefa mais fácil por se tratar de uma barreira natural, tem de confessar que já não existe uma cadeia de comando que funcione.

Histórias cruéis

“A natureza da retirada transformada em derrocada vem de forma cruel confirmar muitos dos preconceitos britânicos sobre os portugueses”, continua Ribeiro de Meneses. “E há toda uma série de anedotas e de histórias bastante cruéis que depois são reproduzidas dentro do exército britânico sobre essa derrocada.”

As estimativas das baixas portuguesas em La Lys variam. O livro de Ribeiro de Meneses refere que “perto de 400 portugueses morreram, muitos mais ficaram feridos e o número de prisioneiros rondou os 6600”. Um deles era o oficial Mário Ribeiro de Menezes, avô do historiador, que seria primeiro dado como morto, sabendo-se depois que fora capturado, ficando até novembro em cativeiro na Alemanha. “Como muitos antigos combatentes, o meu avô tinha relutância em falar sobre a experiência”, refere o neto. “Mas de vez em quando fazia-o e sobretudo sobre o 9 de abril falava numa experiência inaudita, de uma explosão de violência, de um caos, de um dia verdadeiramente aterrador. Ninguém estava à espera que a guerra pudesse ser assim.”

O que foi a Batalha de La Lys?

A Batalha de La Lys decorreu na planície do rio Lys, no norte de França, perto da fronteira com a Bélgica. A ofensiva alemã foi desenhada pelo general Ludendorff, que se apercebeu quer das condições meteorológicas favoráveis (não chovia há bastante tempo, o que permitia o avanço rápido da infantaria), quer da vulnerabilidade do exército britânico naquela região. Circulavam, entre britânicos e portugueses, informações de que estava a ser preparada uma ofensiva alemã para aqueles dias, mas desconhecia-se o momento exato e a intensidade. Todos foram, por isso, surpreendidos pela violência do ataque.

A batalha envolveu cerca de 84 mil homens do lado britânico, entre os quais se contavam cerca de 20 mil do Corpo Expedicionário Português, que Afonso Costa, enquanto primeiro-ministro, fizera questão de enviar para a Flandres para participar nos combates e, estando do lado dos vencedores, aumentar o prestígio de Portugal e reforçar a sua posição no mundo. O resultado foi precisamente o oposto: os portugueses, desgastados e com o moral em baixo, não conseguiram suster a força do ataque alemão e sofreram pesadas baixas – 400 mortos, grande número de feridos, 6600 prisioneiros. A nível interno, La Lys foi uma tragédia nacional. A nível externo, o CEP tornou-se objeto de anedotas do exército britânico.