Smalloch (Companhia das Ilhas, 2018) é um livro estranho, ríspido na sua quietude, e Alexandre Sarrazola, autor publicado desde 2007, uma ave rara num momento em que os prosadores da praça se apoiam em facilitismos como viagens exóticas ou personagens de uma insanidade pouco convincente. Silenciosamente, continua a entrelaçar o fio da sua tapeçaria efabulatória e acrescenta mais um local a uma cartografia estranha nas letras portuguesas.
Não são raras as vezes em que, contando a alguém a nossa experiência de leitura de um livro, acabamos a compará-lo a um filme ou a uma pintura, como se por esses leques imagéticos fosse mais fácil transmitir as nossas impressões. Na maioria dos casos essa escolha revela-se desajustada, tanto para o livro que lemos como para as alusões que fazemos. No entanto, estamos perante uma excepção à regra, livro breve inscrito nesse grupo restrito, que, à semelhança do seu antecessor (Kinderszenen, 2015), nos remete para um retalho de narrativas breves interligadas por um halo que abriga em si «um burgo muito pequeno de não mais do que setecentos habitantes que crescera na extremidade aplainada de um istmo, numa restinga barrenta e ocre que os forasteiros diziam parecer flutuar nas águas escuras do lago», que melhor se mapeia falando de outras artes e de outros modos de ver. E há espaço e engenho para quase todo o tipo de pinceladas e movimentos de câmara: passagens bíblicas, profissões alegóricas, crianças malvadas, comediantes, albinos de punhal em riste, saguis, muitas pérolas espalhadas num enorme lodaçal.
Se ao nosso lado se quedar um céptico que insiste em que lhe contemos uma história e lhe falemos de estruturas, podemos começar por revelar que os cinco episódios que encontrará (Dorf; Uhrmarcher; Schnuster; Komödianten; Die Verdammten) foram publicados separadamente na revista Cão Celeste, do nº 3 ao 7. Depois, tacteando a bruma que oculta as ânsias e motivações das personagens deste pequeno burgo, chegamos às linhas exteriores dos rostos de Isahia, Abraham e Ezra, três condenados à morte que irão ser enforcados numa manhã de Maio, no dia de São João Nepomuceno. Todo o livro se ritma por essa espera e desde o início as pessoas entretêm-se: «Ali ao redor já se vendiam maçãs caramelizadas, algodão doce e saquinhos de chita com sementes de sésamo e poalha de alfazema para atirar aos enforcados. Em breve o éter cheiraria a toucinho fumado, couratos e a vinho quente temperado com cravinho».
Temos ainda Noah, o sapateiro que no seu bote vai até ao centro do lago para chorar; Jonas, o carpinteiro que estoicamente testa a eficácia do alçapão pela manhã; Egon Rosenblum, o miúdo que mata gatos, esbofeteia o resto da criançada e rouba berlindes; Staaze, o alcaide, e muitos outros espectros fantasmagóricos que se movem diante de nós como símbolos.
Neste festim de nomes bíblicos é conseguido o mais difícil: criar empatia percebendo que as motivações das personagens são anteriores a esta manhã relatada e que não nos será dada nenhuma chave para a compreensão. Queremos saber o desfecho dos três condenados, se o alçapão funcionará, se Egon será castigado pela sua maldade ou o que raio faz o albino neste livro. Neste cenário (séc. XIX?), que parece querer contar-nos um segredo terrível do que irá acontecer a esta gente, nós lemos para saber, o que mostra que não estamos perante meros exercícios técnicos do autor para consigo mesmo.
Temos ainda que referir a linguagem que, como nos livros anteriores de Sarrazola, enche as medidas, atingindo uma concisão admirável que se alia a um vocabulário vasto e rigoroso, sempre necessário à cristalização da frase-flash, essencial à captação de um estado de espírito. Não será despropositado trazer à conversa a primeira vez que descobrimos as polaróides de Andrei Tarkovsky ou La jetée de Chris Marker, como exemplo do que a escrita encantatória de Sarrazola pretende conseguir. Um espaço de sonho e pesadelo:
«Uma linha perolada corria-lhe pela face quando estendeu os dedos esguios, transparentes, para o topo do piano vertical e, de entre dois candelabros, recolheu a velha reprodução do Livro de Kells. Ezra, Isahia e Abraham sentaram-se ao seu redor e foram-lhe descrevendo as iluminuras dos folios, as expressões dos evangelistas e as cores de figuras sagradas bichos e anjos: interrompendo-se, tocando-se nas mãos, folheando ávidos o caleidoscópio das páginas, brincando com o Livro e afagando o rosto de Candela. Aqui a tinta preta, ali amarelo, vermelho, rosa e violeta: pigmentos de ouro, sulfato de arsénio, pó de malaquite e lápis-lazúli afegão de onde nasciam folio a folio espirais e zoomorfos (…) Enquanto gatos e netos a adoravam, esticou-se para uma das setenta e sete gavetinhas do contador e abriu duas; da primeira recolheu três pérolas (preciosas miudezas que em tempos Ruskin achara na praia à beira do sambuq) e escondeu uma por uma debaixo da língua de cada neto. Todos se beijaram nas testas e os rapazes saíram para a luz da tarde. Foi então que da outra gaveta se serviu das três ampolas de morfina e recostou naquele benfazejo e salvífico sono já quase eterno. Lá fora um cúmulo azul petróleo e azeviche toldou o Sol e os vitrais da janela fecharam-se de cores num chumbo liquefeito, invadindo o espaço interior de uma trémula sombra de obsidiana».
Olhando para o objecto, vemos um livro simples e sóbrio, elegante, onde o preto é rei e senhor, servindo de casa às epígrafes proféticas e aos separadores em alemão. As ilustrações de Daniela Gomes não adiantam muito, talvez pelo texto se aguentar tão bem, mas estão longe de parecerem cartas fora do baralho. E, atendendo ao historial do autor, onde a fotografia e a ilustração são companhia habitual do que escreve, talvez sejam até necessárias, por razões que desconhecemos.
No final, lemos na ficha técnica, meio estupefactos, meio resignados, que à semelhança de Kinderszenen também a primeira tiragem deste livro foi de 100 exemplares. Depois disso, segundo o editor, Kinderszenen teve direito a mais 50 exemplares e Smalloch a 24 exemplares. Se recuarmos até 2014 chegamos a Neófitos (ed. Averno), a sua estreia em prosa, que teve direito a 250 exemplares e ainda não esgotou. Isto evidencia que andamos quase todos distraídos ou que Sarrazola não se encaixa numa lógica mercantil do livro de ficção portuguesa?
Sarrazola, no que à sua prosa diz respeito, não partilha afinidades claras com ninguém da sua geração. Nascido em 1970 é uma peça inserida, cronologicamente falando, entre nomes consagrados pela crítica ou pelo público: Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, Valter Hugo Mãe, João Tordo, Alexandra Lucas Coelho, Patrícia Portela. Contudo, torna-se evidente que estes quadros bruegelianos montados com erudição e frieza à margem da edição mainstream, só a ele pertencem. Como se a penumbra e a descrição estivessem ao serviço da maturação destes pequenos mundos de que Smalloch é apenas uma peça.
Há livros que se estão nas tintas, outros pedem, este exige. Uma coisa bem simples na verdade: que o potencial leitor, o que ainda não baixou definitivamente os braços neste mundo de ecrãs e linguagem tecnocrata, seja um curioso sem pudor e que não se perca nas fáceis distracções do fogo de artifício, para que assim não acabe como os habitantes de Smalloch que não repararam na subida lenta mas persistente das águas.