“Em todos os lugares onde me instalei, começou a crescer uma biblioteca como que por geração espontânea. Colecionei livros em Paris, em Londres, em Milão, no calor húmido do Taiti (os meus romances de Melville ainda têm traços de bolor polinésio), em Toronto e em Calgary. Depois, quando chegava a hora de partir, embalava-os em caixas e obrigava-os a esperar com a paciência possível em arrecadações tumulares, na esperança incerta da ressurreição”.
Durante a maior parte da sua vida Alberto Manguel habitou, “como a maioria das pessoas, em casas pequenas onde não tinha espaço para os meus livros”. Em 2000, depois de décadas de errância, comprou um antigo presbitério de pedra em Mondion, França, suficientemente espaçoso para nele instalar a sua gigantesca biblioteca. Os 35 mil a 40 mil volumes – nem o próprio sabe ao certo o número exato – que foi reunindo ao longo dos anos tinham finalmente encontrado uma casa onde repousar.
“O jardim murado era um lugar extraordinariamente silencioso. Todas as manhãs, pelas seis, eu descia ainda meio a dormir, fazia um bule de chá na cozinha escura com vigas e sentava-me com a nossa cadela no banco de pedra lá fora, para ver a luz da manhã trepar o muro ao fundo. Depois, ia com ela para a minha torre, anexa ao celeiro, e lia. Só o canto dos pássaros (e, no Verão, o zumbido das abelhas) rompia o silêncio”, escreveu o bibliófilo em “Embalando a Minha Biblioteca – Uma Elegia e Dez Divagações” (ed. Tinta da China), um pequeno livro de memórias no qual a história da vida do autor e a história da sua biblioteca se confundem.
Manguel – a quem o intelectual George Steiner chamou “o Don Juan da leitura” – viveu naquela espécie de retiro em Mondion durante 15 anos, até que uma questão administrativa e uma proposta de trabalho “que não podia recusar” o levaram a mudar-se para Nova Iorque.
Uma grande biblioteca pode ser uma bênção e um consolo para o seu proprietário. Mas ocupa necessariamente muito espaço e pode também, por isso, tornar-se um fardo demasiado pesado e difícil de manejar. “Só aqueles que já passaram por essa experiência é que conseguem ter noção do trabalho que dá transportar e arrumar alguns milhares de volumes”, escreveu o britânico Anthony Trollope na sua autobiografia. “Neste momento possuo cerca de cinco mil que me são mais queridos do que os cavalos de que consigo separar-me, ou do que o vinho da minha cave, que tem uma certa tendência para desaparecer e de que também me orgulho”.
Há quem possa dar-se ao luxo de comprar casas para os seus livros. Antoine-Marie-Henri-Boulard, autarca de Paris no tempo de Napoleão, “acabou por encher nove ou dez prédios adquiridos para neles instalar os seus 600 mil volumes”, conta Jacques Bonnet em “Bibliotecas Cheias de Fantasmas” (ed. Quetzal).
Mas nem todos têm tanta sorte – ou tantos meios.
Vivendo num apartamento “mesmo, mesmo minúsculo”, em Nova Iorque, Manguel teve de deixar para trás a sua biblioteca. Como já acontecera noutras ocasiões, escolheu alguns exemplares de que não consegue separar-se – como Alice no País das Maravilhas, o seu D. Quixote, a Bíblia, as obras de Dante e de Borges e alguns dicionários – e, com a ajuda de amigos vindos da Europa e até do Canadá, arrumou os restantes em caixotes, que seguiram depois para um armazém.
“No dia em que deixei a minha biblioteca em França pela última vez”, recorda em “Embalando a Minha Biblioteca”, “senti-me desesperadamente infeliz, e ‘martelaram-me a cabeça’ vagas de frases memorizadas acerca de vingança e fúria e desespero”.
O “oblívio voluntário” Se o ato de desembalar corresponde, como o de desembrulhar um presente, a um momento luminoso de descoberta, embalar os objetos de que mais se gosta pode revelar-se uma tarefa penosa.
“Por volta de 1931, Walter Benjamin escreveu um ensaio breve e hoje famoso acerca da relação entre os leitores e os seus livros. Chamou-lhe “Desembalar a minha Biblioteca: um discurso acerca da arte de colecionar” e aproveitou a ocasião de retirar de caixotes os seus quase dois mil livros para discorrer sobre os privilégios e as responsabilidades de um leitor”, diz-nos Manguel no seu livro, que é uma espécie de antítese do de Benjamin.
“Desembalar, como percebeu Benjamin, é uma atividade expansiva e desordenada”, continua Manguel. “Libertos dos seus limites, os livros espraiam-se pelo chão ou empilham-se em colunas instáveis, à espera dos lugares que lhes serão atribuídos”.
“Embalar, pelo contrário, é um exercício de esquecimento. É como ver um filme de trás para a frente, consignando narrativas visíveis e uma realidade metódica, para as regiões do distante e do não visto, um oblívio voluntário. […] Se desembalar a biblioteca é um ato selvagem de renascimento, embalá-la é sepultá-la ordenadamente antes do julgamento aparentemente final”.
Um berço feito de livros Nascido em Buenos Aires em 1948, filho de um advogado que seria apontado embaixador em Israel por Juan Perón, Alberto Manguel foi criado por uma ama checa fugida do nazismo. “Uma das minhas memórias mais antigas (devia ter dois ou três anos na altura) é de uma prateleira cheia de livros, na prateleira acima do meu berço, da qual a minha ama escolhia uma história de embalar. Foi a minha primeira biblioteca”, recorda no livro.
A família vivia então em Israel, onde permaneceu até Manguel ter sete ou oito anos. “Quando Perón foi deposto voltámos, o meu pai foi preso e ficámos a viver em Buenos Aires”, confidenciou numa entrevista ao i em outubro de 2015.
“Depois veio a biblioteca da minha adolescência que, construída durante os anos de liceu, continha quase todos os livros a que hoje ainda atribuo valor. Ajudaram-me a criá-la professores generosos, livreiros apaixonados e amigos para quem a oferta de livros era um gesto supremo de intimidade e confiança. Os seus fantasmas assombraram amavelmente as minhas estantes e os livros que eles me deram ainda transportam as suas vozes”, podemos ler em “Embalando a Minha Biblioteca”.
Na capital da Argentina, porque “queria ter dinheiro no bolso para comprar livros e sair com os meus amigos, mas especialmente para comprar livros”, foi trabalhar para uma livraria, onde conheceu o grande escritor Jorge Luis Borges, que, afetado pela cegueira, contratou o jovem para ser seu leitor.
“Eu lia para ele na sala de estar do pequeno apartamento onde Borges vivia com a mãe”, recordou na mesma entrevista ao i. “Havia um sofá onde Borges se sentava e eu sentava-me numa cadeira de braços. Atrás do sofá ficava a janela para a rua, que tinha duas estantes de cada lado com enciclopédias. Havia outra pequena estante, onde Borges tinha muitos dos seus livros, a separar a sala de estar da sala de jantar, e depois havia alguns livros no seu quarto de dormir. Ele tinha muito poucos livros – uns 500 ou 600”.
Em 1969 Manguel trocou Buenos Aires pela Europa, para visitar alguns dos lugares que só conhecia através das páginas de livros. “Suponho que, se tivesse ficado [na Argentina], como tantos amigos, me teria visto obrigado a destruir a minha biblioteca, por medo da polícia, dado que, naqueles tempos terríveis, podíamos ser acusados de subversão meramente por sermos vistos com um livro de aparência suspeita (um conhecido meu foi preso e acusado de comunismo por ter consigo O Vermelho e o Negro, de Stendhal)”, explica em “Embalando a Minha Biblioteca”. “Os canalizadores argentinos nunca foram tão solicitados, dado que muitos leitores tentaram queimar os seus livros nas sanitas, o que fazia a porcelana partir-se”.
Perto de cinco décadas depois de ter deixado Buenos Aires, Manguel regressou à sua cidade natal. Numa reviravolta curiosa e surpreendente, no Verão de 2016 passou a ocupar o lugar que outrora pertenceu a Borges entre 1955 e 1973 – o de diretor da Biblioteca Nacional Argentina.
Tornava-se, assim, o guardião de uma das mais antigas e prestigiadas instituições da América Latina: agora tem a seu cargo nada menos do que 900 mil volumes, 55 mil títulos de publicações periódicas, 30 mil fotografias, 12 mil mapas, 300 mil partituras, 70 mil registos sonoros, cinco mil imagens em movimento e cerca de 70 arquivos. Dificilmente um amante de papel e de livros poderia desejar um presente mais generoso.