A semântica socialista e governamental dos últimos dias está a lembrar perigosamente o famoso ‘discurso do diabo’ que durante dois anos Pedro Passos Coelho encarnou. A ascensão de Rui Rio à liderança do PSD afastou os sociais-democratas da narrativa tremendista que o tempo se encarregou de confirmar ser errada. Suspenso pelo PSD o discurso do diabo é agora, num daqueles paradoxos deliciosos que a vida e a política têm, retomado pelo Governo e PS.
«PCP e BE sabem que, se as contas correrem mal, vai tudo por água abaixo», disse esta semana o presidente do PS e líder parlamentar, Carlos César. Os socialistas já se podem dar ao luxo de desafiarem desta forma quem os colocou no Governo. Com as sondagens no estado em que estão, uma crise política daria imenso jeito ao PS, abrindo-lhe a possibilidade de chegar rapidamente a uma maioria absoluta.
A esquerda tende a demonizar Mário Centeno, mas concentrar as energias em Centeno é de certa forma ‘proteger’ António Costa. Vamos lá a ver: a estratégia de Centeno é efetivamente a do primeiro-ministro. Não é Centeno que manda em Costa. Acontece que agora dá mais jeito a Costa que Centeno, que sempre foi um liberal moderado, seja agora mais igual a si próprio. O pragmatismo de Costa e Centeno colocaram ambos a negociar com comunistas e bloquistas, exclusivamente porque isso era estritamente necessário à existência do seu Governo. Agora, Bloco e PCP tornaram-se dispensáveis. A maioria absoluta conquista-se ao centro e é para aí que Costa, o mais pragmático dos pragmáticos, hoje governa. Com Rui Rio disponível para tudo, a margem de Costa disparou. Já não precisa da esquerda para nada. Se a maioria absoluta falhar, pode negociar a seu bel-prazer. Mesmo o PSD que atualmente hostiliza Rui Rio, vai adorar se tiver uma oportunidade para chegar ao poder. Costa, que perdeu as eleições em 2015 – eventualmente por causa do fantasma do alegado despesismo socialista – tem agora o mundo a seus pés.
PCP e Bloco, pelo contrário, vão ter muitas dificuldades até ao fim da legislatura. Nas autárquicas, o PCP já sofreu na pele as consequências de ter dado apoio ao Governo que executa «políticas de direita, mais próximas do PSD e do CDS».
O Governo e o PS hoje estão rigorosamente ao centro. O discurso em defesa da contenção orçamental faz demasiadamente lembrar o de Passos Coelho, que pré-anunciou o ‘diabo’ várias vezes. Só que o diabo agora veste casaco aos quadrados, é comparado a Tony Blair pela Bloomberg e incensado pela Economist. O mundo mudou e alguns ficaram para trás.