Jorge Cid. “Os políticos já perceberam que os animais dão votos”

O presidente da Ordem dos Médicos Veterinários garante que o medo da lei dos maus tratos a animais aumentou muito o número de  abandonos 

Não chega fazer leis. Não chega aplicar multas. A questão dos animais em Portugal exige, sobretudo, que se ensinem as pessoas a perceber como tratar os animais. Jorge Cid, bastonário dos médicos veterinários, garante que Portugal continua a ter um longo caminho a fazer nesta matéria. O país continua a não ter capacidade de resposta para situações de catástrofe e a seguir a lógica de uma medicina low cost. 

Lisboa recebeu este fim de semana o Encontro Nacional de Médicos Veterinários e um dos temas em destaque foi a gestão que é feita durante as catástrofes. Depois dos incêndios do ano passado, percebe-se que este é um dos grandes desafios?

Em Portugal, ainda não há plano nenhum de contingência para catástrofes. Portanto, não há nenhuma resposta organizada para dar em caso de catástrofe, seja incêndios, cheias ou tremores de terra. A Proteção Civil só está preparada para a parte das pessoas em si. No que diz respeito à parte animal, ainda não há nada. Nós conseguimos, nestes incêndios, com a boa vontade dos médicos veterinários, fazer face em tempo recorde a esta problemática. Em 24 horas, tínhamos alimentação nos locais. Para pequenos animais é mais fácil porque qualquer pessoa transporta um saco de ração. Mas para grandes animais é difícil. 

Até porque o governo demorou algum tempo a dar resposta a estas situações...

Sim, demorou cerca de 10 dias, portanto, os animais teriam morrido todos. 

Mas, tendo por base o exemplo dos incêndios do ano passado, podemos ter um país dependente de ações solidárias?

Nós somos muito solidários e generosos, mas claro que a base não pode ser esta. Não se pode depender única e exclusivamente disso. Por isso, é que estivemos presentes numa reunião no Ministério da Administração Interna para solicitar que integrássemos a Proteção Civil. Esperamos conseguir começar, entretanto, a delinear um plano que possa fazer face a estas situações.

Com alguns produtores a terem de pagar máquinas para enterrar os animais levantam-se questões de saúde pública em casos como os do ano passado?

Claro. Uma máquina para enterrar os animais custa, em média, 40 euros à hora. Em primeiro lugar, é preciso ver que há poucas e, depois, temos as pessoas que perderam tudo a receber pedidos para gastar dinheiro nestes procedimentos. Muitas não tinham possibilidade nenhuma e isto levanta questões graves de saúde pública porque há contaminação. Além disso, a zona tinha muitos veados, corsos e javalis. Estes animais também morrem e ficam nos terrenos. E não se pode esquecer a questão da alimentação dos que sobrevivem.

O ideal era ter stocks preparados?

É evidente que esses stocks têm de estar preparados. Naquele caso, eu assumi, sem o poder fazer, a responsabilidade de gerir algumas situações. Mas o dinheiro da ordem é dos membros e eu não estava mandatado para isso. Mas achei que íamos ter a solidariedade dos portugueses e tivemos. Ainda sobrou algum dinheiro e conseguimos arranjar dinheiro para cerca de 400 ovelhas. Foi uma gota de água porque só na Serra da Estrela morreram cerca de 5 mil. Mas é uma gota importante. Naquela zona havia muitos problemas sociais. Havia muitas pessoas já de idade para quem a única razão de existência era ter ali duas ou três ovelhas ou um porquinho. 

Os animais são cada vez mais uma forma de combater a solidão?

Sim. Não é só uma questão de um suplemento de rendimento familiar, apesar de também ser. Ter animais é, muitas vezes, a forma que algumas pessoas têm de se sentir úteis. Já nas grandes cidades esta lógica acontece com os animais de companhia exatamente porque as pessoas sentem que têm ali alguma coisa que precisa delas.  
Existirem cada vez mais donos a tratar os animais de companhia como filhos tem a ver com este fenómeno?
Sim. Os animais desempenham um papel muito importante nestes contextos porque fazem com que as pessoas se sintam úteis. Quem exerce clínica e fala com estas pessoas percebe a dependência delas em relação aos seus animais. Senão, estão ali a passar o dia, à espera de morrer. 

Tratar os animais como pessoas é passar de uma visão utilitária para o outro extremo?

Os extremos nunca são bons. O animal de companhia tem um papel muito importante na sociedade e nas famílias, mas não substitui qualquer estrutura familiar. Faz é parte da estrutura. Até porque são lançados cada vez mais estudos que mostram a importância dos animais na prevenção de algumas doenças. Por exemplo, basta fazer uma festa a um cão ou a um gato e a tensão arterial baixa. Há muitos exemplos. Além de toda a parte psíquica. Agora, é evidente que, como em tudo, há excessos e os extremos são sempre complicados. 

No geral, diria que temos assistido a uma mudança na forma como as pessoas olham para os animais?

Há uma mudança muito grande, sim. Até porque a sociedade tem evoluído muito, apesar de não saber se para melhor ou para pior. Há pessoas que nem sabem quem são os vizinhos. Vivem ali todos juntos, mas nem se falam. Isto é uma imagem dos novos tempos. 

É isto que faz com que as pessoas se dediquem cada vez mais aos animais?

Sim e Portugal tem feito uma evolução enorme. Estávamos muito atrasados em relação à Europa, nomeadamente, França e Inglaterra. 

E, neste momento, estamos a par com a realidade de outros países?

Sim. Quer a nível do papel do animal de companhia no seio familiar, quer a nível da forma como os donos tratam dos seus animais e até na parte médica. As pessoas têm cada vez mais informação sobre a importância de tratar os seus animais. Antigamente, se os animais tivessem uma doença mais complicada, às vezes, as pessoas não estavam dispostas a gastar dinheiro e achavam que era melhor pôr um ponto final na situação. Hoje em dia, não. A maioria, desde que possa, trata os animais até ao fim. 

Este ano há a novidade das despesas no IRS. Estas conquistas ajudam?

Ajudam, claro. Mas continua a haver uma grande luta por causa do IVA [23%]. Não descanso enquanto não for abolido das consultas. É um escândalo e não tem qualquer sentido. Estamos a falar da única profissão na área da saúde que paga IVA. A medicina veterinária é saúde pública. Há doenças que são transmitidas dos animais para as pessoas. Os médicos veterinários fazem parte, aliás, da luta conta a resistência aos antibióticos, que poderá vir a matar mais do que o cancro. Ou seja, na saúde, estamos em tudo. Mas estamos fora na questão dos impostos. 

Portanto, acenar com a bandeira do IRS não é suficiente…

Não chega. Só se consegue descontar uma pequena parte que vai até 250 euros. É preciso ver que há uma percentagem enorme de pessoas com fracos recursos e que fazem grandes sacrifícios para tratar os animais. Muitas deixam de tratar porque não têm possibilidades pondo também em causa a sua saúde e a saúde das pessoas que convivem com elas. 

Quanto custa, em média, uma consulta em Portugal?

Posso dizer que hoje em dia a medicina é muito barata, mas é evidente que é muito dinheiro. As coisas não se podem confundir. As pessoas que acham caro é porque se habituaram a ir ao Serviço Nacional de Saúde e não sabem o que não estão a pagar. Pagam uma taxa moderadora e fazem-lhes tudo. Se as pessoas soubessem quanto é que custou aquela ida ao hospital, os exames que fizeram, já achavam que a medicina veterinária era baratíssima. Todos os aparelhos são caros e há alguns que são mais caros do que na medicina humana. Uma consulta custa, em média, entre 20 a 30 euros. Tirando o IVA, uma consulta no veterinário fica mais barata do que em outro médico qualquer. Aliás, não há profissão nenhuma que tenha os preços tão baratos como acontece com os médicos veterinários. Agora, também acontece as pessoas gastarem muito dinheiro porque os animais precisam de muita coisa. Mas estamos muito abaixo do que se faz na Europa. Hoje dia, quem quer fazer carreira nesta área tem pela frente um panorama de ordenado mínimo ou pouco mais. 

Está relacionado com o número de estudantes que temos nesta área?

Há muitos e a situação só não está pior porque muitos vão para o estrangeiro. Há muita procura, por exemplo, em Inglaterra. Se todos regressassem, não havia hipótese nenhuma de emprego. 90% dos alunos que acabam a faculdade querem ir para animais de companhia porque não há quase saídas alternativas. Ora, Portugal não consegue absorver isto.

O que justifica esta tendência?

Na minha opinião, é por ser mais mediático, mas também acontece um bocadinho por defeito das faculdades. Os estabelecimentos de ensino têm os seus próprios hospitais e clínicas, que financiam o próprio curso. No mínimo, é polémico porque funcionam como clínicas privadas. Os alunos acabam por ter mais preparação naquela área e é para ali que se viram. Mas é preciso mostrar que existem outras áreas porque estamos a formar pessoas para o desemprego. 

Este é um dos grandes desafios da profissão para os próximos tempos?

É. Não vamos dizer que deviam fechar faculdades. Deviam formar-se menos alunos. Mas, como as faculdades são pagas pelo número de alunos que têm, é óbvio que apostam em ter mais alunos. No fundo, o sistema está todo mal. Portanto, o Estado está a investir milhões na formação de pessoas que vão para o estrangeiro. Gasta-se o dinheiro para nem sequer haver retorno. Já os que ficam [a Ordem dos Médicos Veterinários tem, de momento, cerca de 6 mil membros ativos] não podem esperar grandes ordenados. 

Fazendo um retrato da profissão nos últimos anos, diria que temos mais profissionais?

Sem dúvida. E, dentro de alguns anos, vamos ter o quíntuplo porque a classe é muito jovem. E há uma tendência dos mais jovens tentarem angariar clientes recorrendo a preços mais baixos. Acho que a própria atividade veterinária e os seus profissionais deviam ser mais valorizados. 

Há falta de reconhecimento?

Há coisas que têm mudado, mas continua a haver espaço para muitas críticas. Quando se cobra dinheiro, há quem diga que parece impossível. Como se os médicos veterinários pudessem viver do ar. A pessoa tem de ganhar dinheiro como outro profissional qualquer. 

Esta perceção vem do hábito se ter uma visão utilitária dos animais?

Um bocadinho. Não é preciso recuar muitos anos para chegar a uma altura em que havia uma percentagem muito reduzida de pessoas que gastavam dinheiro com os seus animais. Quer a nível de medicina, que a nível de alimentação. Havia muita gente a dar restos de comida aos animais. Se um animal estava doente, dava-se uma mezinha qualquer. A esperança de vida dos animais também era menor. Temos vindo a acompanhar a Europa, onde algumas raças até são sinal de status. As pessoas estão muito mais informadas e tratam os seus animais de uma forma muito diferente. No entanto, é preciso não esquecer o Portugal profundo, onde nem sempre se entende que se gastem determinadas quantias com um animal. 

Nas despesas não entram apenas as consultas. A alimentação também pesa muito nos orçamentos familiares…

Se tiver um cavalo que me custou 200 mil euros, para não falar de outros números, pago uma alimentação de 6%. Se tiver um rafeiro em casa, pago a alimentação a 23%. Por isso, volto a dizer que isto está tudo mal. O conceito está todo errado. Mas, em Portugal, é difícil mudar as coisas. 

A lógica de que as rações mais caras são as melhores faz sentido ou já se encontram boas soluções a preços mais baixos?

Atualmente, já se encontram preços mais baixos. Mas as boas são sempre caras. O que aconselhamos sempre é que as pessoas perguntem ao médico veterinário o que devem fazer. Não digo que a mais cara é a melhor, mas digo que uma boa alimentação não pode ser muito barata. 

Há alguma coisa a ter em atenção quando se analisam os rótulos?

As pessoas devem sempre falar com os veterinários. As diferenças entre os animais são tão grandes que se tem de ter atenção. Há raças mais predispostas a determinadas doenças. É preciso ter planos de nutrição. Um animal obeso, por exemplo, é um animal predisposto a uma data de doenças. A nutrição tem hoje um peso muito grande na área clínica. 

Uma boa alimentação é uma forma de prevenir doenças e mais despesa?

É, claro. Acontece o mesmo que acontece às pessoas. 

E os donos são cada vez mais sensíveis a esta questão?

Sim. Existem cada vez menos pessoas que cozinham para os seus animais. Pode haver alimentação feita em casa, mas a tendência é cada vez menor. Até pela própria vida das pessoas. É muito mais fácil abrir uma lata ou um saco de ração. Talvez seja por isso que a alimentação tem subido muito ao nível europeu. Eu diria que fatura milhões. E vemos até as grandes superfícies a dar cada vez mais área à exposição de produtos para animais. É sinal de que vendem. Hoje em dia, os negócios em torno dos animais estão em crescendo. 

Um dos temas que tem sido muito debatidos é a entrada de animais em espaços comerciais e o que será melhor para os animais…

Mediatizou-se muito a questão. Não vou dizer se sou a favor ou contra, até porque represento os veterinários todos e há profissionais contra e a favor. Mas claro que posso dizer que isto é sobretudo uma questão de bom senso. Cada pessoa é que deve saber se o seu animal pode ou não pode. Eu conheço pessoas que levam o seu animal para todo o lado porque têm os animais muito bem educados. 

Será sempre uma questão de educação e não de sofrimento dos animais por estarem expostos a muita comida em locais como restaurantes?

É uma questão de educação. Há animais que estão muito habituados a estar sempre no exterior. É verdade que se tem feito muito no campo dos animais, mas ainda estamos muito aquém do que se passa noutros países. Basta ver outros países europeus, onde os cães passeiam na rua e ninguém aborrece ninguém. Já se fez muito trabalho na canicultura, mas estamos atrasados em relação a outros países. Quando se compra um animal em Inglaterra, a escolha é feita por causa do comportamento e não só pela beleza. Aqui, houve muita tendência para escolher os animais pela beleza. A parte do comportamento foi sempre deixada para segundo plano. 

Esta lógica da beleza pode estar na base de tantos abandonos por não haver preparação para a escolha que se fez?

Algumas vezes, sim. E quem faz clínica já acompanhou casos de animais com comportamentos muito difíceis e claro que isto é um fator que não ajuda. Mas o abandono tem a ver com muitas coisas. 

Quais são os principais fatores por trás dos números de abandonos que temos?

Há pessoas que se entusiasmam com os cães quando são pequeninos, mas depois os animais começam a crescer. A maioria dos abandonos acontece com animais que não são de raça. Não vemos muitos cães de raça abandonados. Ao contrário do que muitas vezes se faz passar, normalmente, quando alguém paga alguma coisa, dá-lhe valor. Portanto, não abandona.  

Mas temos o número de abandonos a baixar em Portugal?

Não. Ainda há muitos abandonos. Quando saiu a lei da criminalização de maus tratos a animais, devia ter havido um período de sensibilização das populações e não houve. Houve muita gente que abandonou os animais com medo da lei porque, em certas alturas, as pessoas não sabiam se estavam a tratar bem o animal ou não. Aconteceu muito nas províncias. Aparecia sempre alguém a meter medo porque não se podia ter o cão assim ou assado. E as pessoas, com medo, abandonaram os animais. Em Portugal, há tendência para autuar sem haver campanhas de sensibilização. Houve abandonos para evitar chatices com a lei e foi muito mau. Muitas vezes, fazem-se as leis na Assembleia da República e não se percebe que o Portugal profundo não é a Assembleia da República, nem Lisboa. Ainda há muita gente que não sabe ler, nem escrever e a verdade é o que os vizinhos dizem. Além disso, mesmo o conceito de tratar bem é diferente. Uma pessoa que vive num apartamento, na cidade, tem uma perspetiva diferente de quem vive no monte, no meio das ovelhas. São conceitos diferentes e não se pode sequer dizer quem gosta mais dos animais. 

Fora este fenómeno, provocado pela falta de informação em relação à lei que criminaliza os maus tratos, temos um Portugal que abandona cada vez menos os animais ou não?

Acredito que o cenário vai ser melhor daqui para a frente porque há cada vez mais tentativas de dar formação. Mas o ano passado ainda foi catastrófico. Ainda assim, acredito muito que daqui a uns anos este problema seja residual. Até porque, neste momento, é obrigatória a identificação animal e, se a lei for bem cumprida, sabe-se quem abandonou determinado animal. Mas também é preciso ver que existem situações dramáticas.

Por exemplo?

Uma pessoa que tem um cão e é do ensino. De repente, é colocada num sítio para onde não pode levar o animal porque, muitas vezes, os senhorios não deixam, ou vão para quartos ou para pensões. Nesta mudança repentina de vida, não sabem o que fazer aos animais e também não há ninguém que os acolha porque está tudo superlotado. Não há alternativas. Não estou a justificar, mas estou a dizer que há processos que não são fáceis, nem facilitados. Nas situações de divórcio também aparecem casos mais complicados. 

Qual poderia ou deveria ser a solução para este tipo de situação?

Há situações para as quais não há soluções. Não há um programa nacional, por exemplo. Por vezes, andamos nós, veterinários, a tentar arranjar alguém para ficar com os animais. É óbvio que a pior coisa que se pode fazer é abandonar um animal, mas também é preciso tentar entender as pessoas e ajudá-las para que essas pessoas não optem pelo abandono. E este tipo de dramas chegam-nos todos os dias. Nós tentamos ajudar. Quantos médicos veterinários já ficaram com animais de pessoas que não podiam ficar com eles e, por isso, queriam abandoná-los ou matá-los? Todos nós já fizemos isto. Há muita coisa que se poderia mudar. 

Mesmo assim, há quem diga que agora existem direitos que eram impensáveis há 20 anos. Concorda? 

Há direitos, sim. Mas acho que, em Portugal, se fala muito em direitos e pouco em deveres. Não podemos negar uma evolução muito grande, mas é preciso pensar nas coisas e pensar em aplicar medidas, mas com bom senso. Se eu sei que o meu cão não se porta bem ou que não cheira bem, não vou entrar com ele num sítio público. É tudo uma questão de educação. Por outro lado, se vemos muita gente malcriada, os animais dessas pessoas também serão malcriados.  Se as pessoas não conseguiram educar os filhos, também não conseguem educar os animais. Volto a dizer que se tem feito uma evolução brutal, mas ainda estamos muito aquém da Europa. Podemos tentar copiar os outros países, mas é preciso copiar em tudo, então. 

Mas temos um partido na Assembleia ligado aos animais. Tem ajudado ou nem sempre?

O partido tem ajudado a mostrar à sociedade a importância que os animais têm. Não faço comentários políticos, mas é um partido que, como todos os outros, tem iniciativas boas e outras possivelmente menos boas. 

Mas o facto de pôr a sociedade a debater o tema já é positivo? 

Sim, claro. 

O PAN chegou a levantar questões sobre o voo da águia Vitória por ser um animal selvagem. É partir para um extremo?

É um extremo, claro. Mas, hoje em dia, parece que as pessoas são cada vez mais extremistas e não se respeita a opinião dos outros. Se fôssemos menos fundamentalistas, tínhamos todos a ganhar. Mas é uma questão que se aplica a tudo. Por exemplo, há quem advogue que montar a cavalo causa sofrimento ao animal. O cavalo pode não gostar muito que se ande em cima dele, mas também é preciso ver que não se pode ir por um caminho em que são os humanos a quase não poderem fazer nada. Não falo sequer das touradas. Falo de um pássaro numa gaiola ou um peixe num aquário. Claro que são extremismos e eu não sou a favor de extremismos. 

Alguns têm ou não base científica? 

Muitos sem base científica. É sempre bom que a sociedade debata os temas, mas em Portugal ainda não há maturidade suficiente para que uma pessoa dê a sua opinião sem ser criticado pelos outros. É muito difícil fazer-se um debate sem que haja mortos e feridos. Ou se é a favor ou se é contra e as coisas nem sempre se processam assim. Alem disso, politiza-se tudo. Extrema-se muito e os animais não são exceção à regra. Os animais muitas vezes servem para ataques de outra ordem. Como, hoje em dia, há animais em cada vez mais famílias, os políticos já perceberam que os animais dão votos. Como os animais dão votos, as coisas são discutidas de uma maneira politicamente correta. Mas, para defender uma coisa, basta encomendar um estudo. 

No caso das touradas, por exemplo, as discussões devem ser feitas com base em opiniões médicas?

Os debates são lançados e tenta-se politizar a sociedade para um lado ou para o outro conforme aquilo a que se quer chegar. E sempre que temos pessoas em programas, por exemplo, a defender isto ou aquilo, vemos pessoas que não usam grande base científica. A chamada democracia, que é uma coisa muito difícil, só serve quando as coisas funcionam a nosso favor. Não sou fundamentalista e acho que temos é de lutar para melhor as condições das práticas que se estão a defender. Há muitos animais que foram criados para consumo e uso humano e muitos vegans que não concordam. Eu convivo com toda a gente. Dentro da profissão, há quem seja vegan, há quem não seja. Há movimentos anti-touradas e há médicos que trabalham na área das touradas. 

Cada vez se fala mais da problemática dos falsos médicos veterinários. É um fenómeno que tem vindo a aumentar?

Não acho que o número tenha vindo a aumentar. Estão é a ser mais denunciados. É uma prática que existe há muitos anos. Mas, no tempo das vacas gordas, havia trabalho para todos. Hoje em dia, há cada vez menos trabalho e os profissionais da área estão mais atentos a quem possa estar a usurpar as suas funções. 

Até porque este tipo de práticas pode trazer consequências graves…

Há casos gravíssimos. Há casos de animais que foram tratados com substâncias que põem em causa a vida dos animais. Acontece retirarem qualquer hipótese de tratamento com tanta coisa contraindicada que receitaram. Muitos acabam por morrer. E isto é uma coisa que não se pode aceitar no séc. XXI. 

E como é que se combate este fenómeno?

Através das denúncias e temos estado a tomar medidas para que isto não aconteça. Espero, em breve, ver aprovada a ideia de existir um boletim sanitário, chamado caderneta de vacinas, um livro emitido pela Ordem, inviolável, que seja apenas distribuído pelos médicos veterinários, com numeração. Mas há ainda o fenómeno da venda ilegal de medicamentos. Há zonas onde ainda há muito contrabando de medicamentos e há também muita venda de falsificações na Internet. Andamos muito em cima disto e temos levantado vários autos. Mas um dos graves problemas que Portugal tem é a Justiça. A Justiça demora tanto tempo que eu diria que o crime quase que compensa. Mandamos para o Ministério Público, mas demoram-se séculos a resolver e esse falso médico continua a exercer. 

Tem sido muito debatida também a falta de Centro de Recolha Oficiais. Ainda há muito a fazer nesta área?

Muito. Há muitos municípios que não têm sequer centros de recolha. Os que existem têm dimensões muito reduzidas e, portanto, não têm capacidade de resposta. Por isso, acho que aqui devia haver um esforço para melhorar a situação.

Qual deveria ser aqui o caminho a seguir?

Temos os problemas económicos que temos. Também não há hospitais para as pessoas. Não vai haver centros de recolha que cheguem. Agora, tem de haver um esforço para melhorar os que existem e aumentar a capacidade. É evidente que cada autarquia quer ter a sua quintinha, mas temos de ver que também há municípios muito pequenos. Fazia sentido haver aqui uma racionalização de meios. Esperamos que isto venha a ser uma realidade. Até porque esperamos, dentro de alguns anos, ter cada vez menos animais abandonados para esterilizar. Agora há milhares de animais nesta situação, mas, fazendo as coisas com a rapidez que o governo quer e nós também, daqui a uns anos, esta situação muda. Ora, apostar em estruturas torna-se complicado. Depois o que se faz à estrutura? É preciso pensar nisto e Portugal não pode ser megalómano a pensar nisto. O nosso conselho é que as autarquias façam o seu esforço económico, tendo capacidade para o fazer, na parte do alojamento. Melhorar as condições dos centros de recolha.  

O encontro que se realizou este fim de semana previa que se abordassem questões sobre os principais desafios da profissão. Que outros pontos importantes estiveram em cima da mesa?

É o encontro que mobiliza mais médicos veterinários e são abrangidas todas as matérias: o bem-estar animal, a gestão veterinária e o tema da saúde pública. Foi ainda abordado o tema das condições na profissão. Esta profissão é a que tem mais suicídios a nível mundial. Portanto, tornou-se importante ter uma pessoa a falar especificamente do burnout e como é que se deve comunicar com as pessoas. E é importante porque é uma área sobre a qual não se fala nos congressos. Fala-se mais na parte técnica. A ética e deontologia profissional também são muito importantes, sobretudo, numa altura em que há uma concorrência muito grande. Os problemas éticos e deontológicos devem ser debatidos para evitar algumas situações que são comuns a todas as profissões e que era ideal que não houvesse. Nos cursos de medicina veterinária devia ser dada mais ênfase a esta parte toda e não acontece. Muitas vezes, as pessoas entram para o mercado de trabalho e não sabem bem aquilo que devem ou não devem fazer. 

Sublinhou aqui o facto de haver muita concorrência e muitos casos de burnout. Estas duas situações estão relacionadas?

Não digo que o burnout tenha a ver com a concorrência, mas tem a ver com a pressão que sociedade faz sobre os médicos veterinários. 

Pressão por causa dos resultados?

Há duas vertentes. Uma é a forma como algumas pessoas tratam o médico veterinário que chega a ser arrasado por situações das quais não tem culpa. Se um animal morre, as pessoas acham que a culpa é do médico veterinário. E há casos mediáticos, até porque as redes sociais arrasam os médicos veterinários que se sentem injustiçados porque tentaram fazer tudo. Depois, é uma profissão que lida muito com a morte. E isso custa. Além de lidarmos com a perda do animal, lidamos com o sofrimento do dono. E este tipo de sensação de impotência é quase diária. 

E têm estado a ser pensadas soluções?

Já começámos a fazer um estudo sobre esta área. Mas estudar este problema envolve outras áreas. Sabemos de casos que acontecem em Portugal, mas a maioria das coisas vem do estrangeiro. Muitas vezes, tentamos adequar as causas para nós. Mas temos de estudar o nosso caso. Agora, claro que tudo conta porque é uma profissão de grande desgaste. Eu diria que a clínica dos animais de companhia, sobretudo nas grandes cidades, é de um desgaste enorme. 

Porquê?

As pessoas trabalham muito tempo. Não têm horas, não têm fins de semana e não têm noites porque são chamados a qualquer hora. Além disso, lidam com uma sociedade cada vez mais imediatista. Além de que a sociedade está mais exigente, mas com uma exigência ilógica. E há sempre o fator dinheiro no meio disto. Muitas vezes, queremos tratar os animais da melhor forma possível, mas o dono não quer porque não quer gastar. Querem tratar com determinado orçamento. No fundo, querem que se façam omeletes sem ovos. Isto faz com que o médico veterinário se sinta frustrado por não corresponder às exigências. Os médicos veterinários estão sempre a lidar com a responsabilidade de os donos não terem dinheiro. E não há nenhum profissional que não faça vários trabalhos pro bono. Mas muitas vezes acontece serem necessários procedimentos mais caros.