As guerras, mesmo as mais metastáticas, raramente são absolutas. Temo-lo sobretudo como uma característica redentora. Um tipo de cláusula de último recurso, segundo a qual não é impossível atravessá-las esquecido, aguardando um fim menos dilacerante. Mas que as guerras não cheguem ao mesmo tempo a todo o lado, claro, é também um tipo próprio de violência. Uma prova de que as tabelas da distribuição do sofrimento estão mal redigidas. Cultiva a desigualdade na morte, a mais universal das propriedades. Fá-la cair nas mãos do acaso, que, em tudo, é particular. A minha fortuna, diz-se olhando o cadáver do vizinho, não é a dele. A guerra, repetem-no as personagens enclausuradas de Philippe Van Leeuw, está lá. Atrás da cortina da sala, certamente, talvez já perto da marquise. Encontra-se no andar de cima e no parque de estacionamento do prédio. Mas não, ainda, aqui. “Deixa o mundo lá fora, ele já não nos vale de nada.”
“Na Síria”, a alucinante longa-metragem de Philippe Van Leeuw que estreia esta quinta-feira em Portugal, expõe-nos à dolorosa desigualdade do acaso. Fá-lo, contudo, na busca de uma universalidade laboriosamente ignorada, à qual talvez cheguemos um dia, como pretende o cineasta, mas já irremediavelmente atrasados. O cadáver do vizinho, diz-nos o realizador, não tem uma fortuna diferente da nossa. O problema é olharmos a guerra atrás da cortina e não termos ainda visto que também é nossa.
Van Leeuw gravou o filme, que também escreveu, num mês do verão de 2015, em Beirute, local onde há muito é impossível ignorar a guerra vizinha. A ação decorre por inteiro num apartamento situado algures na Síria, por ventura no quarto ou quinto ano da guerra, ocupado por duas famílias refugiadas no próprio país, atentas espetadoras de uma guerra que se encontra ali ao lado, cujas explosões se detonam no piso de cima, mas, em todo o caso, não o fazem ainda na sala. E por isso as regras da casa não são as regras do exterior. Come-se a horas certas, não se mija na banheira. Apenas quando a guerra quebrar a janela da varanda nos comportaremos segundo as suas leis.
O realizador belga não toma lados, mesmo num conflito com fronteiras humanitárias claras. Escolhe famílias discretamente médio-orientais, praticamente europeias, a quem não atribui lealdades. Os agressores tão-pouco as têm. Os primeiros são vítimas e os segundos agressores. Aí já há diferença bastante. Hiam Abbass, a protagonista israelo-palestiniana, embora dura, é uma matriarca universal. Van Leeuw dispõe também as suas personagens num apartamento comum a qualquer subúrbio ocidental. A religião, mantém-na clandestina. Desponta só ocasionalmente, embora o olhar da audiência já esteja nesse ponto viciado, disposto a acreditar que a guerra síria é um conflito extremista de fé. “Não começou assim”, lembra o realizador ao i. A mensagem, explica Van Leeuw, tem de ser compreendida sem ruído: a guerra síria é também a nossa guerra. Se ainda não morremos, como as suas personagens enclausuradas, é porque as tabelas da distribuição da violência estão mal redigidas.
“Assumir uma posição teria alienado uma parte da audiência que não se iria reconhecer na abordagem ao filme. Não o desejo. Tão-pouco quis qualquer singularidade no filme”, explica por Skype. “Não quis que se instalassem exotismos no filme que eventualmente nos distanciassem da relação imediata que procuro estabelecer com as pessoas que vivem no apartamento. Desejei que nós, os espetadores, realmente empatizássemos com eles, nos identificássemos com eles, no nosso íntimo, e acreditássemos que podem ser nossos vizinhos, a nossa família.”
Van Leeuw não tem pejo em dizer que filmou “Na Síria” pensando num público ocidental. O seu esforço de universalidade, todavia, não o desfigura. O filme surge-nos particular, cheio, não buscando uma comunicação vaga da sensibilidade comum, mas intenso no retrato rítmico de um dia em guerra que parece poder multiplicar-se por mais sete anos de conflito fratricida. O realizador belga admite que o filmou com urgência. Gravou-o apenas ao cabo de 25 dias, três anos depois de ter ouvido de uma operadora de câmara sua amiga, síria, que o seu pai se encontrava há semanas preso no seu apartamento de Alepo, incomunicável, aguardando não se transformar num dos milhares de cadáveres empoeirados que saíram da guerra do norte do país. Van Leeuw procurou que “Na Síria” viesse à tona com rapidez para que ajudasse a despertar a resposta internacional que nunca chegou verdadeiramente. Estreou-o em Berlim, no ano passado, no festival Berlinale, numa sala e cidade que, a seu jeito, como Beirute, não se pode dar ao luxo de ignorar os estilhaços da guerra. Acabando o filme, lançou-lhe uma mulher da plateia: “Por favor. Digam-nos por favor o que fazer com isto. Tenho que fazer alguma coisa mas não sei o que fazer depois de ver este filme.”
O realizador considera que a inação do ocidente em relação à guerra síria é “criminosa”. “Quando queremos alguma coisa, decidimos fazê-lo”, diz, falando da pequena guerra americana e europeia na Líbia, por exemplo, nascida da mesma Primavera Árabe que a da Síria. O seu filme é parte grito de ajuda, parte imagem de um fracasso civilizacional. Por toda a sua urgência, Van Leeuw tenta despertar uma humanidade fraterna que, por estes dias, não chegará à Síria. Bashar al-Assad, que a nenhum momento surge no filme, venceu. As batalhas que trava são por estes dias apenas o concluir de uma campanha. Não há quem no mundo tenha interesse em removê-lo do poder. O caos seria demasiado, o investimento, para americanos e europeus, insuportável.
Do filme nasce, central, uma cena reveladora. Uma violação negociada. Um contrato, portanto, de violência. A analogia serve. Também Assad vence a guerra por acordo. Apenas é punido pisando com demasiada obscenidade a linha humanitária. “Isto trata-se de humanidade”, disse Trump, justificando os bombardeamentos deste fim de semana. Antes de disparar químicos contra Duma, todavia, Assad matou mais de mil pessoas apenas num par de semanas em Ghuta Oriental. Fervilhámos então em indignação. Mas não disparámos.