Na capa do seu último livro há um robô com uma rosa. A inteligência artificial vai ser capaz de apreciar flores?
Não creio. As máquinas só têm um tipo de inteligência, a algorítmica. É bastante poderosa, mas não percebe emoções, tudo o que não se resuma a zeros e uns. Talvez daqui a 50 anos possamos ter máquinas com esse tipo de pensamento, mas não serão como o ser humano.
Não vê então a humanização das máquinas como um risco.
Acho que o risco é tornarmo-nos demasiado preguiçosos. Darmos-lhe todo o trabalho, inclusive o que devemos ser nós a fazer, como cuidar das relações, decisões médicas ou políticas. E depois temos um carro que se autoconduz, mas numa decisão difícil não sabe a diferença entre matar um cão ou uma idosa. Devemos usar máquinas para fazer coisas de máquinas – tudo o que tenha a ver com algoritmos, carregar pesos – não para trabalho humano.
Onde está a fronteira? Projetos para o diagnóstico de doenças, como o supercomputador Watson, fazem sentido?
Sim, pode salvar vidas e poupar dinheiro. Mas tem um problema, que é aquilo a que chamamos a “caixa negra”: quando uma máquina se tornar muito poderosa e já tiver analisado cada tipo de cancro milhões de vezes, a certa altura não vamos conseguir avaliar se aquele diagnóstico é correto. Deixamos de ter o controlo. Dito isto, o médico tem outras ferramentas, como o contacto social, acredito que pode haver uma boa combinação com a tecnologia. Será menos positiva na justiça, na política, nos média. Há o risco de manipulação. Podemos usar a AI para o que for rotina mas, para tudo o que tenha um significado, são precisas pessoas.
Como se estabelecem limites?
É algo que cabe à política. É preciso encontrar o equilíbrio.
Os governos parecem-lhe empenhados?
Começam a estar, porque se começa a perceber os perigos. A Comissão Europeia tem o novo regulamento sobre proteção de dados, em muitas cidades começamos a ver regulamentos para drones. Muitos países começam a pensar se não deve haver uma lei para a investigação que pode ser feita em torno de inteligência artificial, por exemplo se deve ser permitido que as máquinas se liguem umas às outras e se tornem independentes. É um pouco como a energia nuclear: podemos fazer uma central ou uma bomba – são iguais em 98%. Tal como controlámos o plutónio, temos de controlar as máquinas para que não formem uma rede.
No caso do nuclear, continua a haver alguma crispação.
Sim, mas há acordos e até aqui têm funcionado. Temos de fazer o mesmo para a engenharia genética e para a inteligência artificial. Se não o fizermos vai ser uma corrida ao armamento: a Rússia, a China, a Índia vão querer ter o supersoldado e a Europa vai estar em desvantagem.
Quão seguros poderão estar de que essas supermáquinas não estão já a ser feitas?
Não podemos garantir, mas tem de haver normas e penalizações. Se não tivermos algum tipo de controlo sobre coisas como engenharia humana, pode matar toda a gente em 50 anos.
Algumas técnicas já são usadas.
Sim, mas só são aplicadas em pessoas que estão em risco de vida. Hoje, por exemplo, alguns doentes com leucemia podem experimentar um novo medicamento de engenharia genética, mas ainda não houve um doente que tenha sobrevivido. Ainda não estamos nesse ponto. O que é hoje evidente é que os nossos trabalhos vão ser afetados pela tecnologia, pelo menos todos os que exijam alguma rotina, registos, condução.
Vamos conseguir ser competentes na mesma? Os médicos não precisam de fazer os diagnósticos mais simples para serem perspicazes nos complexos?
Nesse caso, sim, mas imagine-se um guarda-livros ou um operador de call center: são trabalhos que não requerem empatia ou compaixão. Em dois anos, a maioria dos operadores de call center vão ser robôs.
O que mais vê no futuro?
Vai ser sobretudo positivo se conseguimos controlar o poder da tecnologia. Vamos poder ter energia mais sustentável, criar novos empregos, podemos melhorar a segurança alimentar, a resposta a doenças, mas para isso os governos têm de garantir que os potenciais benefícios são divididos por toda a gente.
Disse recentemente que daqui a dez anos estar offline vai ser um luxo. Tem esse cuidado?
Sim, mas tenho 57 anos. Para alguém de 25, estar online é quase como ter ar. Temos de lembrar às pessoas porque é importante estarmos ligados uns aos outros e à natureza, mas é algo que acontece. Temos escândalos como este do Facebook e as pessoas começam a pensar: “se calhar devo passar mais tempo com os meus amigos reais”. Gosto de pensar que o futuro é melhor do que imaginamos. Parece tudo muito mau, que vamos ter menos empregos e ser viciados em tecnologia, mas vai haver coisas boas.
É habitual um futurólogo ser assim otimista?
Sou um bocado exceção. Gosto de tecnologia… mas não é tudo tecnologia. No fundo, penso que a cultura é mais importante do que a tecnologia porque é o que fazemos de forma natural. A tecnologia é uma ferramenta e só temos de garantir que continua a ser apenas isso. Por exemplo, criando espaços livres de tecnologia nas nossas vidas. Há empresas que já limitam os emails fora do trabalho e acho que vamos ver cada vez mais estratégias de proteção desse género. Os humanos não são máquinas e se os tratarmos como máquinas temos depressão, solidão, crime…
Para um futurólogo otimista, qual é a maior ameaça?
O mais preocupante é que daqui a dez anos vamos chegar a esse ponto em que a tecnologia será capaz de fazer praticamente tudo. Pode traduzir a sua língua, copiar os seus dados, vai dar para ligar o cérebro à internet para controlar coisas. Os computadores vão ser milhões de vezes mais rápidos. Vamos ter de tomar decisões do género: como ficar offline e viver saudável, como permitir que as pessoas trabalhem sem tecnologia.
Na série “Black Mirror”, um episódio retrata um cenário em que fazemos o download das memórias, podemos estar sempre a rever tudo. Algumas pessoas arrancam os chips para não terem de viver assim. Vai ser preciso uma resistência deste género?
É uma ótima série. Mais tarde ou mais cedo vamos ter de decidir o que é humano e o que não é, será a grande discussão dos próximos dez anos. Acho que não é humano exigir-se conectividade para estar vivo. Precisamos de ar, precisamos de água. A internet não devia ser um requisito.
Será uma minoria a rejeitar a conectividade?
Acho que vai ser algo maior. Na Europa somos humanistas. A América é muito orientada pelo dinheiro, a China pelo Estado, a Rússia por Putin [risos]. Na Europa não estamos assim tão interessados nesta convergência entre homens e máquinas, parece-nos errado, antinatural.
Como é que alguém se torna um “futurólogo”?
Por acidente. Comecei por ser produtor musical. Escrevi o meu primeiro livro “O Futuro da Música” – o Spotify foi construído com base na ideia do livro, de a música ser como água. A partir daí começaram a ligar-me.
As empresas tentam perceber onde investir?
Sim. Hoje as empresas alteram 50% da sua fonte de proveitos a cada cinco a sete anos: se não conseguem antecipar, vão contra uma parede e morrem. Costumava haver uma janela em que podiam fazer a mesma coisa durante 20, 30, 40 anos. Agora é de cinco anos.
Alguns estudos sugerem que a maioria dos jovens de hoje vão ter empregos que ainda não existem.
Há um estudo de Oxford que diz que 50% dos trabalhos tradicionais vão desaparecer. Outro diz que, daqui a dez anos, 70% dos novos trabalhos ainda não existem. Basta pensar que hoje o mais comum são os analistas de dados e há dez anos não existiam dados, não existiam redes sociais. Vamos ter operadores de drones, designers de interface entre máquinas e humanos, todo o tipo de terapeutas. Vamos ter problemas de adição e pessoas a tentar trazê-los de volta a serem humanos – será um trabalho importante.
Vamos ter um maior fosso entre ricos e pobres?
Isso depende da política. A tecnologia é neutra. Se a usarmos para concentrar a riqueza, que é o que fazemos hoje, assim será. Se a usarmos para distribuir, pode ser diferente. Uma empresa que consiga autonomizar a maior parte do trabalho: pode despedir toda a gente, mas também pode ter de pagar um imposto ou ser responsabilizada pela formação dos funcionários noutras áreas. Seja como for, é um problema temporário. Daqui a 20 anos, tudo o que for para ser automatizado já terá sido.
Vamos ter robôs na rua, como a Sophia que agora aparece num anúncio com o Ronaldo?
Sabes que tudo o que vês na Sophia é falso, certo? Está tudo programado, não consegue falar a sério ou mover-se. Acho que vamos ter robôs em sítios onde é fácil tê-los, em armazéns.
Não ao nosso lado no café?
O atendimento em cadeias como a Starbucks pode ser automatizado, a pessoa faz a sua bebida, mas os robôs estarão nos bastidores. É uma questão social. Por que teríamos um robô se um humano funciona melhor…
Veio a Portugal para um debate com médicos. Que mensagem traz?
A minha mensagem para os médicos é sempre que não vão perder os empregos, só têm de mudar.
Que é algo de que os médicos não gostam?
Não gostam e outro problema é que agora um enfermeiro com a tecnologia adequada consegue fazer 80% do trabalho normal do médico em termos de prescrição e diagnóstico e baixar os custos do trabalho.
Não é um bom argumento…
É um bom argumento para os serviços de saúde, porque os custos estão a aumentar a cada ano.
Portanto os médicos não costumam gostar das suas intervenções.
É como os advogados, contabilistas… Qualquer trabalho que assente numa resposta que não mudou especialmente nos últimos 50 anos está em risco. Não é mau, simplesmente têm de aprender a usar a tecnologia. Hoje um advogado já não precisa de dez auxiliares ou estagiários para pesquisarem, basta uma pesquisa de e-discovery. Pode despedi-los, mas também pode mantê-los para trabalharem com as máquinas. Há sempre um lado bom e um lado mau. Não acho que seja diferente com os médicos, mesmo que vejam muitas coisas como ameaças.