A liberdade de expressão torna legítimo que se ofenda alguém? Existe um “direito a ofender” ou será que todos temos o direito a não ser ofendidos? O humorista português Ricardo Araújo Pereira e o escritor e jornalista britânico Mick Hume juntaram-se ontem, na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, para falar sobre estes e outros assuntos relacionados com a liberdade de expressão, o politicamente correto e o “direito a ofender”. O debate foi moderado pelo jornalista João Paulo Sacadura, que começou por lançar o tema recuando 300 anos e recordando palavras do filósofo francês Voltaire: “Discordo do que dizes, mas defenderei até à morte o direito de o dizeres”. Citou ainda Oscar Wilde que, anos mais tarde, também falou sobre o assunto dizendo: “Posso não concordar contigo, mas vou defender até à morte o direito de fazeres figura de parvo”.
Foi exatamente sobre esse “direito de se dizer o que se apetece, questionar o que quer que seja – a religião do outro, a raça do outro e as ideias do outro – e até de ofender” que se desenrolou esta conversa.
Mick Hume, autor do livro “Direito a Ofender: a liberdade de expressão e o politicamente correto” refere que, ao contrário do que defendiam Voltaire e Oscar Wilde, hoje em dia o pensamento é: “Discordo do que dizes e vou defender até à morte o meu direito de te impedir de o dizeres”.
Para Hume, “atualmente na Europa, e nomeadamente nas universidades, passamos demasiado tempo a pensar como podemos limitar a liberdade de expressão”. Contudo, para o escritor “a liberdade de expressão nunca é demais, em nenhum lugar do mundo” e “não é possível ter liberdade de expressão sem termos o direito a ofender”. “Não podemos ser livres se apenas podermos concordar com tudo”, acrescenta.
E o direito a não ser ofendido? Para Ricardo Araújo Pereira esse direito não existe. “Parece uma coisa cruel e desagradável, mas o direito a não ser ofendido, na verdade, não existe”, afirmou. Primeiro, porque isso é impossível. “É impossível eu não ser ofendido. Há pessoas que me ofendem mesmo sem quererem, sem ser de propósito“, refere.
O comediante diz ter muita experiência nesta matéria, porque muitas das coisas com que faz humor ofendem pessoas. “Algumas eu sei que vou ofender e outras não faço ideia, mas percebo mais tarde”, indica.
“Costumo dar este exemplo: quando o engenheiro Sócrates tentava convencer-nos de que a salvação do país era um computador chamado Magalhães, nós (no “Gato Fedorento”) fizemos uma eucaristia para o Magalhães. No dia seguinte, houve protestos, como é óbvio. O porta-voz da Conferência Episcopal disse ‘uma coisa é fazer humor com as ondas do mar, outra é brincar com a eucaristia’. Garanto-vos que, se um dia fizer um programa humorístico sobre as ondas do mar, vou receber queixas de pessoas para quem o mar é sagrado”, demonstra o comediante.
A conclusão é que “essa ideia de que é possível não ofender ninguém não é verdade e é até um pouco inquietante”, acrescenta Ricardo Araújo Pereira.
O comediante contraria a ideia de que a liberdade de expressão e o “direito a ofender” podem ser nocivos para as minorias. “A liberdade de expressão sempre foi instrumental para as minorias. Muitas vezes, as reivindicações das minorias são ofensivas. Por exemplo, ‘eu quero casar com outro homem’. Essa reivindicação é ofensiva para certas pessoas”, explica.
Por outro lado, atualmente o âmbito daquilo que se considera ofensivo parece ter-se alargado. “Hoje uma ofensa não é apenas um insulto. Uma ofensa pode ser um facto, como, por exemplo, ‘os homens e as mulheres são biologicamente diferentes’. A enunciação deste facto em alguns círculos é considerado ofensivo, porque têm receio que esse facto tenha implicações e que leve à desigualdade social entre homens e mulheres”, refere o comediante português.
Ricardo Araújo Pereira defende que as ideias devem ser expressas e devem ir à luta com as outras ideias. Por isso, não se deve tentar impedir ninguém de dizer seja o que for, mesmo que esteja completamente errado. “É uma questão de higiene. Eu gosto de ouvir os idiotas a falar para saber onde é que eles estão e para me afastar”, remata.
Mick Hume concorda com o comediante português e afirma que “discurso deve combater-se com mais discurso e não impedir o outro de falar”. O escritor refere o exemplo de Donald Trump e diz que deve ser usada como lição. “Os adversários de Trump limitaram-se a dizer ‘ele não pode usar esta linguagem’ e ‘ele não pode dizer isto’ e perderam as eleições. Perderam por uma boa razão, porque não lutaram com mais discurso. Apenas afirmaram ‘ele não pode dizer isso’. Palavras combatem-se com mais palavras”, explica.
Não há limites? Quando questionado se não há então limites para a liberdade de expressão, Ricardo Araújo Pereira afirma que sim. “A lei não permite que se possa dizer tudo. Não é possível fazer anúncios de whisky para crianças ou de tabaco, por exemplo. Há coisas que estão claramente definidas na lei”, esclarece.
O comediante defende que “causa mais prejuízo mandar calar uma pessoa do que deixá-la falar”, tirando “duas ou três exceções”. O importante é avaliar o dano causado pelas palavras que foram ditas. “E esse dano tem de ser superior a ‘isso magoa’, afirma.
Para Ricardo Araújo Pereira, quando as palavras de alguém causam um dano real na vida de alguém, “isso extravasa a liberdade de expressão”.
É também fundamental avaliar o contexto em que as coisas são ditas. “Parece-me que hoje há outro problema: o da literalidade. Ou seja, as pessoas acharem que não interessa o contexto em que as palavras são ditas nem a intenção com que são ditas”, argumenta o comediante.
Para Mick Hume, também existem limites e por isso é importante distinguir uma opinião de uma ação. O escritor defende que as palavras por si só não são uma ameaça. Uma ameaça é quando as palavras se tornam parte de uma ação. “Se eu disser que ‘odeio ruivos e que todos os ruivos deviam desaparecer’, isso é uma opinião ofensiva e idiota. Se disser ‘vamos atirar aquele ruivo de um penhasco’, deixa de ser uma opinião e passa a ser uma ação. É aí que está a diferença”, explica.
Je suis Charlie? Para Mick Hume, o assassínio a sangue-frio dos cartoonistas do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, colocou a questão da liberdade de expressão em primeiro plano. Os líderes das democracias de todo o mundo uniram-se para condenar os ataques. Mas, pouco tempo depois, muitos comentadores começaram a defender que o massacre obrigava a impor limites sobre a liberdade de expressão e “direito a ofender”.
“Depois do ataque ao jornal satírico francês todos os líderes mundiais, como o Papa, por exemplo, disseram ‘isto foi terrível’ e afirmaram defender a liberdade de expressão. Contudo, também todos disseram ‘eu defendo a liberdade de expressão, mas…’”, afirma o escritor.
Hume concorda com uma liberdade de expressão incondicional. “Defendo uma liberdade de expressão sem o ‘mas’”, explica.
*Editado por Ana Sá Lopes