Mais de dois anos depois dos episódios que o forçaram a sair do partido em que militou toda a sua vida adulta, o PCTP-MRPP, António Garcia Pereira continua a ser um observador atento da realidade do país. Vítima daquilo a que chama um assassinato de caráter em praça pública por parte de alguém a quem considerava quase como um “pai”, Arnaldo Matos, seguiu em frente como um dos principais especialistas em Direito do Trabalho em Portugal, professor universitário e advogado de barra, mas também como severo crítico do governo, da geringonça, da Justiça (”o 25 de Abril nunca entrou verdadeiramente na justiça”, diz) e do Ministério Público. Recorre à sua prodigiosa memória para lembrar Marcelo Rebelo de Sousa a tentar furar greves ou Durão Barroso a conseguir fazer expulsar todos os professores da Faculdade de Direito. Um avô que foi ministro da República incutiu-lhe as fortes convicções e o gosto pelos barcos e pelo mar. Na sala de reuniões do seu escritório de advogados onde decorre a entrevista, há réplicas de barcos em miniatura e uma pintura marinha.
Donde é que lhe vem essa paixão pelos barcos?
Do meu avô materno, natural de Porto Santo, que foi uma pessoa que me influenciou bastante
Como se chamava?
Manuel Gregório Pestana Júnior. Foi ministro da I República e deputado da ala esquerda do Partido Republicano. Foi o penúltimo ministro das Finanças da I República.
Essa foi a sua grande influência?
Não só, mas essa indiscutivelmente.
Foi uma referência ideológica?
Também. Era uma pessoa de princípios, de cultura universalista. Foi ministro das Finanças mas era licenciado em Direito e advogado. Era um homem com um espírito de humanismo cívico de enorme elevação e aprendi muito com ele e, obviamente, também com os meus pais. Duas pessoas de elevadíssimos princípios. Fui aprendendo sobretudo com exemplos, mais do que com palavras.
Essas foram as suas referências como ser humano, mas também ideológicas?
Isso determinou que houvesse uma tradição familiar de luta contra o fascismo. O meu avô entrou em várias revoltas contra o antigo regime. Foi um dos líderes da chamada Revolta da Madeira. Foi preso e deportado, primeiro para os Açores, depois para Cabo Verde e finalmente para Porto Santo, que era um deserto na altura, o que lhe criou uma situação de enorme e gravíssima dificuldade de caráter financeiro. O meu avô nunca quebrou. Depois, o meu tio, irmão da minha mãe, foi um dos participantes no assalto ao Quartel de Beja, na noite de passagem do ano de 1961 para 1962. Como sabem, a revolta foi abafada pelo regime, os intervenientes foram presos e esse meu tio, que era oficial do exército, o capitão Pestana, foi preso. Uma das experiências que tenho é a dos militares do quadro terem sido entregues pela primeira vez à PIDE. Tiveram o cabelo rapado, não lhes bateram, ao contrário do que aconteceu com os presos civis. Lembro-me que Manuel Serra foi barbaramente torturado. Aos militares aplicaram a tortura do sono. Cerca de um mês depois da prisão foram autorizadas as primeiras visitas e a minha mãe tomou a decisão de me levar com ela. Foi uma decisão que, mais tarde e não na altura, me apercebi que tinha causado alguma polémica na família por ser uma experiência muito dura para um miúdo que na altura tinha nove anos. Agradeço muito à minha mãe.
O que recorda dessa visita?
A prisão do Aljube é uma prisão muito pesada, com paredes larguíssimas, pé direito muito alto, luzes muito ténues lá em cima e grades por todos os lados. A recordação que tenho é que tínhamos grades à frente e atrás, com um intervalo onde um PIDE estava sentado e depois havia outra fiada de grades. Aí, apareceu o meu tio trazido por um guarda. Não o reconheci na altura, vinha com os olhos completamente esbugalhados e raiados de sangue, os pés a calcarem os sapatos devido ao inchaço. Quando vi o meu tio naquele estado comecei a choramingar e a minha mãe, que era uma senhora com pouco mais de um metro e meio de altura e 40 kg de peso, agarrou-me no braço, apontou ao PIDE e disse: “Em frente de gente dessa não se chora”. Nunca mais me esqueci dessas palavras.
Foram essas marcas que o fizeram aderir ao ativismo político e ao MRPP?
Fiz o liceu no Liceu Camões, uma escola com um nível de ensino considerado bastante bom, mas com um ambiente altamente repressivo. Um liceu exclusivamente masculino, com um perímetro definido em torno do liceu em que não era conveniente sermos vistos a falar com raparigas. Não se podia correr nos pátios, era proibido jogar futebol. Ali passei por duas experiências muito fortes. O meu tio foi preso nessa noite [do assalto ao quartel] e o julgamento decorreu no final de 1962, um julgamento de farsa nos tristemente célebres tribunais plenários. E aproveito para dizer que os juízes e procuradores puderam tranquilamente prosseguir com as suas carreiras sem que nada lhes acontecesse depois do 25 de abril. O 25 de abril nunca entrou verdadeiramente na Justiça. E depois, em 1967, aquando das grandes cheias em Lisboa, por força do MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa), e de algumas organizações, como a juventude estudantil católica, foi organizada a ida dos estudantes para os bairros e zonas mais atingidas. Os estudantes levantaram-se e organizaram-se. Os mais velhos, os de medicina, administravam vacinas e tratavam das pessoas. Nós ajudávamos a limpar e a salvar as casas. Mesmo com a repressão do liceu não fomos às aulas durante uma semana e a força do movimento foi de tal ordem que não houve hipótese de marcarem faltas. Foi uma experiência muito forte. A minha turma foi para o bairro da Liberdade, em Campolide, e muitos dos meus colegas viram coisas que nunca tinham visto na vida. Na juventude mais politizada, o contacto com essas pessoas também foi um rastilho de revolta: “Não há direito que as pessoas vivam assim”. Logo a seguir, em 1968, foi a primeira manifestação contra a guerra no Vietname nas imediações da Embaixada dos Estados Unidos. Uma manifestação violentíssimamente reprimida. Entrei para a faculdade no ano letivo de 1969/1970…
Foi aí que contactou com os partidos?
Contactei com a expressão no movimento associativo das várias organizações políticas. Foi aí que conheci Marcelo Rebelo de Sousa, que era aluno do 5º ano e eu do 1º. Eu integrava um piquete de greve com mais uma série de estudantes e ele integrava um grupo de estudantes com mais duas ou três pessoas que queriam ir às aulas e furar a greve. Ele e o Jorge Braga de Macedo. Enfim, perante a firmeza do piquete lá desistiu da ideia. Nas reuniões da associação de estudantes começam a desenhar-se duas tendências muito diferentes. A tendência “Unidos Venceremos”, sigla do movimento associativo ligado ao PCP, com uma visão muito corporativa e uma posição muito defensiva face à repressão. E uma tendência, defendida por um jovem que muito me impressionou, franzino, com uma enorme capacidade de argumentação, um humor demolidor mas com grande capacidade pedagógica e capaz de persuadir com a justeza das suas posições: o Jpsé António Ribeiro Santos. Comecei a sentir uma simpatia por aquela tendência, com uma orientação política e filosófica muito mais coerente. Daí veio a aproximação. No 2º ano de faculdade fui eleito delegado de curso e passei a integrar a tendência associativa “Ousar lutar, ousar vencer”, dirigida pelo MRPP.
Porquê o maoísmo e o MRPP?
É verdade que tinham chegado a Portugal os ecos do Maio de 68 e a ideia que quase afetivamente nos surgia é que havia uma tendência que se dizia comunista, mas que representava qualquer coisa que não tinha a ver com o socialismo, com Estados altamente autoritários e onde uma minoria vivia em condições de vida muito superiores à esmagadora maioria do povo, baseada na repressão e que tratava de “exportar” a revolução à força dos tanques. Depois, havia uma outra tendência que se desenhava no movimento comunista internacional de crítica a essa tendência. Com a influência do Maio de 68 comecei a interessar-me e a ler coisas de Mao Tsé-Tung através de uma instituição que muito pouca gente sabe: a Livraria Barata. Nessa altura era uma livraria muito pequena e esconsa, dirigida pelo senhor Barata da oposição, que era visitada pela PIDE, e que tinha na parte da frente os livros “normais” e para os clientes habituais havia uns livros “especiais” que ele, mais ou menos clandestinamente, trazia e vendia. Foi por essa via que comecei a ler coisas. Nos anos 72 e 73 a faculdade tem a Associação fechada, as suas instalações são o covil de umas três dezenas de indivíduos “vigilantes” – a que nós chamávamos de “gorilas” -, chefiados por um indivíduo da PIDE recrutado entre os comandos acabados de sair da Guerra Colonial, cuja função era perseguir e espancar os estudantes. Atacavam as reuniões com ferros que retiravam dos matraquilhos e tacos de basebol. Também tínhamos a polícia de choque estacionada permanentemente onde é hoje o edifício da Torre do Tombo. Era este o ambiente e obviamente que era muito propício ao despertar das consciências e quando se deu o assassinato de Ribeiro Santos, a 12 de outubro de 1972, em Económicas, foi o grande impulso.
Em 1986, já como professor, acabou por ser saneado da faculdade.
É uma história muito curiosa. Quando se dá o 25 de abril de 1974, o PCP tomou conta da faculdade, mas perdeu o controlo algum tempo depois. Aí, colocou-se a questão sobre o que se fazia aos professores do antigamente. A posição do MRPP é que deviam ser afastados aqueles que estavam diretamente implicados na repressão, designadamente o professor Martinez, que andava de braço dado – expressão literal – com os gorilas, ou o professor Oliveira Ascensão, denunciante, instrutor e acusador dos processos disciplinares, e outros semelhantes. O setor de professores liberal não deveriam ser afastados. Mas um setor radical, chefiado pelo Durão Barroso, entendia que tudo deveria ser corrido e propôs – e com o ambiente que se vivia na faculdade foi aprovado – o afastamento de todos os professores. O MRPP teve de suportar durante décadas o ónus de ser o responsável pelo saneamento de todos os professores quando isso não correspondia de facto à sua posição.
Mas o Durão Barroso era do MRPP…
Sim, era, mas defendeu uma posição que não era claramente a do MRPP. Bom, esses professores começam a voltar em meados dos anos 80 e engendram uma manobra para me afastar da faculdade quando estava com um contrato de assistente com a minha tese em avançado estado de preparação. O Conselho Científico primeiro deliberou a prolongação, mas depois já era preciso um relatório de um professor catedrático, também dos de antigamente, o professor Dias Marques, que, devo dizer, fez um relatório correto, a dizer o que a lei exigia para o estatuto de carreira docente: que tinha a tese em avançado estado de preparação. Mesmo assim, por sete votos contra três, votaram a não renovação do contrato. Na altura recorri ao Provedor de Justiça dr. Ângelo Almeida Ribeiro que mandou uma equipa à faculdade e o dito parecer tinha desaparecido. Depois, miraculosamente, o parecer apareceu, mas não revogaram a decisão. Impugnei nos tribunais administrativos essa decisão e ganhei alguma coisa 11 anos e meio depois, já sem nenhuma utilidade prática. Pude completar os últimos dois anos do contrato de assistente e dei aulas até ao último dia. Na última aula, os meus alunos levantaram-se e começaram a aplaudir. Não sabia onde me enfiar e confesso que foi dos momentos mais emocionantes que tive na vida de professor. Não se calavam, não conseguia sair da sala e retia as lágrimas o máximo que podia. Pareceu uma eternidade.
Foi vítima de vingança política em democracia?
Claramente. Foi um saneamento político. Quando voltaram os professores que tinham lá estado antes do 25 de Abril, responsáveis diretos pela repressão, decidiram sanear-me. Não foi apenas a mim, fui o primeiro grande caso. Todo o coletivo de Direito do Trabalho, nove assistentes, denominados carinhosamente por o “grupo dos nove”, foi sendo sucessivamente afastado pela faculdade. Ao Barros Moura, que na altura era do PCP, foi feita uma coisa completamente indecente. Candidatou-se ao mestrado com uma tese sobre contratação coletiva e deram-lhe 15 valores, cortaram-lhe as pernas e a possibilidade de seguir a via académica por ser necessário um mínimo de 16 valores. Independentemente das ideias que professava, estava a ser alvo de uma injustiça flagrante. Ergui a voz e fiquei sozinho nessa denúncia. Os colegas do partido dele ficaram calados.
Em 2015 rompeu com Arnaldo Matos e remeteu-se ao silêncio por dois anos. Por que é que quebrou o silêncio?
Primeiro, o que se passou é que fui forçado a sair do MRPP.
Forçado como?
A seguir às eleições de outubro de 2015, com a suspensão dos membros do Comité Permanente, com uma situação em que era todos os dias atacado – eu e a minha própria família – das formas mais inaceitáveis e mais baixas que se possa imaginar, o ambiente foi claramente desenhado para travar qualquer luta política e ideológica, por muito dura que fosse. Tenho a ideia de que a política é a expressão superior da cultura e acho que não vale tudo, que os fins não justificam os meios, que nenhum político – muito menos um que se pretenda revolucionário – pode mentir e usar a mentira como arma contra seja quem for. E, portanto, decidi não responder à lama com lama. Tenho sobre isso uma posição antiga: a verdade é como o azeite. Pode lá estar submergida a dez mil metros de profundidade, como esteve o petróleo do Prestige, mas ao fim do tempo – e pode nem ser durante a vida da pessoa – ela vem ao de cima. Ao fim de dois anos entendi que tinha chegado o momento de repor a verdade dos factos, que foi o que fiz com o meu site Em Nome da Verdade. Senti a necessidade de dar uma explicação às dezenas de milhar de pessoas que tinham votado MRPP sobre as coisas que estavam a ser ditas.
Militou no MRPP durante 40 anos e caracterizou Arnaldo Matos como “verdadeiro amigo” e “até como um pai”. Como reagiu a estes ataques de Arnaldo Matos?
É inegável que a minha primeira reação foi de uma enorme estupefação e revolta interior. Nos primeiros tempos não conseguia sequer acreditar no que estava a acontecer. Como era possível que a pessoa com a qual tinha não apenas um relacionamento político mas também de amizade de décadas se permitia fazer aquilo? Não estou a falar de críticas políticas. Nada disso. Estou a falar de se falsear conscientemente a verdade e imputar à outra pessoa coisas que se sabe que não correspondem à realidade. E realmente isso não tinha nada a ver com a memória e imagem que tinha da pessoa. Num primeiro momento foi muito difícil. Hoje ultrapassei isso tudo e tudo é possível vir dali depois do que se passou.
Ultrapassou, mas aparentemente Arnaldo Matos não. Continua a atacá-lo. O Luta Popular publicou um texto em que o acusa de ser “anticomunista primário”, “traidor” e “oportunista”.
Mas isso é o que ele diz [Risos]. Para mim está perfeitamente esclarecido que o tipo de postura que foi assumida deixou de ter qualquer sentido político ou ideológico. Trata-se de um ódio pessoal, ao contrário do que ele diz, e feito de contínuas mistificações da realidade dos factos. Espero tudo. Tranquilamente sigo o meu caminho. Não mudei de ideias.
Por que este ataque tão violento?
Isso é uma coisa que deve ser perguntada ao próprio Arnaldo Matos. É qualquer coisa de verdadeiramente inacreditável. Percebo que há aqui um sentido provocatório para ver se sou levado a cair na circunstância de ir à lama responder com lama e, portanto, sigo tranquilamente com a minha vida, não deixando de lastimar tudo aquilo que aconteceu.
Nas suas explicações conta o seu lado e muitas vezes faz referência a atitudes do Arnaldo Matos para com camaradas do partido. Esse comportamento anterior não ajuda a compreender o que fez consigo?
É fácil, quando alguém nos desilude ou até se revela o contrário do que julgámos, olharmos retrospetivamente e constatar que, se calhar, nesta ou naquela atitude já deveríamos ter sido capazes de perceber. Não é nada que me preocupe. A vida continua e ainda tenho muita coisa para fazer e não acho que o caminho seja olhar para trás, mas para a frente.
O facto de ter saído do MRPP ao fim de 40 anos de militância com um cartaz em que dizia “Morte aos traidores” é uma mancha no seu percurso?
Esse cartaz, está assumidamente explicado pelo próprio Arnaldo Matos, que visava que a minha figura ficasse associada com uma palavra de ordem, que é da responsabilidade política dele, com um intuito claramente ofensivo relativamente à minha pessoa. Ao fim de 40 anos, as pessoas já sabem o que sou e não mudei. O que tenho feito na vida, e não apenas na atividade política. Conhecem os princípios que defendo e os critérios pelos quais me procuro pautar.
Foi então um assassinato de caráter?
Uma tentativa de assassinato de caráter. Não só político, como também profissional e pessoal. Claramente e assumido como tal. Foi dada uma indicação no sentido: “O Garcia Pereira tem de ser destruído, política, pessoal e profissionalmente. Custe a quem custar, doa a quem doer”. É o vale tudo.
Essa tentativa foi por o MRPP estar demasiado identificado consigo?
Não sei se é por isso, que nunca foi uma coisa que desejasse. Todas as candidaturas, mesmo aquelas que depois o próprio Arnaldo Matos procurou apagar como se nunca tivessem existido, como foi o caso das duas candidaturas presidenciais, foram decisões do partido.
Houve pessoas que assinaram artigos escritos pelo Arnaldo Matos contra si. Onde é que essas pessoas estão?
Essa é que é a pergunta. Onde é que essas pessoas estão? Quando se aceita assinar ou partilhar um texto com coisas que a própria pessoa sabe que são mentira, o que é feito dessas pessoas? É possível um militante de uma organização que se pretenda revolucionário usar a mentira como forma de intervenção política? Eu acho que não. Para um revolucionário só a verdade é revolucionária, mesmo quando é dura e desagradável.
Arnaldo Matos acusou-o de ter roubado o partido e deixá-lo endividado em quase 100 mil euros.
Ele diz isso e outras coisas. O que posso dizer é que tive sempre uma preocupação escrupulosa, até ao cêntimo, de administração dos dinheiros do partido. Da minha parte, posso dizer desde já que nunca recebi um tostão do partido ao longo dos 40 anos, a não ser quando havia deslocações mais caras, como por exemplo viagens de avião para a campanha na Madeira ou uma última deslocação ao Norte durante a campanha das legislativas por já não ter sido capaz de a suportar por mim. Houve um pagamento de despesas feitas em nome e ao serviço do partido na ordem dos 100 euros. É uma acusação sem qualquer fundamento. A minha vida demonstra é que nunca precisei do partido para sobreviver e para satisfazer as minhas necessidades e as da minha família. Sempre trabalhei na advocacia e na docência.
O facto de ser um líder mediático de um partido trouxe-lhe benefícios?
A minha atividade política e partidária foi sempre um desastre financeiro. Por um lado, não vieram pessoas ter comigo porque me viam na televisão como dirigente do PCTP/MRPP. Segundo, cada campanha eleitoral era uma situação absolutamente extrema, porque um advogado de barra, como eu, ganha em função do trabalho que desenvolve. Quando entrava numa campanha a 100%, trabalhava na campanha durante o dia e era obrigado a vir, algumas vezes à meia-noite, uma ou duas da manhã, para o escritório cumprir prazos e assegurar as tarefas da advocacia com um esforço físico e financeiro terrível. Não desenvolvia a atividade, mas as despesas estavam cá sempre, as receitas é que não entravam. Foi um impacto negativo.
Acusam-no de cobrar demasiado aos seus clientes e até de ter iates, como se fosse uma contradição ser advogado de sucesso e revolucionário.
Acho que todo o trabalho deve ser remunerado e que um advogado deve fazer as intervenções pro bono que entende que pode fazer. E isso tenho sempre feito. Contam-se as mais variadas lendas e é curioso como, através da comunicação social é possível construir uma imagem. Quanto aos iates é outra das histórias do Arnaldo Matos. São duas lanchas daquilo a que se chama pesca-passeio, uma de 5,40m que está em Porto Santo e tem bem mais de 20 anos e outra com cerca de 6m e pouco e dez anos. Lanchas que ele próprio já conduziu. Valem menos que qualquer carro mediano por aí. Em outubro de 2015, na situação financeira muito complicada em que fiquei, não as consegui vender, mesmo pelos preços mais baixos que se poderia imaginar. Nem como salva-vidas serviam.
Chegou a pensar deixar a carreira política para ganhar mais dinheiro?
Isso não, mas tive muitas situações de grande dificuldade de articulação. A dispensa de funções prevista na lei está pensada para trabalhadores por contra de outrem. Os profissionais liberais não beneficiam. Tinha de articular o melhor possível, com a ajuda inestimável dos meus colegas, o que eram as minhas obrigações e os prazos. Ao longo destes 40 anos tive problemas muito complicados.
Arrepende-se agora de não ter pensado mais na carreira?
Não me arrependo. Fui fazendo aquilo que em consciência entendo que é correto. Quanto à minha carreira de professor, concebo-a como uma pessoa que deve sobretudo preocupar-se a criar cidadãos ativos e conscientes, a pensarem pela sua própria cabeça.
Prefere um aluno que digladie consigo argumentos políticos mesmo que seja de direita do que um aluno acrítico?
Prefiro, sim. Acho que a rebeldia intelectual é indispensável. É muito importante o desenvolvimento dessa capacidade crítica. Com 500 anos de Inquisição e 50 de fascismo, temos gerações inteiras que foram formatadas para não pensarem pela sua própria cabeça.
Bloco e PCP fizeram da expressão “destroikar as relações laborais” uma bandeira política para exigir a alteração do código laboral ao governo do PS, mas este não tem demonstrado abertura. Como vê a atual solução governativa?
Vejo a geringonça como uma forma de manutenção do essencial das políticas da troika com uma face, aparentemente, humana. O centro nervoso das reformas laborais da troika consistiu na destruição da contratação coletiva, para forçar à individualização das relações de trabalho e, depois, a facilitação e embaratecimento dos despedimentos, designadamente dos despedimentos ditos por causas objetivas, como os coletivos, extinção do posto de trabalho e inadaptação. Nestes pontos o ministro do Trabalho, já disse que jamais em tempo algum irá tocar. E o que fazem essas forças políticas? Dizem que estão contra, mas sustentam o governo. Há um exercício de hipocrisia que faz com que o movimento sindical esteja paralisado perante a manutenção no essencial da situação dos trabalhadores. O que mudou em relação ao governo PSD-CDS? Nada. Quanto aos contratos de trabalho ditos “clássicos”, desde 2014 para cá 80% são a prazo. O que é que isto significa? Que os que estão a entrar no mercado de trabalho, os nossos jovens, têm todos vínculos precários.
Acha mesmo que nada mudou?
O que nós temos hoje é um adormecimento. Já não é bem o Fátima, futebol e fado, mas é um adormecimento. É um meter para debaixo do tapete as questões políticas fundamentais que hoje se colocam. A questão da dívida: 250 mil milhões de euros. Essa dívida deve ser paga? Foi o povo português que a contraiu em seu benefício? Aqueles que tinham dúvidas agora perderam as dúvidas, já acham que a dívida deve ser paga? Sim senhor, dizem que para a dívida ser paga os serviços como o Hospital de São João, com as crianças cancerosas e um espetáculo digno do quarto mundo, não têm de ficar às escuras. Mas depois o que é que fazem quando chega a altura de sustentar ou não um governo que faz esta política? Sustentam-no…
BE e PCP são cúmplices de uma política que continua a ser de direita?
Exatamente. Sintetizou muito bem.
E isso é por vontade ou por estarem sem rumo estratégico?
Acho que é da própria ideologia. São partidos que não são revolucionários. São partidos que se dizem amigos dos trabalhadores, mas não têm uma ideologia revolucionária. São as relações sociais que têm de ser mudadas. Podem-no ser por meio de conversações simpáticas e tranquilas? Ao longo da História qual foi a classe que saiu do poder tranquilamente? Os senhores feudais dirigiram-se à burguesia ascendente e disseram: “Achamos que já desempenhámos o nosso papel. Façam o favor de tomar o nosso lugar”? Claro que não, tiveram de ser apeados pela força. Mudar as relações sociais dominantes tem um nome que pode assustar algumas pessoas: revolução. Quando não se tem a perspetiva da revolução, então apenas se pode ter a reformista, que significa manter o sistema de escravidão assalariada ainda que dourando um bocado a pílula aqui e ali.
Quando defende a revolução, defende uma revolução armada?
O que for necessário para apear uma classe do poder. A História demonstra-nos que nunca nenhuma classe aceitou abandonar o poder tranquilamente. É amanhã? Não, mas esta perspetiva é absolutamente necessária tê-la.
O papel dos sindicatos é diabolizado?
Essa diabolização é claramente insuflada pelo patronato. Agora, os sindicatos têm uma reflexão muito séria a fazer. Na realidade de um capitalismo financeiro global, de uma multidão crescente de pessoas que não entram nem têm nenhuma perspetiva de entrar no mercado de trabalho, dos crescentes precários, os sindicatos têm de fazer uma introspeção. Em larga medida, os sindicatos transformaram-se – e sou um acérrimo defensor dos sindicatos – num instrumento de defesa dos que estão no mercado de trabalho, abandonando os que já lá não estão, designadamente os que foram para o desemprego e os que ainda não lá estão ou que nunca lá chegarão. Isto restringiu muito a sua capacidade representativa.
Diz que o Ministério Público nunca conclui nos casos de eventual corrupção. Acha que é por falta de vontade ou incompetência?
Acho que é tudo junto. É outro ponto que deve ser discutido aprofundadamente e onde a discussão é muito difícil por interesses puramente corporativos de quem se transformou num Estado dentro do Estado. O que temos hoje é um processo penal onde o Ministério Público faz o que quer na fase decisiva do processo: se quiser meter para baixo do tapete mete para baixo do tapete. A perversidade e o risco é tão grande para acusar como para arquivar e, de certa forma, ainda pior para arquivar, porque depois não tem remédio. Quando quer acusar, o MP tenta ganhar fora de campo aquilo que não consegue ganhar dentro de campo. Um jogo inteiramente perverso de utilização das “fugas cirúrgicas do segredo de justiça”, articuladas com a teoria de que os prazos são meramente ordenadores e disciplinadores da marcha do processo e não perentórios. Isto permite que seja possível liquidar-se alguém de que não se gosta antes do julgamento. Isto é inaceitável. Não quero viver numa sociedade destas.
É o que se passa com José Sócrates?
Por exemplo. Sobre esse ponto de vista sinto-me muito à vontade. Não tenho nenhuma afinidade política nem pessoal com o engenheiro José Sócrates e acho que foi um dos piores primeiros-ministros de Portugal, mas o que se tem passado naquele processo é absolutamente inaceitável. Devo-lhe dizer também que quando foi o interrogatório do Dr. Miguel Macedo, ministro da Administração Interna [no anterior governo PSD-CDS], no processo dos vistos golds e à tarde vemos no CMTV a gravação áudio e vídeo, tomei exatamente a mesma posição. É a lógica de queimar a lume brando, julgar e sentenciar na praça pública, sempre de forma impune.
Há politização da Justiça?
Estamos a admitir a criação de poderes incontroláveis e incontrolados. O 25 de abril nunca entrou na Justiça. Por exemplo, o procurador da República, Lopes de Melo, do processo do assalto ao Quartel de Beja, defendeu em alegações que tinha muita pena que o Código Penal [em 1962] não previsse a pena de morte por ser a adequada para traidores à pátria como aqueles. Esse indivíduo prosseguiu [depois do 25 de abril] com a sua carreira, passou do MP para juiz e chegou a presidente da Comissão Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
Não houve saneamentos na Justiça.
Não houve. Os tribunais são o único órgão de soberania que não têm uma legitimidade democrático-electiva e ninguém o quer discutir. Sempre que se quer discutir o MP desata aos berros e aos gritos a dizer que está em causa a sua autonomia e que agora que está a atacar a grande criminalidade aparecem aqui uns fulanos. Se levanto isto a propósito do processo da Casa Pia, independentemente de não ter nenhuma simpatia sobre os réus daquele processo e de ter as minhas convicções sobre o que eles possam ou não ter feito, não aceito que se condene alguém por “ressonância da verdade”. Não sei o que é isso e estremeço perante uma situação dessa. No processo da Casa Pia decidiram andar a vasculhar os telefones, designadamente do presidente da altura Jorge Sampaio, do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, do Presidente do Tribunal Administrativo e de uma série de outras pessoas. Suspeitavam que o dr. Jorge Sampaio era pedófilo ou estavam a aproveitar o processo para irem sacando umas informações sobre outras pessoas? O MP conseguiu criar uma fase do processo, a do inquérito, que não tem cobertura constitucional. O MP ficou com um poder enorme nas mãos e faz o que quer. A Justiça penal transformou-se num instrumento penal de abate de cidadãos incómodos e de adversários políticos.
A sua carreira política acabou?
Não sei o que é uma carreira política. Sou uma pessoa que não se demite de ter ideias e de defender aquilo que é justo para a construção de um mundo justo e solidário. E isso continuo a ser.
Revê-se noutros partidos?
Seguramente que não.
E criar um partido?
É muito cedo para pensar sobre isso. Deixemos as águas correrem tranquilamente por baixo das pontes. Mas acho que todos os cidadãos – e não é apenas um direito, mas também um dever cívico – não se devem demitir de ter uma posição crítica sobre as coisas e de usar a visibilidade e os meios que têm para contribuir para a formação de cidadãos não cordeiros, mas cidadãos ativos e conscientes e é disso que a sociedade precisa.
Não põe de parte criar um novo partido.
Direi que não ponho de parte coisa nenhuma. O que não ponho sobretudo de parte é a minha capacidade de intervenção sobre tudo aquilo que ache que se prenda com a criação de uma sociedade justa e solidária. Estarei em qualquer luta.
O MRPP faz sentido ainda? Ainda cumpre o seu papel?
A ideologia do MRPP na qual militei, indiscutivelmente. Aquilo em que está transformado hoje indiscutivelmente que não.
O MRPP defendeu os ataques jihadistas como resposta ao imperialismo. Isso alguma fez parte da ideologia?
Não. E acho, aliás, que é uma questão que merecia ser seriamente discutida em vez de quem quer que seja que tenha suscitado ou suscite dúvidas relativamente a essa opinião seja imediatamente insultado e apelidado de tudo e mais alguma coisa. Os marxistas, os revolucionários, sempre defenderam uma violência de classe e não atos de violência indiscriminada atingindo civis inocentes.