Um velho e uma criança, uma árvore e um rio. Seis garrafões ou um saco, o que for será o peso que se carrega às costas. Sempre o peso, todo, do passado que não se esconde na Sarajevo deste século a que chegou André Gil Mata para esta viagem ao longo de um rio a atravessar as guerras e a este velho, Ibro. Nome que nunca saberemos, e melhor assim. Melhor poderem ser duas personagens ou uma estas duas, poder ser tudo isto real – a árvore e a fogueira entre a neve, junto ao rio – ou exercício introspetivo. A Segunda Guerra, depois a outra, a da Bósnia, o cerco a Sarajevo, ou qualquer uma. Aleatória será qualquer história a partir de certo ponto.
E nesta árvore que quase não é neste “DRVO / A Árvore”, estreia do realizador na longa-metragem para a abertura de mais um IndieLisboa (hoje, às 21h, no Cinema São Jorge), poderemos encontrar um país dilacerado. Observa o velho que a árvore que pouco cresceu em todos esses anos, os que separam duas guerras e que afinal parecem poucos. Não é o que fazem, crescer, as árvores, enquanto esperam pela luz e pelas folhas. Poderemos encontrar a Bósnia, a mãe desaparecida, mas virá o realizador negar em conversa todas as simbologias. Uma árvore pode ser até “o que nós somos, como seres humanos”. A árvore, o rio, a mãe, os garrafões ou o saco às costas. “Espero que não sejam apenas elementos simbólicos. Sei que são elementos que têm uma carga na nossa cultura, na nossa história, com imensas leituras e histórias à volta, mas para mim a árvore e o rio no filme eram coisas muito concretas.”
Começará então este filme-poema a fazer-se perfeito, mais perfeito do que podia, quando soubermos que a árvore é a árvore com que deu André Gil Mata um dia num ponto em que se cruzam dois rios a ocidente de Sarajevo, onde viveu durante quatro anos – três a fazer um doutoramento, outro para este filme. “A ideia da árvore nasce de uma fotografia que tirei com que fiquei obcecado. Num cruzamento de dois rios, uma árvore e um vulto”, ilusão de ótica para o vapor gerado pelo cruzamento de duas águas diferentes. “Parecia uma pessoa a aquecer-se numa fogueira, foi daí que a árvore surgiu, e eu realmente via sempre a árvore nua, sem folhagem, quase morta, seca.”
Ponto de partida no processo, ponto de chegada neste filme será esta árvore junto à qual se hão de encontrar o velho, com um cão, e a criança, filme a dois atores mais uma atriz para a personagem desaparecida. À partida, será o velho. Um velho recolhendo garrafões de vidro, num dos primeiros sinais de que o concreto dispensará metáforas. “São tudo coisas muito básicas. Se virmos fotografias de Sarajevo durante o cerco [abril de 1992 a fevereiro de 1996] são recorrentes essas imagens das pessoas com bidões de plástico e carrinhos a irem buscar água a cisternas que chegavam. É uma ação muito prática. Aquela pessoa precisa de água, vai buscar água. E, com isso, tem que carregar uma coisa às costas para a transportar.”
A realidade a fazer-se perfeita a ela própria mesmo na guerra, na catástrofe contada como se contaria sem as palavras, de que o realizador-argumentista também despoja “DRVO / A Árvore” em que se virão depois da primeira hora e a conta-gotas as primeiras palavras – “mãe”, depois “schnell”, a dizer-nos que isto não é agora, é a II Guerra, a Bósnia a ser invadida por Hitler para as cicatrizes que ficarão para sempre. Virá no final o primeiro, único e grande diálogo.
Primeira parte em tempo real, talvez mais demorado do que esse ainda. “Tive durante a rodagem uma discussão com o Petar [Fradelic], o ator, por causa dessa cena. Dizia-me que, se fosse fazer aquilo em tempo real, faria muito mais rápido. Mas não é esse tempo. O tempo real não é um só. A partir do momento em que falamos em tempo real ele deixa de existir porque pertence a cada um de nós”, explica André Gil Mata sobre um dos aspetos que tem levado a crítica a compará-lo a Béla Tarr – de resto, criador do programa da Academia de Cinema de Sarajevo que frequentou o realizador português.
“O que sinto é que o tempo efetivo daquela personagem, daquela pessoa, o levantar dos garrafões e a própria calma que ele procura dentro dele, não é um tempo que de repente se consiga dizer ‘então aqui isto tem este tempo’. Está inerente à situação em si, é o tempo vivido desse momento. Para mim, esse tempo era aquele. Se aquela ação é realmente árdua e dura, se é esse o peso, é o peso da personagem que tento transmitir. Obviamente que cada um o sente de forma livre.”
Sem restrições foi-se também construindo este filme, feito ao longo do último ano na Bósnia, rodado no pico do inverno, ano mas que começou a ganhar logo depois da chegada a Sarajevo. Para André Gil Mata, não há o filme decidido, antes o filme que se vai mostrando. “Não é muito racional o meu processo, vem mais de uma necessidade, de alguma coisa que começa a nascer cá dentro que depois preciso de colocar em prática, de fazer.”
E juntar-se à árvore, veio a experiência numa cidade sobrevivente de uma guerra, e de outra. “O filme partiu muito do impacto que teve em mim a presença que se sente ainda da guerra dos Balcãs, que se sente em toda a ex-Jugoslávia mas que em Sarajevo tem uma presença particular – da arquitetura ao rosto das pessoas, à sua forma de estar. E a isto começou a juntar-se esta ideia de uma pessoa que vive duas guerras na sua vida.”
Das marcas da guerra num país estrangeiro, veio o gesto introspetivo. Afinal “DRVO / A Árvore” é sobre a guerra sem ter que ser, e pode ser apenas este homem, qualquer homem, a revolver-se por dentro, a olhar para trás. Mas também para a frente. No final, entre o rio que corre e a árvore que pouco cresce, virá a fogueira, primeiro reconforto. “São erros que a humanidade não vai parar de repetir. Na Europa, há 30 anos, tivemos uma cidade cercada durante anos e nós aqui fazíamos as nossas vidas como se nada estivesse a acontecer. É difícil para mim pensar que realmente alguma coisa vai mudar ou que vai ser diferente, mas espero que no final haja algo de reconforto e de esperança.” Também na guerra há que procurá-lo. E, como em “DRVO / A Árvore”, ele virá do mais simples.