Karl Kraus, o mais terrível dos grandes escritores do século passado, empreendeu de 1899 a 1936 uma avassaladora campanha satírica contra a hipocrisia moral dominante. A revista Die Fackel (O Archote), que manteve até à sua morte, com o propósito declarado de «lançar um grito de combate» à sua época, com 922 números publicados, num total de cerca de 23 mil páginas, funcionou como um «tribunal» perante o qual foram chamados a comparecer os intervenientes de uma trama mais sórdida do que todas as guerras. Para Kraus, nada teve consequências tão devastadoras como o processo de falsificação que passou a ser o modo de atuação da imprensa. Foi a partir de Viena, e numa altura em que o Império Austro-Húngaro parecia comprazer-se no seu desmoronamento – o que leva Kraus a falar num «feliz apocalipse» –, que empregou todos os seus recursos, do génio e erudição à sua fortuna pessoal, uma vida inteira, aparecendo como o inimigo público n.º1 daquela sociedade que era um reflexo de todo o mundo. Nessa atitude de denúncia ferocíssima dos vícios, manigâncias e imposturas com a realidade a ser alvo da distorção recreativa por parte da cultura, e da construção de uma opinião pública através, nomeadamente, da ação da imprensa. Assim, o real vê-se substituído por uma ilusão grotesca, e um efeito de normalização imediato do que até ter lugar nos parecia inimaginável, desumano. Nesta sua cruzada, Kraus foi-se isolando progressivamente, ao ponto de ter prescindido, a partir de 1911, de colaboradores, passando a redigir a revista sozinho. E, numa nota de rodapé, no excelente prefácio de Nesta Grande Época – volume de «sátiras escolhidas» que António Sousa Ribeiro viu publicado há semanas pela Relógio D’Água –, podemos ler este comentário de Kraus: «Já não tenho colaboradores. Tinha inveja deles. Eles afastam-me os leitores de que quero ver-me livre eu próprio». Aproveitando a publicação desta peça crucial para que, um século depois, o leitor português possa tomar contacto com esta obra monumental do «maior satirista de língua alemão» (como lhe chamou Canetti), aproveitámos para falar com o seu tradutor, e um dos seus grandes especialistas mundiais.
Este encontro com Karl Kraus tem muitos anos?
Sim, muitos. O Kraus foi o meu tema da tese de doutoramento. Terei sido das poucas pessoas vivas que leram Die Fackel de cabo a rabo. Foi necessário para o meu trabalho. Trabalhei esses textos a partir da noção da «poética da citação», sobretudo na relação com Shakespeare, que é muito intensa. E fiz um levantamento exaustivo das citações de Shakespeare que aparecem nos textos dele.
A que tempo remonta essa pesquisa?
Foi a partir dos anos 80. Apresentei a tese em 1991. Entretanto, já tinha publicado muito sobre o Kraus, e continuei a fazê-lo.
Não há outro tradutor entre nós que tenha trabalhado sobre Kraus?
Não. Excepto, recentemente, o Bruno Monteiro, que publicou uma coletânea de aforismos [Pro Domo et Mundo, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 2016].
E acaba de sair um volume mais extenso de aforismos na nova editora de Vasco Santos…
Há já uns bons anos o Vasco Santos interessou-se pelo Kraus e publicou uma pequena plaquete. Não sabia que, entretanto, ele ia publicar uma recolha maior.
Sim. Pôs fim à actividade da Fenda e criou a Vasco Santos Editor, abrindo o catálogo com uma reedição de A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer e Aforismos de Karl Kraus, um volume de 440 páginas. Mas o que achou das traduções de Bruno Monteiro?
São boas. Aliás, conheci o Bruno na apresentação de Os Últimos Dias da Humanidade [versão integral publicada pelas Edições Humus, em novembro de 2016]. Ele estava lá, tinha escrito um texto [por ocasião do espetáculo levado à cena, em 2017, pelo Teatro Nacional São João], fez quase um trabalho etnográfico… Porque o Bruno é de formação sociológica, e esse texto que escreveu para o programa do espetáculo tinha essa componente.
Voltando ao seu percurso…
Sempre tive essa ambição de traduzir UDH. Fiz uma tradução parcial – aliás, muito por insistência do Luís Oliveira, da Antígona… Durante anos ele ia-me telefonando regularmente a perguntar pela tradução, e eu acabei por fazê-la.
E há uma diferença muito substancial entre as duas?
Há. A outra era cerca de metade do texto, ao passo que esta é a tradução integral. Mais 350 páginas.
O interesse do atual volume antológico que fez das sátiras de Kraus é óbvio, mas não conhecendo este drama, porquê o seu especial interesse…
Os Últimos Dias da Humanidade, visto à superfície, é uma crónica da I Guerra Mundial. E isto no impacto que teve na sociedade austríaca. Portanto, trata-se de um drama documental. A técnica essencial da construção do drama é a montagem documental, a montagem de citações. E isto a partir do processo satírico que nos diz que a realidade constitui a sua própria sátira. Isto é: o autor satírico tem apenas de trabalhar os documentos de maneira a extrair o seu significado paradigmático, apresentando ao leitor (neste caso à audiência do espetáculo) a enormidade da situação.
O que distingue a abordagem de Kraus?
Como digo no prefácio, passa por fazer a crítica da normalidade. Isto porque, na verdade, este é um drama em que a maior parte das cenas se passam em Viena, portanto, na retaguarda. Não se passa na frente de batalha, embora haja uma ou outra na frente. Há lá uma personagem satírica, Alice Schalek, que foi a primeira jornalista historicamente acreditada como correspondente de guerra. As cenas em que aparece essa senhora são, basicamente, transcrições dos textos que enviava para o jornal. Aliás, o Kraus, num texto de reflexão marcante designa-se a si próprio como o inventor da citação.
O que quer isso dizer?
Usa esta formulação paradoxal para mostrar justamente que, num contexto ideológico e numa esfera pública dominada pela multiplicação dos discursos, e que é paradigmaticamente representada pela figura da imprensa, o autor satírico não tem de inventar nada, tem apenas de conhecer bem esse universo, inserir-se nele e destacar aquilo que denuncia o aparente estado de normalidade como sendo, na verdade, um estado de exceção. Portanto, as cenas passam-se em Viena, com inúmeras personagens da vida pública, com os generais a falarem tranquilamente sobre os 80 ou 90 mil homens que sacrificaram e mostrando que não estão dispostos a que isso lhes seja atirado à cara porque os homens estão ali justamente para isso.
Em que medida a obra de Kraus lhe parece ser nuclear no confronto das questões que ainda hoje dominam o debate público?
Se quisermos procurar uma reflexão extremamente profunda sobre as condições de existência, as formas de criação e de multiplicação de uma cultura de violência, está lá tudo. Porque a violência é o tema estruturante desta obra, e quando falamos aqui de violência não é apenas a grande violência que se passou nas trincheiras, mas é a violência intersticial nas relações quotidianas. E aí está um aspeto de profunda modernidade nesta obra. A forma como aborda as relações de poder, a violência do discurso… E é curioso como, na literatura mais recente sobre a I Guerra Mundial, a perceção que caiu no senso comum é de que toda a gente queria a guerra, que havia um apetite de sangue qualquer, ao nível das nações… Fala-se disso, por exemplo, na relação entre a França e a Alemanha. Que os franceses estavam ansiosos por recuperar a Alsácia Lorena, em conjunto estavam ansiosos por se vingar da Alemanha… Na verdade, ainda recentemente li uma obra marcante – li e, aliás, até traduzi… O título é A Dança das Fúrias [de Michael S. Neiberg].
E vai ser publicado?
Já foi, em 2014, por uma pequena editora alentejana que se chama Publicações a Ferro e Aço. Este autor é um dos grandes especialistas da História da I Guerra Mundial, e ele cita inquéritos sociológicos nas vésperas da guerra que mostram que apenas 10% dos franceses estão preocupados com a Alsácia Lorena. Os dados sociológicos dizem-nos, portanto, exatamente o oposto do que dizem as narrativas históricas. Assim, todo o potencial de violência fora produzido, em boa parte, pelo próprio esforço de guerra e os seus efeitos. Também nesse aspeto a I Guerra foi um momento de charneira de todo o século XX. É, na verdade, o início do curto século XX.
Kraus é, nesse contexto, um intérprete mortal para os mitos que circulam?
Uma das coisas que o Kraus mostra é como se gera essa cultura de violência, e como os principais responsáveis, aos olhos dele, são as pessoas que lidam com as palavras. Os intelectuais, os escritores, os jornalistas, etc. Personagens com bastante proeminência e que são, justamente, aqueles que têm a responsabilidade pelo discurso que se produz, que o usam irresponsavelmente, e transformam também as palavras em armas.
Pode dar um exemplo?
Um dos aforismos que surge nos UDH diz-nos: «Um despacho noticioso (ou uma notícia de jornal) é um instrumento de guerra como a granada, que também não toma quaisquer factos em consideração». Quando hoje se fala na pós-verdade, tinha já lido tudo isso no Kraus. Quando foi para a frente a guerra no Iraque, em que os editorialistas… José Manuel Fernandes, toda essa gente que está à frente dos nossos jornais e que se tornaram grandes especialistas militares de um momento para o outro, eu lia aquilo com uma enorme sensação de déjà vu. Se se fizesse hoje em dia uma antologia desses editoriais…
O que pensa que ficaria claro?
O que saltaria à vista é justamente a irresponsabilidade de pessoas que não conhecem os factos, que levaram a sério a conversa das armas de destruição maciça – como sendo até um dogma de fé –, e que a partir disso constroem um discurso belicista que vai ter uma influência enorme. E foi isso, precisamente, o que aconteceu no contexto da I Guerra. Há até um célebre episódio, usado pela propaganda alemã, que foi o bombardeamento de Nuremberga, coisa que nunca aconteceu. Isso não impediu que servisse de motivo para a guerra, e o Kraus glosa esses aproveitamentos insistentemente.
Como a granada.
Sim. Aí está a notícia que não tem consideração pela realidade e, portanto, é destrutiva. É uma arma de destruição maciça. E o Kraus tinha já mostrado na I Guerra que a maior arma de destruição maciça é aquilo a que chamamos cultura, ou linguagem, ou discurso, ou a imprensa… A maneira como a cultura se transforma numa arma de destruição maciça através desse uso irresponsável da linguagem é o grande tema daquele drama.
Há outros?
Há. Este drama é proteico, é um universo de uma complexidade total. Durante muito tempo tido como intraduzível… Na verdade não é nada intraduzível. Ou, como ensino aos meus alunos, tudo é intraduzível. O pressuposto de qualquer tradução é que as línguas são incomensuráveis, e são imensamente diferentes entre si, sendo que o tradutor faz o seu trabalho contra a intraduzibilidade das línguas. O que o tradutor faz é, com o seu sangue, suor e lágrimas, refutar esse princípio e, obviamente, produzir um texto que, depois, é seu. Não é equivalente, no sentido mais limitado da palavra. Mas pode transmitir ao leitor que não lê na língua original aquilo que é o universo de um autor. Isso é possível.
E como foi para si a experiência de traduzir UDH?
Foi das coisas mais felizes que me aconteceram na vida. Nem nos meus sonhos mais ousados alguma vez pensei que veria este drama encenado num palco português, e aí estou muitíssimo grato ao Teatro Nacional São João, ao Nuno Carinhas, ao Nuno Cardoso, enfim, a toda a gente que esteve envolvida. Foi um espetáculo notável. Em qualquer parte do mundo seria tido como uma noite inesquecível.
E como lhe parece que foi a receção por cá?
Teve algum destaque. Aliás, quando o Francisco Vale me contactou a perguntar se eu não estaria disponível para traduzir algumas coisas do Kraus para a Relógio d’Água, disse-lhe que sim por vários motivos. Valorizo muito o trabalho de tradução, e o que lhe propus foi que começássemos por uma recolha antológica das sátiras. Não posso avaliar se ele estava muito convencido ou não quanto ao sucesso de uma edição destas, mas eu estava seguro de que era, pelo menos, a altura ideal, porque o nome de Karl Kraus – que talvez fosse já minimamente reconhecido –, depois do espetáculo do TNSJ foi definitivamente posto no mapa dos meios culturais portugueses. Isto embora continue a ser um autor difícil…
A peça facilitou?
A verdade é que o drama também é difícil, mas o teatro esteve sempre cheio. A última sessão foi num sábado à tarde, começando às três da tarde e acabando à meia-noite, com as três partes a serem representadas em sucessão (e, mesmo assim, essas oito ou nove horas não chegam para um terço do texto completo). E o teatro esteve cheio, as pessoas estiveram ali das três da tarde à meia-noite… Tenho uma irmã que não é propriamente uma pessoa com cultura literária, mas que foi ver e gostou muito, estava muito impressionada. Portanto, mesmo ao público em geral, e sem grandes ambições culturais, aquilo dizia alguma coisa.
Kraus é um autor que, em certo sentido, inaugura (como refere no prefácio) a crítica dos media, é assumido como uma influência decisiva na formação de figuras como Elias Canetti, Theodor Adorno… Fale-me um pouco dessa árvore krausiana.
Kraus construiu a sua persona satírica – portanto, a sua figura autoral e pública – a partir de uma figura de isolamento… O que até certo ponto não deixa de ser verdade, porque ele é marginalizado. O nome dele nunca foi referido na imprensa.
Depois daqueles ataques todos…?
Na vida dele, não.
Tinha ideia, tendo em conta o que o próprio Canetti diz das sessões públicas dele, que era uma figura altamente influente e visível na sociedade vienense…
Era altamente influente mas num determinado nicho. O dos seus admiradores. Ele lia textos seus, ou lia dramas de Shakespeare, inteiros, em que fazia todos os papéis, e lia perante auditórios de mil pessoas. No total, fez 700 desses recitais que o Canetti descreve muito vivamente. E não apenas em Viena, também em cidades alemãs, sobretudo em Berlim. Algumas em Praga, mas pelo menos uma metade delas terá sido em Viena. E sempre atraindo muito público.
O que lhe parece que havia de singular no caráter dele?
Estamos a falar de uma personalidade avassaladora e que, nessa Viena do princípio do século, estava a pôr na ordem do dia temas tabu. Sobretudo a questão da sexualidade, que era um tema muito marcante. Freud nesses dias estava muito ativo, a publicar os seus livros, esse tema começava a surgir no radar da opinião pública, e o Kraus intervém largamente nessa discussão. Só para citar mais um nome incontornável: Bertolt Brecht. Não é possível pensar no teatro épico de Brecht sem conhecer UDH. É esse drama aquilo a que Brecht vem a chamar o teatro épico e que antes de o ser já o era.
Brecht assumia-se como um discípulo de Kraus?
É um grande admirador, dedica-lhe vários textos, e os dois conviveram bastante em alguns períodos, em Berlim. Quando Brecht tem de fugir de fugir da Alemanha depois da tomada de poder pelos nazis, o Kraus é um dos que o ajudam, inclusive monetariamente. Recebe-o em Viena, etc. Todas essas histórias estão documentadas, fazem parte da receção desta obra… E podemos perceber pelos textos de Canetti a influência de Kraus, porque nos permite compreender até que ponto ele era uma personagem dominadora.
Para o bem e para o mal.
Sim. No sentido em que exercia um poder intelectual que ia até a aspetos bastante problemáticos, coisas das quais o Canetti, quando se distancia dele, também reflete criticamente, acabando por escrever textos sobre Kraus a partir de uma posição autónoma, depois de ter passado por uma fase de total rendição ao domínio de Kraus. E isto com um fascínio pela coragem das suas intervenções públicas.
No seu prefácio fala da ideia de uma ética que lhe confere autoridade. Pode explicar essa ideia um pouco melhor?
Essa questão é de facto central. Vamos ver se consigo organizar as ideias sobre isso. A ética é um clássico da teoria da sátira. A noção de que a sátira necessita de ser legitimada eticamente ou, dito por outras palavras, tem de cultivar um horizonte de utopia. Há uma definição clássica de Friedrich Schiller num dos seus textos de estética em que diz que a crítica tem de estar sustentada por um ideal. Se não houver um ideal positivo, a sátira fracassa. A negatividade da sátira tem de se justificar pela existência desse ideal. É preciso compreender que a sátira é uma forma de agressão. É uma forma literária estruturalmente violenta.
E o que é que isso implica?
A sátira agride e, como em relação a qualquer outra forma de violência, põe-se a questão da legitimidade desta violência. E há duas dimensões da legitimidade da violência satírica: uma dimensão que é ética, justamente, e já lá iremos, e uma dimensão que é estética. A censura existiu até ao final da guerra, e Kraus tem um aforismo em que diz que «as sátiras que o censor é capaz de compreender é justo que sejam proibidas».
Até que ponto estava ser literal?
Tem de se compreender que aqui quando ele diz que é justo não é de um ponto de vista do Direito, da Justiça, no sentido abstrato, é justo do ponto de vista de uma justiça literária. Se o censor era capaz de compreender é porque a sátira não tinha a sofisticação literária que se exige. Portanto, por um lado, há a legitimidade estética da sátira, e, por outro, há a legitimidade ética. A crítica ao estado de coisas existente, esse estado de normalidade que é, na verdade, um estado de exceção, e a violência dessa crítica, ou seja, a agressão – e qualquer definição de sátira tem que começar por defini-la como um modo de exercer violência; violência simbólica, evidentemente, mas um modo de exercer violência – claro que é uma questão de grande complexidade e sempre conflitual.
E como se resolve?
Tem de haver um princípio ético que subjaz à negatividade da sátira. A sátira é um modo estético da negatividade e a definição de Schiller mantém-se muito atual. Ora, qual é o ideal positivo, a sua legitimação ética? No limite, dir-se-á, no caso de Kraus, é uma ideia de Humanidade. Mas o que é muito interessante, tendo em conta que Kraus não é um filósofo moral mas sim um escritor, um indivíduo seduzido pelas palavras, como qualquer escritor, é que a sua ideia de Humanidade é extraordinariamente concreta. E o que ele crítica no discurso da violência dominante é o não ter em causa o sofrimento concreto de pessoas concretas.
Como é que isso se traduz na atitude dele?
É muito evidente em muitas das suas sátiras. Há um texto que, a esse respeito, me parece exemplar. Um dos últimos textos desta antologia: «Pão e mentira» O que acontece: Depois do final da I Guerra a Áustria está de rastos, há fome, há problemas de abastecimento, a I República é hostilizada quase por todos os quadrantes políticos, tem muito poucos defensores… A I República, no pós-guerra, estabelece-se numa base de apoio social, o que lhe dá uma base extremamente precária. Um dos planos que o executivo tinha para amenizar a situação de carência da população era vender os Gobelin do Palácio Imperial…
Os quem?
Gobelin… Os tapetes [tapeçaria da Flandres], que são extremamente valiosos. E é curioso que esse plano foi acolhido com uma vaga de indignação brutal dos amantes da cultura, dos defensores da arte… E Kraus surge na linha oposta, e defende nesse texto que se for preciso vender uma tela do Rembrandt para proteger alguém do frio é isso que deve ser feito. E ele acrescenta: «E esse podia ser um Rembrandt também. A vida de um homem é mais importante que uma obra de arte». Faz lembrar a distinção marxista clássica entre trabalho vivo e trabalho morto. O fetichismo da cultura, o fetichismo do património…
Isso não pode levar, numa época como a nossa, a destruir por completo qualquer estrutura de apoio à cultura?
Sim, pode certamente. Mas aqui a questão prende-se com prioridades. É também uma questão da dimensão satírica. É evidente que Kraus não está a defender que se destrua o Rembrandt. Aqui, é importante também perceber o significado, eu diria, no limite, ficcional desta. No limite, a questão que ele coloca é o que é que vale mais: uma obra de arte ou a vida de um ser humano?
É, então, uma questão de ponderação.
Sim. Saber se vale mais a vida de um ser humano ou a persistência da posse de um quadro. Esse fetichismo da cultura passa pelo culto daquilo que já está feito. Aliás, a este respeito, Kraus está em consonância com as vanguardas artísticas no princípio do século. Quando os Futuristas disseram que era preciso queimar os museus e tal, qual é o pensamento subjacente? É que a arte é aquilo que se está a fazer, não é aquilo que já está feito. Portanto, afirmam que não se pode sufocar o futuro em nome do culto do passado. E o futuro é, antes de mais, a vida do ser humano que está em sofrimento. Há, de resto, uma cena já perto do fim de UDH, que é de uma simplicidade extraordinária.
Pode descrevê-la?
Essa cena é apenas isto: uma viela, com um realejo a tocar a Marcha dos Habsburgos (uma marcha patriótica) e um soldado cego, conduzido pela sua filha pequena. E a filha o que está a fazer? A apanhar as beatas do chão, passando-as ao pai, até que, em determinado momento o pai lhe diz: «Olha, já chega». Então pega no tabaco, ataca o cachimbo e fuma-o. Nisto, passa um oficial que, ao ver que este não lhe faz continência, em tom ríspido, pergunta: ‘Mas você é cego ou quê!?’. E o soldado responde: ‘Sou’. E o outro: ‘Ah, bom’. E segue o seu caminho. A cena acaba aqui. Nesta minúscula cena, centrada nesta imagem extremamente comovente, encontramos, microscopicamente, tudo aquilo que a guerra é. Tudo o que tem de destruidor para o ser humano, está concentrado neste olhar microscópico, e esta técnica que é a do teatro épico, passa por concentrar no gesto, na pequena cena, no quadro, todas as pistas para o espectador poder refletir sobre o estado da sociedade, e sobre aquilo que é preciso mudar na sociedade.