Fuga para lado nenhum ou partida para o lugar possível, Lisboa vista dos telhados, ou de um jardim ou um quarto escuro, à noite, ou Lisboa a amanhecer, quando as memórias se fazem partida. Partida para o que sobra depois do fim, desse corte que virá Beckett explicar neste regresso às memórias que é “Anjo”, estreado ontem na competição nacional de curtas do IndieLisboa e com uma segunda sessão quinta-feira (Cinema São Jorge, às 21h30). Memórias que são as de Miguel Nunes, ator que protagonizou “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, e que a partir delas e entre amigos construiu a curta-metragem que marca a sua estreia na realização.
Sobre isso não haverá dúvidas, é o ator-realizador-argumentista a expor-se a interrogatório logo de início. Nome, apelido, data de nascimento e as dúvidas desaparecem. Explicar-nos-á depois, em conversa, que a decisão de fazer um filme partiu da vontade de fazer este, de falar sobre este lugar. “Não foi uma coisa que eu sempre quis, realizar. Quis fazer este filme, que começou no momento em que comecei a olhar para uns cadernos que tinha. Tinha hábito de escrever algumas coisas e fui-me apercebendo que tinha reunido algumas memórias que me transportavam para um certo imaginário.”
A essas memórias foram-se juntando outras. Dos momentos em que se cruzou com os textos do escritor Caio Fernando Abreu ou com uma pintura de Vítor Arruda. Os dois conheceu no Brasil, numa das viagens para as estreias de “Cartas da Guerra”: dois homens de frente um para o outro, “um não tem chão, o outro tem um precipício”. Tudo isso se foi juntando no que seria o ponto de partida para “Anjo”, no dia em que conheceu Francisco Mira Godinho, coargumentista e produtor, em conjunto com a Videolotion de “Verão Danado”, de Pedro Cabeleira.
De antes, tinha vindo “Cascando”, poema de Beckett que guardava desde os tempos do conservatório. “É um poema que fala sobre isto. Sobre o fim, um corte de uma relação entre duas pessoas, e sobre como há qualquer coisa muito forte que permanece, apesar desse fim, e o receio pelo que vem a seguir.” Sobre perda será também o cantar dos pássaros, à janela, em mais uma evocação de memórias do tempo, esse mesmo tempo, ainda no conservatório, em que um vulcão de nome impronunciável em erupção na Islândia matava pássaros. “Sou muito ligado aos pássaros e aquilo fez-me muita confusão. Escrevi muito sobre isso, foi um momento muito perturbador naquela altura porque morreram muitos, muitos pássaros, sobretudo pássaros migratórios.”
Entre os pássaros quase despercebidos e uma referência a Salvador Sobral no genérico como “mouse” – numa das cenas de “Anjo”, um hamster é devolvido à natureza de uma gaiola – nada virá como acessório, despropositado e talvez por isso seja este um filme tão justo, na medida certa. A voz americana para o rosto que não vemos é a de uma pessoa que Miguel Nunes conheceu na mesma noite em que conheceu Francisco Mira Godinho para ali decidirem que juntos partiriam para este filme.
“Uma coisa que pertencia às nossas vidas” Se fronteiras entre realidade e ficção importarem, que não importam, explica Miguel Nunes a importância de assumir a sua identidade de início – ao lado dos outros atores, que todos andarão perto de si próprios. Daí que só pudesse ser para Nova Iorque esta viagem, onde vive o coprotagonista Edgar Morais. “Foi a maneira que encontrei de lhes dizer de uma forma muito imediata que o que queria no filme era que eles fossem eles mesmos. Que, se quisessem estar no filme, ia ser um filme em que íamos escolher falar de uma coisa, mas uma coisa que pertencia às nossas vidas.” A Miguel Nunes e a Edgar Morais juntam-se ao elenco Joana de Verona e Erica Prince, Beatriz Godinho, João Pedro Mamede, entre outros.
“Não queria pensar numa construção muito para além daquilo que é a vida deles e o espaço que habitamos, a cidade de Lisboa, com a instabilidade que vem das nossas profissões, por isso é que o filme também não fala de profissões diferentes das nossas. Era importante que eles tivessem também essa vontade de falar sobre aquilo que lhes propus.” Ao mesmo tempo, simplificação para a dificuldade de acumular num filme de estreia na realização essa tarefa com a de ator protagonista, o “estar dentro” ao mesmo tempo que é preciso ver de fora.
Decisão certa, talvez a única possível, para um filme por tudo honesto que se vê com a urgência daquele diálogo inicial de Miguel Nunes em que o fazer não se fica por isso, imperativo. Urgente. Como no poema de Beckett, antes demasiado cedo do que nunca.