António Sousa Ribeiro. “As Humanidades cometeram o erro de se colocar numa posição defensiva”

Catedrático da Universidade de Coimbra, Sousa Ribeiro é uma das autoridades mundiais na obra do maior satirista de língua alemã, Karl Kraus

António Sousa Ribeiro leva mais de três décadas furando por entre a barulheira, tirando as horas que pode para ir sentar-se na fila da frente de um inultrapassável vulto do século XX, o satirista vienense Karl Kraus. Dele, este catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra tem aprendido e cultivado junto dos seus alunos esse talento feroz e o vigor infatigável necessários para ver para lá dos argumentos da cáfila de especialistas de última hora, esses “sicários numa esfera de ação indireta, sentados em casa, quando não têm a sorte de contarem anedotas num departamento de imprensa” e que “ensinam aos povos o medo dia após dia, até estes, com certa justificação, o sentirem verdadeiramente”. Galardoado no final de 2017 com o Grande Prémio de Tradução Literária, da Associação Portuguesa de Tradutores pela tradução do monumental drama “Os Últimos Dias da Humanidade” (Edições Humus) – que o Teatro Nacional São João encenou com um retumbante sucesso -, publicou há semanas um volume de “sátiras escolhidas” de Kraus. Esse foi o mote para uma conversa sobre as denúncias deste autor à cultura mediática e os atuais desafios que se colocam às Humanidades.

Disse que Karl Kraus tinha claro que a negatividade da sátira tem de se justificar pela existência de um ideal. No caso dele, de uma noção de humanidade.

Uma humanidade concreta – o termo pode estar um pouco estafado, mas aquilo de que aqui estamos a falar é de um humanismo concreto… É um facto pouco conhecido… E é preciso dizer, primeiro, que ele tinha uma situação financeira confortável, porque o pai era um industrial riquíssimo que se tinha mudado da Boémia para Viena (um movimento muito vulgar na altura), e que integrava a burguesia judaica. Portanto, Kraus tem um rendimento próprio, que lhe vem da herança paterna, e permite levar uma vida sem constrangimentos… Mas esses recitais que fazia, que estavam cheios, e eram muito lucrativos, ele nunca ficou com esse dinheiro. Isso está tudo documentado.

Na revista?

Sim, ele documenta qual foi o destino do dinheiro. Deu dinheiro para as mais diversas instituições, escolas… Há um documento inédito que descobri nas pesquisas que fiz no arquivo Karl Kraus em Viena, e é um documento que nunca mais esqueci, porque estava escrito em braille – que não sei ler, mas tinha a versão transcrita -, e era de um menino de uma escola judaica nos arredores de Viena que, nos anos 1920, escreve a Kraus para agradecer o dinheiro que deu à escola e que lhe permitiu ter um violino, realizando o sonho dele de aprender a tocar o instrumento.

Este rapaz era cego?

Um jovem judeu cego. E, quando li isso, estremeci também ao pensar onde é que este rapaz terminou. Provavelmente terá morrido como tantos às mãos dos nazis. Este humanismo concreto não é apenas uma atitude do cidadão Karl Kraus, reflete-se literariamente na forma como ele concebe a sua intervenção, e a função da sátira como algo que passa por criar condições para um mundo mais humano.

E na ausência dessas condições…

É por essas condições não existirem que a guerra são os últimos dias da humanidade. É um título muitas vezes mal compreendido, porque a humanidade não acabou, o mundo ainda aí está… E há algumas leituras muito simplistas que dizem: “Então, ele apregoou os últimos dias da humanidade, e cá estamos nós.” Aqui, humanidade deve ser entendido como um ideal. Ora, o que Kraus dizia era que, depois da guerra, as condições para a existência dessa humanidade estavam totalmente comprometidas, e daí a dimensão apocalíptica da sua sátira.

Havia algum otimismo?

É um pouco em nome, por um lado, de um dever de memória, e, por outro, de uma esperança. Essa mesma noção nós encontramos num passo terrível, já não me lembro se nas cartas ou nos diários do Kafka, em que ele diz: “Existe esperança? Sim, existe. Mas não para nós”. A atitude do autor satírico é um pouco esta. Mas então, o que é que nós podemos fazer? Documentar isto. E intervir onde podemos intervir.

Já explicou o que lhe possibilitou as condições materiais para uma empreitada como a “Die Fackel”, revista que publicou durante 37 anos – com cerca de 922 números, quase 23 mil páginas. Era essa a obra dele?

A obra dele era a revista, sim. Mas tem outros textos. Tem vários dramas. O mais conhecido é “Os Últimos Dias da Humanidade”, mas tem outros. 

Para termos uma noção da distribuição, quantas pessoas chegaram a assiná-la?

É difícil dar-lhe um número. Variou muito. Os primeiros números da revista tiveram um sucesso estrondoso. O primeiro imprimiu 30 mil exemplares, e teve de ser reimpresso duas semanas depois. Temos de ter em conta, contudo, que na altura este tipo de publicações se vendiam nos quiosques, vendiam-se em todo o lado. Mas esses foram os primeiros números, antes de Kraus ter a sua persona literária configurada. Já tem alguns temas escandalosos, sobretudo o da corrupção. Normalmente, esse período inicial da revista é conhecido como a fase anti-corrupção.

E então ainda trabalhava com um corpo de redação?

Não. Ele fazia tudo sozinho. Simplesmente, publicava textos de outros autores. Nunca teve um conselho de redação ou algo do género. Em 1911, de facto deixa de contar com colaboradores, e tem aquele aforismo que cito no prefácio. 

“Já não tenho colaboradores. Tinha inveja deles. Eles afastam-me os leitores de que quero ver-me livre eu próprio”.

Ele tinha sempre estes jogos de palavras deliciosos, estes ditos de espírito que fazem da sua prosa algo extremamente sedutor e acutilante. Quanto à figura da exclusão e o exercício de autoridade, é algo que é consubstancial ao projeto da revista. Mas mesmo depois dessa fase, continuou a tirar milhares de exemplares, e tudo isso está mais ou menos documentado na própria revista. Mas é sobretudo a partir dos anos 1920 que o número de assinantes decresce, e, no final da vida, o último número é já publicado num contexto muito complicado, já depois da ditadura austro-fascista.

Não se confundia com uma atividade meramente artística ou clandestina?

Na verdade, tem uma fase de receção pelo grande público e depois outra fase em que o vai limitando. Mas a revista continua sempre a ter peso, e isto apesar desse fenómeno de ele nunca ser citado nem referido pelos jornais. A estratégia que a “Neue Freie Presse” [diário mais vendido à época na Áustria e de grande repercussão em todo o mundo] usa para responder aos ataques dele foi justamente silenciá-lo. Há alguns episódios até bastante cómicos na relação dele com esse jornal, com eles a fazerem todos os contorcionismos possíveis para não o nomear.

E ele?

Pagava na mesma moeda, com um ódio total. O Moriz Benedikt, o editor do jornal, aparece no epílogo de “Os Últimos Dias da Humanidade” na figura do senhor das hienas. Aquele à frente de um exército de hienas, que são os jornalistas que ele comanda. 

O “Die Fackel” chegou a ter números de apenas 20 páginas outros de algumas centenas…

Sim. O número mais volumoso tem 300 e tal páginas.

E em termos de periodicidade?

De início, saía de três em semanas, normalmente. Mas os números eram menos volumosos. Depois não. Deixou de respeitar qualquer periodicidade, e havia momentos de silêncio prolongado. No início da guerra há um grande hiato, e depois vai saindo irregularmente. Podia sair de dois em dois meses, ou três em três. Saía quando ele entendia que tinha material. Na verdade, a partir daí, cada número é um livro. É assim que os concebe, até na proporção entre os diferentes tipos de texto. O poema… (publica bastantes poemas seus na revista), o texto satírico, a glosa… 

Hoje, têm-se discutido muito as questões identitárias, e em particular o feminismo. Talvez não seja a primeira coisa que vem à memória quando se fala de Kraus, mas ele parece ser aguerridamente feminista.

Esse é justamente um dos pontos em que, sobretudo na fase inicial da revista, a obra dele se torna mais problemática. Por que ele é pioneiro no feminismo no sentido em que, nesta época, que é uma época vitoriana, de moral e hábitos muito conservadores, a defesa que ele faz em textos como “A Muralha da China” é, desse ponto de vista, portentosa. Como julgo que sublinho no prefácio, ele aí leva as coisas quase até ao paroxismo.

Em que a visão dele difere da do seu tempo?

Tem uma visão quase mítica da sexualidade da mulher. Isto é: o homem enquanto indivíduo sexual é uma insignificância quando comparado com a mulher. É quase como se fosse um mito da natureza, e, desta perspetiva, a civilização ocidental, ou a moral cristã, secou as fontes da vida ao reprimir a sexualidade feminina. É um tema que surge na dialética do Iluminismo: como a sociedade disciplinar da modernidade começa pela repressão do ser humano sobre si próprio, pela repressão da natureza pelo ser humano. E isto em nome da razão ou de outro princípio qualquer.

E o que pretendia ele?

Kraus quer abrir essas comportas. Assim, há nele, e de uma forma inaudita para a época, uma abordagem chocante. Publica uma coletânea de textos da revista que tem o título “Moral e Criminalidade”, e é basicamente sobre a criminalização da liberdade da mulher, nomeadamente no que toca aos processos por adultério. Portanto, ele segue alguns desses processos, documenta-os na revista. Além do adultério, situações em que a mulher matou o marido…

A par dessa defesa da mulher há depois um outro lado?

Há uma dimensão claramente misógina. Esta quase mitificação da sexualidade feminina vai a par com o menosprezo do intelecto feminino. As sufragistas, por exemplo, são objeto de sátira. Ele tem uma coisa horrível num dos números da revista… É uma das primeiras montagens – também nisso ele é pioneiro, e no uso da fotografia como documento -, em que surge uma sufragista a ser levada por um polícia, a gritar, e a legenda dele diz: “um grito de volúpia”. É horrível, pá. Isto hoje em dia é horroroso.

E isso mudou?

Felizmente ele depois deixou-se disso. O que é fruto, aliás, da relação que estabeleceu com algumas mulheres que estavam ao seu nível intelectualmente, e que ele leva muito a sério enquanto parceiras intelectuais. Mas naqueles aforismos dos primeiros anos, tem vários que hoje nos são difíceis de ler sobre esse tema. Tem um que é qualquer coisa do género: “A presença de uma mulher no meu gabinete de trabalho incomodar-me-ia tanto como se aparecesse um germanista no meu quarto de dormir”. Claro, que ele depois teve relações íntimas e intelectuais, até de colaboração, sobretudo com a mulher com quem ele esteve mais tempo e com quem ficou até ao fim da vida, e que o levaram a mudar a sua atitude face às mulheres.

Mas faz sentido condenar uma pessoa por haver aspetos grotescos na sua obra à luz de um tempo novo?

Isto são as contradições próprias destas figuras. Ninguém dá um passo, por maior que seja a figura – e nem umas das maiores, como é claramente o Kraus – sem expor os seus limites. E, nalguns aspetos, ele partilha os preconceitos que são característicos da sua época. Não está para além deles. Não é nenhum santo de altar. É preciso também ter esta noção dessas contradições. Agora, no meio delas, ele tem essa visão que se confunde com a sua vida pessoal, na qual ele era um assumido libertino.

Pode contar algum caso?

Dava-se muito bem com o Frank Wedekind [actor, dramaturgo e romancista, um dos precursores do movimento expressionista], e havia uma atriz que andava com os dois ao mesmo tempo, porque não se conseguia decidir. E ele [Kraus] acha isso perfeitamente compreensível. Não tem qualquer problema em relação a isso. E isto porque, em primeiro lugar, está justamente a escolha dela. Portanto, em matérias de sexualidade ele acha que o homem se deve reduzir à sua insignificância e que a mulher é que é o elemento ativo na relação.

Que reações provocava?

Esta ideia da mulher como elemento ativo é totalmente contracorrente em relação às conceções da época sobre o papel da mulher. Aí, claramente, ele está em contrapelo face ao seu tempo. Quanto a esses preconceitos intelectuais, esbarra nos seus limites. Assim, dizer que Kraus é um feminista não chega. Ele tem algumas conceções e práticas que vão ao encontro de lógicas de emancipação da mulher, e desde logo no que toca à emancipação sexual – isso é inegável -, mas tem outras atitudes misóginas. Mas depois o tema praticamente desaparece das páginas da revista, sobretudo a partir da guerra. 

Pensando agora no Kraus como figura precursora na crítica dos media, parece que estamos a chegar a um momento de plena legibilidade da sua obra satírica. A crise da imprensa aprofundou as suas tendências mais perniciosas. O facto de haver hoje tão pouca sátira, da mais violenta e com consequências que não essa dos humoristas, que acaba por ser algo que alivias…

A distinção entre sátira e humor é fundamental. São duas coisas que só superficialmente têm alguma coisa que ver uma com a outra. Um humorista não é um autor satírico. A sátira é outra coisa, embora nalguns contextos a distinção possa não ser tão fácil. Mas a distinção deve ser feita.

E o que pensa da imprensa nos moldes atuais?

Há uma definição muito famosa, que não é do Kraus, do jornal e que, parafraseando, nos diz: “um jornal é uma secção de publicidade que só se torna vendável acrescentando-lhe uma parte literária, ou uma parte noticiosa”… E, portanto, a mercantilização é uma tendência que só foi potenciada. Já nas cartas do Eça, enquanto cônsul em Bristol, o gajo escreve aqui para os Negócios Estrangeiros a dizer que precisa de dinheiro para subornar um jornalista porque é a única maneira de pôr uma notícia, neste sentido ou noutro. A corrupção, por isso, é uma tentação desde os inícios da imprensa.

Estamos ainda a pagar tributo pelos erros do século XX?

É o que parece. Desde os inícios do século passado, e olhando particularmente para o papel que teve a I Guerra, esse conflito funciona como a revelação do que está a ser urdido por trás. Torna mais fácil, ou mais praticável, a denúncia ou a exposição pública de lógicas que, noutro contexto, num tempo de paz, poderiam ser disfarçadas. Assim, essa quase indiferença, essa normalização… 

Porque é que Kraus elege como principal alvo a imprensa? 

Há um texto em que ele satiriza os meios jornalísticos, e há uma frase de uma personagem que diz: “Agora não posso dar atenção a esse acontecimento porque estou muito ocupado a escrever um editorial que é para não sair, e tem de ser já para amanhã.” E ele explica que uma forma do jornalista ganhar a vida sempre foi ameaçar que iria sair a notícia X, sendo pago para que a notícia não saia. Obviamente, isto continua a acontecer. É claro que o grande tema aqui, hoje potenciado pelas redes sociais, pelos comentários…

Parece-lhe que a internet contribuiu para degradar ainda mais o campo da atenção?

Ler esses comentários às notícias de jornal é mergulhar no abismo. Eu evito fazer isso, mas o que preocupa é que, se aquilo é de algum modo o reflexo do que está na alma do povo, então que raio de povo! É preciso, de facto, demitir este povo e eleger outro, como dizia Brecht. Claro que tudo isso é muito ajudado pela ideia do anonimato. Mas a substância, ou o cerne da questão, continua a ser o da relação irresponsável com a linguagem, não haver uma noção do peso da palavra.

E que papel deve ter o Estado, nomeadamente através do Ensino Público, no sentido de aplacar este fenómeno?

É por tudo isto que a Literatura e o ensino das Humanidades é mais importante do que nunca. É isso que justifica que não se desincentive estes cursos. E é uma das coisas que procuro fazer com os meus alunos, porque entendo que o ensino da Literatura passa justamente por ensinar como se lida com a palavra de forma responsável. Isto é: que responsabilidade acarreta a linguagem. E, hoje em dia, o facto é que essa noção de responsabilidade tem sido erodida por uma série de fatores, a começar pelo acesso fácil à esfera pública (… basta ter uma conta no Facebook), pela possibilidade de usar o anonimato, não ter de colher as repercussões por aquilo que se escreve. Isso vulnera todas as nossas relações.

E por que é que a crítica de Kraus continua a ser tão atual a este respeito?

Não é que eu ache que ele tinha poderes divinatórios… Isso nenhum escritor tem. Nem se trata de adivinhar o que aí vinha. Trata-se antes de definir um paradigma, e como, na verdade, continuamos a viver no mesmo paradigma, só que elevado a uma potência máxima, as armas ou os instrumentos de crítica que ele forjou – e o mais importante deles é a citação: recortar do contexto e fazer com que aquela frase que parecia muito inocente revele, afinal, toda a sua enormidade, se for colocada no contexto adequado para que isso aconteça, para que o efeito de revelação surja – mantêm a sua atualidade. Ele identificou o atual paradigma de uma forma que eu continuo a achar inultrapassável.

E o que podemos aprender com ele hoje?

O Canetti, que tem várias frases lapidares (tem aquela prosa aforística, que aprendeu com o Kraus, em que procura conduzir a frase para que cada uma seja uma unidade em si), e num dos seus textos a propósito de Kraus, quando pretende explicitar o que foi que aprendeu com ele, diz de Kraus que foi o mestre do espanto, ou o mestre da indignação. Diz que aquilo que a sua geração aprendeu com Kraus foi um ódio insanável contra a guerra. Portanto, o potencial da crítica antibelicista de Kraus é uma coisa de uma atualidade brutal. Por isso é que eu dizia, seja a guerra do Iraque, seja o Trump, seja o caraças, já estão lá, são personagens de “Os Últimos Dias da Humanidade” sem o serem. E que um autor consiga isso é qualquer coisa de extraordinário. 

Para terminarmos… Sei que uma das suas batalhas passa por impedir que as Humanidades venham a tornar-se um rincão dos estudos universitários. O que tem levado a esta perda de influência?

O que é grave é o quanto estes tendem atualmente para a irrelevância. E o mais preocupante nos quadros de financiamento europeu que se perspetivam atualmente é que, não só as Humanidades, as Ciências Sociais também, vão assumindo progressivamente um papel residual se não lutarmos firmemente contra isso.

Onde é que essa luta deve ser feita?

Tem de ser feita ao nível do Parlamento Europeu como noutros fóruns internacionais. Tem de haver vozes a defender uma conceção diferente das prioridades. Isto porque, sem o desenvolvimento do ensino das Humanidades, o que nós temos são analfabetos. Há bocado falava-se ali na reunião da FCT [a entrevista foi realizada depois de uma deslocação de Sousa Ribeiro a Lisboa para participar numa reunião sobre o quadro de financiamento para os próximos tempos] na necessidade de quem propõe um projeto ter de classificá-lo do ponto de vista de atingir objetivos de desenvolvimento sustentável… E eu estava a pensar o que é que alguém nos Estudos Literários pode advogar na defesa do seu projeto como contributo a esse nível? Bom, só estou a ver uma hipótese: qualquer projeto na área dos Estudos Literários contribui para a alfabetização do ser humano e não há desenvolvimento sustentável com analfabetos.

E as Humanidades têm tido um papel importante em contrariar isso?

Dito curto e grosso, o que se ensina nas Faculdades de Letras é a ler e a escrever. (Obviamente, não num sentido superficial da palavra.) Esse é o valor das Humanidades. O bem primeiro do ser humano é a linguagem, e tudo aquilo que contribua para o exercício, a aprendizagem e a prática de uma consciência crítica da linguagem – que é o cerne das Humanidades – é absolutamente indispensável para uma sociedade democrática. Ou, traduzido numa fórmula, ou até um slogan: sem Humanidades não há cidadania responsável. Portanto, se queremos cidadãos, pessoas capazes de exercer a cidadania, a reflexão das Humanidades é incontornável. Assim, só nos resta lutar.

E o que está a impedir essa tomada de posição?

As Humanidades cometeram muitas vezes o erro de se colocar numa posição defensiva. Ou até mesmo numa atitude passadista. Muitas vezes defendem o Património, defendem o passado. Não é isso que as Humanidades devem fazer. Devem colocar-se, sim, numa atitude ofensiva e dizer: Não, as Humanidades defendem o futuro. Não há futuro sem as Humanidades. Sem elas o que nos resta são os últimos dias da humanidade. Também isso está implícito no título do Kraus. E, no fundo, é o que há a dizer.