Pacheco Pereira. “Em Portugal, as questões do Maio de 68 só se tornam relevantes depois do PREC”

Os acontecimentos simbolizados pelo Maio de 68 significam sobretudo uma recusa de um tipo de vida 

O historiador não acredita que tenha havido uma traição a grande parte dos ideais que levaram uma geração à rua. Defende que em todo o mundo, e em Portugal com um certo atraso, as lutas de 1968 abriram caminho a um conjunto de causas feministas, ambientalistas, ligadas ao antirracismo e aos movimentos LGBT que até ali estavam escondidas e não tinham conseguido fazer ouvir a sua voz.

Há uma espécie de revolta generalizada da juventude em 1968?

Muito politizada, mais na Europa que nos EUA. Há uma ideia de que as pessoas estavam fartas daquele tipo de vida, uma geração que está insatisfeita com a vida que uma sociedade com uma relativa riqueza lhes dava. Isso é mais o sentimento que uma política. E como acontece com aquelas revoltas em que os estudantes têm um papel determinante, elas tendem a ser intelectuais e filosóficas. Não são corporativas e são sempre holísticas, pretendem sempre tratar o todo. É evidente que havia um sentimento de cansaço com a forma como funcionava a sociedade americana, que tinha a agravante da Guerra do Vietname, a francesa, que tinha tido a Guerra da Argélia, a alemã, em que a primeira geração que tinha nascido fora da experiência da guerra vivia num ambiente de grande hipocrisia política na medida em que ninguém assumia o passado nazi e tinha sido varrido para debaixo do tapete aquilo que era a responsabilidade coletiva dos alemães na experiência do nazismo. 

Não é discutível a ideia de existência de uma geração, como se houvesse um conjunto único de pessoas com as mesmas ideias num determinado grupo etário? Como provou a gigantesca manifestação gaullista em Paris, que de algum modo encerra o mês de maio de 68, há várias gerações a querer coisas opostas numa mesma suposta geração…

Há um evento forte. Quando eu falo de uma geração, falo de gente que é marcada, toda ela, por um evento forte. Como para Portugal foi o 25 de Abril, ou o nazismo, de que falávamos, na Alemanha. Quem os viveu fica sempre marcado por eles, independentemente da sua evolução.

A Primavera de Praga também pode ser colocada no mesmo conjunto de acontecimentos?

Pode. Há vários momentos de crise na história do comunismo. O primeiro, que teve importância sobretudo em alguns países, foi a repressão da revolta da Hungria em 1956. Esses acontecimentos tiveram muita importância em países como o Reino Unido, onde uma série de intelectuais, na sequência da entrada das tropas soviéticas, saíram do Partido Comunista e formaram a New Left Review, e geraram uma tradição de esquerda independente e radicalizada, ainda que de inspiração marxista, que em Portugal só apareceu muito mais tarde. No caso francês há um impacto de várias experiências. Nós não podemos perceber o Maio de 68 e os seus desenvolvimentos se ignorarmos a Revolução Chinesa, e a leitura ocidental que ela teve, e se ignorarmos a Revolução Cubana e a independência argelina e as lutas do Terceiro Mundo. E tudo isso criou um caldo de cultura política que também se manifesta em relação à invasão da Checoslováquia, combatida em muitos países pela mesma geração do Maio de 68.

Em França também houve essa reação em relação à revolta húngara?

Houve, mas não teve a dimensão daquilo que sucedeu no Reino Unido. Mas se reparar nas dissidências intelectuais nas organizações juvenis do PCF [na UEC], à volta das posições do Althusser, e o grupo que tinha feito o “Lire le Capital”, aquilo que depois veio a chamar-se genericamente os estruturalistas, essa geração mantém uma relação com o património inicial da Revolução Chinesa. Eu, nas coisas que tenho feito sobre este período, tenho feito uma distinção entre o maoismo propriamente dito, que no meu ponto vista só existe depois da Revolução Cultural, e a dissidência marxista-leninista inicial.

Em termos portugueses seria a distinção entre a FAP do Martins Rodrigues, que sai do PCP no início do conflito sino-soviético, e o aparecimento posterior do MRPP.

Exatamente. Os primeiros dirigentes que cortam com os partidos comunistas são antigos dirigentes e funcionários desses partidos. Se formos ver os escritos deles, a sua dissidência é sobretudo feita em termos de ortodoxia: criticavam a direção do Krutchov, porque teria abandonado o património do marxismo, principalmente em relação à ideia da universalidade da luta de classes, que se opunha, no seu entender, à política da coexistência pacífica. Deng Xiao Ping, a quem os soviéticos chamavam “o caniche de Mao”, vai àquelas últimas reuniões unitárias do movimento comunista internacional e deixa toda a gente espantada: faz uma intervenção ortodoxamente marxista-leninista e os outros dirigentes de partidos comunistas nunca tinham visto atacar a União Soviética a partir dessa posição. Aliás, quem tem razão do ponto de vista da ortodoxia marxista-leninista são, de facto, os chineses. Claro que, depois, as coisas evoluíram, a Revolução Cultural não é um fenómeno ortodoxo, está ligado à mobilização das massas num processo de luta de poder. A sua imagem no Ocidente é bem diferente mas, de facto, trata-se de um processo de luta de poder com muita violência. A interpretação ocidental que se fazia é que era a primeira revolução comunista existente de características não estalinistas.

Quando se reivindicava do estalinismo.

Exatamente. Dizia-se, por exemplo, que o livro de Liu Shaoqi [número dois do Partido Comunista Chinês que entrou em rutura com Mao, antes da Revolução Cultural] não fora proibido, mas tinha sido editado em muitos milhares de exemplares com uma faixa à volta a dizer “para criticar”. A ideia da mobilização das massas contra o quartel-general, esse tipo de linguagem foi muito apelativa para a geração de gente mais nova. Talvez, em Portugal, a organização mais ligada a este tipo de fenómenos tenha sido o MRPP. A sua linguagem não é diferente da “Cause du peuple”.

Mao-spontex?

Isso, enquanto organizações mais ortodoxas como o PC de P (ML) e a OCMLP se mantinham mais ligadas à herança de organizações como a FAP, do Francisco Martins Rodrigues. A influência deste novo tipo de maoismo é sobretudo em organizações como o MRPP e o Grito do Povo.

Também há um dado importante de rutura com o PCP e a sua história no MRPP, que embora se chame Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, assume logo no seu primeiro congresso que nunca tinha havido, para eles, um partido do proletariado em Portugal.

Que é uma posição de alguns grupos maoistas nos EUA. O que acontece, por exemplo, na Alemanha é que os grupos mais radicais, como o Baader-Meinhof [RAF – Fração do Exército Vermelho], ou até ativistas estudantis como o Rudi Vermelho eram muito influenciados pela luta de movimentos palestinianos, tendo a RAF preparação militar em campos palestinianos. Há uma absorção da linguagem marxista-leninista, mas não a organização de tipo comunista. Como aconteceu com o PRB –Brigadas Revolucionárias em Portugal; em Itália, com a Lotta Continua e o Potere Operaio; com o MIR, no Chile. Todos esse tipo de experiências têm em comum a recusa da sociedade como ela existia e a recusa simultânea dos partidos comunistas que se tinham, para essas pessoas, tornado os baluartes do conservadorismo e que tinham adotado uma teoria de partilha de poder com os EUA – a chamada coexistência pacífica.

Estas organizações de que fala têm como unificador o momento, espírito e influência de 68?

Não obrigatoriamente, porque as organizações marxistas-leninistas mais ortodoxas eram contra o Maio de 68. As que já existiam antes.

Até algumas trotskistas mais importantes, como os lambertistas, se opunham à luta dos estudantes.

Porque aquilo era uma coisa esquisita. Como, aliás, do ponto de vista ortodoxo, a Revolução Cultural era uma coisa esquisita porque não correspondia, do ponto de vista organizacional nem do ponto de vista político, aos cânones do leninismo, com uma estrutura vertical e hierarquizada dos partidos comunistas. E utilizava uma linguagem com metáforas que eram tidas como pequeno-burguesas. Mas os eventos de Maio de 68, ou com mais rigor de 67, 68, 69… porque, apesar de a influência francesa ter tido uma grande centralidade para Portugal, aquilo que aconteceu nesse período nos EUA tem uma importância mais vasta, embora esteja menos politizado. Apesar de ser verdade que apareceram também grupos como os Students for a Democratic Society (SDS) e os Weathermen [Weather Underground Organization], uma fração dos SDS que pretendia criar um partido revolucionário para derrubar o imperialismo e que promoveu ações violentas. Os Weathermen, que eram muito politizados, tiraram o nome de uma passagem de uma letra de uma canção de Bob Dylan, “Subterranean Homesick Blues” (1965): “You don’t need a weatherman to know which way the wind blows” [não precisas de um meteorologista para saber de que lado o vento sopra].

Não se pode dizer que movimentos como os Yippies (Youth International Party) e que eram contra a Guerra do Vietname eram politizados?

Na contestação contra a Guerra do Vietname havia movimentos de todos os tipos, até havia organizações que se propunham fazer levitar o Pentágono.

Coisa, aliás, que reivindicaram ter feito. [risos]

Exatamente, garantiram que subiu, embora não esteja propriamente documentado que isso tenha acontecido. Ainda existem partidos deste tipo, como o chamado Partido da Lei Natural, que acham que as sociedades se mudam pelo número de pessoas que praticam uma variante do ioga. 

Mas naquele momento há duas questões que agregam os contestatários dos EUA: a Guerra do Vietname e a discriminação racial que fará aparecer movimentos como os Black Panthers, depois do assassinato, em 1968, do pastor Martin Luther King. 

Nos EUA, isso é verdade. Mas a nível global do planeta temos de lhe somar, como disse, a Revolução Cultural chinesa, a independência da Argélia, os movimentos de libertação do Terceiro Mundo e a Revolução Cubana. Começou a parecer a muita gente que havia experiências revolucionárias que não seguiam o modelo leninista tradicional e que poderiam ser mais eficazes e, acima de tudo, pareciam mais modernas. A linguagem não era a mesma; a forma de vestir, também não. Havia símbolos icónicos que mostravam bem isso, como aquela fotografia tirada pelo Korda ao Che Guevara. Se formos a ver aquilo a que chamamos o adquirido do Maio de 68, que em Portugal chegou muito mais tarde, traduz-se no dar importância a lutas que até ali não tinham tido relevância. Há uma nova visão da psiquiatria, há uma nova forma de ver o problema das prisões, há um renovar do movimento feminista, o aparecimento com mais força do movimento LGBT. Houve em França e nos EUA…

A afirmação das novas causas identitárias.

Pode dizer-se isso; eu tenho alguma objeção em relação à utilização desse termo. A variabilidade das lutas e questões também é um adquirido do Maio de 68. Em Portugal, como há a ditadura e há um certo refluxo das lutas na fase final do marcelismo, com o incremento da repressão e a desilusão sobre a democratização do regime que isso significava, estas questões nunca foram muito relevantes. E, mesmo depois do 25 de Abril, só são relevantes depois do fim do PREC, porque até aí se joga sobretudo a questão do poder.

Há um momento simbólico dessa dificuldade de colocar questões como as do feminismo quando uma manifestação de mulheres é atacada por dezenas de homens no Parque Eduardo vii porque pensavam que iam queimar os sutiãs e despir-se.

Não só. Isso acontece também porque se julgava que elas não eram politicamente corretas, nenhuma das grandes organizações as defendia. Elas ficaram num limbo. No movimento estudantil e nos partidos políticos havia mesmo uma quase ausência de participação das mulheres e, sobretudo, uma total ausência das suas reivindicações. 

O que não diferia muito da situação em França no Maio de 68, em que a liderança era masculina, de tal forma que, no rescaldo disso, as ativistas do Vive La Revolution! se insurgiram contra o seu apagamento e resolveram criar uma organização em que só podiam entrar mulheres: o MLF (Movimento de Libertação das Mulheres).

A coisa muda a partir daí. Começou a aumentar a participação das mulheres nos movimentos e o tratamento das suas questões. Eu lembro-me, em 67, 68, de ter feito parte, quando andava em Direito, de um grupo que organizava uma série de colóquios sobre a situação da mulher que tiveram um enorme sucesso, até porque de alguma forma se estava a sair do refluxo que o movimento estudantil tinha tido, depois de 1965, devido à traição do Nuno Álvares Pereira [responsável do setor estudantil do PCP que delatou à PIDE o conjunto da organização e ativistas comunistas no movimento estudantil]. Começou-se a sair deste refluxo por volta de 67, o movimento já é parecido com o de 68, o que mostra que não há uma influência, mas há características que são comuns do ponto de vista da contestação aos quadros tradicionais de vida. Uma das grandes discussões que houve é se as questões de sexualidade deviam ser tratadas quando se falava das questões das mulheres. E o conflito que havia com os setores da oposição mais tradicional – não era só o PC –, que queriam essencialmente tratar as questões das mulheres do ponto de vista social, e havia quem queria tratar já questões de género e da sexualidade. Mas, verdadeiramente, antes do 25 de Abril, o momento em que há uma certa abertura política e cultural é aquele ciclo, que vamos agora comemorar no início de maio, da popologia. A popologia foi uma realização associativa de receção aos caloiros, que era uma coisa importante das associações de estudantes para mobilizar os estudantes que entravam. 

A popologia data de 68? 

O ciclo de sessões “Popologia – mitologias do mundo contemporâneo”, realizado em março de 1968, foi o primeiro a abrir as atividades culturais associativas às formas, meios e realizações da contracultura dos anos 60 e à nova estética da cultura pop. O mundo cultural que chegava aos estudantes associativos e a um público juvenil politizado era predominantemente anglo-saxónico e associado a novas expressões da cultura juvenil, como a música pop, a banda desenhada e o cinema de vanguarda. Este ciclo ocorreu antes do Maio de 68 e revela o papel da recusa das referências culturais neorrealistas – dominantes na oposição, onde o PCP era hegemónico no plano cultural – na formação da geração ativista dos anos 70. A radicalização estética precede a radicalização política, mas ambas fazem parte de um mesmo movimento cultural. Nesses ciclos participaram o Manuel Castilho, o Luís Pinheiro de Almeida, o Alexandre Oliveira. Começou uma mudança do paradigma francês para o paradigma anglo-saxónico. Ela faz-se na música, mas também se faz, como em França, através da banda desenhada, o policial e o cinema. Em Portugal, isso é feito em ambiente polémico. Lembro-me de em Direito haver enormes discussões sobre o filme de Godard “Pierrot le Fou” [”Pedro o Louco”], e discussões se era legítimo ou não patear numa organização associativa. Há troca de opiniões e abaixo-assinados, onde se podem ver grande parte daqueles que se tornariam intelectuais relevantes, a discutirem se era legítimo ou não, numa instituição democrática, como era o cineclube universitário, patear quando um filme era mau. Neste caso, era um filme polaco, com a implicação que isso tinha. Eu fui dos que patearam. A tese da oposição tradicional, sobretudo o PCP, era que não se pateava numa organização estudantil democrática, mas ia-se à assembleia-geral protestar. 

É interessante que a organização mais próxima da lógica dos grupos maoistas do Maio de 68, o MRPP, seja aquela que pregava um maior ascetismo sexual.

É verdade, mas já havia nos liceus uma certa contracorrente a esse tipo de conceções. Alguns dos primeiros panfletos muito soixante-huitards aparecem editados, quase espontaneamente, por estudantes de liceus. 

Mas mais ligados a ideias anarquistas do que maoistas.

E isso é muito significativo porque tinha havido um quase desaparecimento em Portugal das correntes anarquistas. É irónico que a última reunião do conselho confederal da CGT – é preciso dizer que os anarquistas são muito conscienciosos, de maneira que os que tinham o mandato desde os anos 20 e 30 se reuniram regularmente, em casa deles –, em que assinam a sua dissolução, é em 1968. No preciso momento que, a nível internacional, começa de novo a haver uma influência de correntes como a anarquista, trotskista e outras no movimento estudantil, em que as organizações clandestinas eram predominantemente comunistas e maoistas. 

Um dos adquiridos do Maio de 68 é a renovação do movimento feminista. Cinquenta anos depois não se assiste a uma nova renovação em que há uma rotação de eixo: em vez da liberdade sexual, movimentos que vão na esteira do #MeToo defendem que todas as relações sexuais entre homens e mulheres estão banhadas na ilegitimidade de um desequilíbrio de poder?

E que pode levar a um novo puritanismo anti-homem? Em todas as coisas, como, aliás, em algumas causas identitárias, pode ver-se o racismo ao contrário – são fenómenos mais presentes nos últimos dez anos. Quando a gente analisa a influência do Maio de 68 nos últimos 40 anos, percebe-se a evolução. Eu acho que uma das críticas que se podem fazer a alguns movimentos feministas é o menosprezo que têm pela situação social das mulheres, um discurso muito assente nas questões de género e de liberdade sexual, com um menosprezo, de facto, pelas questões sociais. Um exemplo: nunca li um verdadeiro artigo a chamar atenção para que uma das primeiras consequências do desemprego feminino durante a crise, sobretudo na zona têxtil – em que as mulheres ficaram de-sempregadas primeiro – foi o enorme retrocesso de deixar de ser operária com salário e passar a ser dona de casa. Isto é invisível. Isso também tem que ver com a condição social dos jornalistas, que vivem no mundo urbano e fechado, com pouca experiência do mundo de fora.

Embora estejam cada vez mais precarizados.

Exatamente, mas só vão ao sindicato quando precisam de um advogado, apesar de andarem anos a menosprezar as greves e a atividade sindical. Isso é uma característica deste processo, que despolitizou muito essas pessoas.

É muito cedo para fazer a interpretação e análise de 1968?

Eu acho que, se se utilizarem instrumentos de análise históricos sérios, é possível fazer um debate sério das questões suscitadas pelo Maio de 68. Até pelo trabalho que faço, não tenho muito essa ideia de que é preciso esperar um tempo infindável para estudar os acontecimentos.