De início, é ignorar o que pode acontecer entre Beatriz Batarda e um rebuçado para isto parecer só um filme. Filme de época, vestido de época, Sara na floresta, e chuva, lágrimas, ação. Ou chuva, ação e lágrimas, depois de se perder a conta aos takes a ordem já não importa. Importava que Sara chorasse. Mas Sara não chora, Morais, o realizador, bem vê que é só chuva. Neste ponto, não há de ser possível – nem para Sara, nem para nós, espectadores, à chuva e ao frio, na floresta – ficar para sempre, e precipita-se a decisão, para o momento em que isto deixa de ser um filme.
“Não há nem mais uma lágrima, não há tragédia, não há mamas, não há o caralho.” Eis Sara, que não chora, mas resolve. Sara, atriz desde os 12 anos, atriz de cinema e de teatro, que vai fazer uma novela. “Sara”, a série com que Marco Martins se estreia na televisão ao lado de Bruno Nogueira, de quem partiu a ideia para o argumento, escrito pelos dois ainda com Ricardo Adolfo, com quem o realizador tinha já trabalhado em “São Jorge” (2016).
E Sara é Beatriz Batarda, e só podia, como Marco Martins confirma. Mesmo que não fosse a pensar já nela aquela sinopse que Bruno Nogueira lhe apresentou para o que viria a transformar-se nesta série. “A Beatriz é uma atriz extraordinária, com vários registos possíveis dentro dela. Normalmente pedem-lhe, um registo mais trágico, até eu próprio”, admite o realizador. “Mas, de trabalhar com ela há muitos anos, sabia que podia trabalhar noutros, e esta ideia agradava-me muito por essa possibilidade de levar a Beatriz para um registo de humor que, tal como eu, ela nunca tinha feito.”
O princípio de “Sara” foi então Marco Martins à procura de um terreno comum com Bruno Nogueira, o realizador que no cinema nos habituou ao drama ou à tragédia social, no caso de “São Jorge”, à procura do seu lugar na comédia, que foi descobrir ao este “humor muito negro”, equilibrado nas doses certas com o ridículo característico de Bruno Nogueira (criador e argumentista de “O Último a Sair” e, em conjunto com Tiago Guedes e Gonçalo Waddington, “Odisseia”). E, avisa Marco Martins, o que veremos nestes dois primeiros dos oito episódios que hão de corresponder a um primeiro ato de “Sara”, é pouco para o que virá a seguir. “Tanto eu como a Beatriz nunca tivemos medo do ridículo ou da exposição ao ridículo, porque essa exposição é que era interessante. Como o risco da crítica.”
Mais do que a série possível Mais do que crítica, sátira, será esta “Sara”. Ao mundo da ficção televisiva – à qual Marco Martins foi descobrir alguns dos atores que ajudam a compor o seu elenco do costume – e ao do cinema, ao qual não hão de faltar referências. “É uma sátira ao meio, não só à televisão. Aí acaba por ser mais fácil porque na televisão trabalha-se, de facto, com condições piores, e porque há um lado muito industrial. Eles próprios apelidam aquilo [a ficção televisiva] de produto. Mas não deixamos de fazer humor com o cinema, também nos rimos de nós próprios.”
Entre masturbações intelectuais e hastags para patrocínios de pestanas falsas em selfies, daqui nenhum deles sairá incólume, como não sairão as personagens – e voltamos a Beatriz Batarda e à cena inicial do rebuçado, a que se hão de juntar outras. Sara a depilar-se à janela, Sara em movimentos de aeróbica em frente à TV, e, só numa série, só nestes dois episódios, a não ser produto da imaginação dos argumentistas, Sara tanto daria para personagem de “Atores”, o espetáculo que no início do ano Marco Martins estreou no São Luiz, em Lisboa, como para personagem de “Girls”, de Lena Dunham.
“Atravessamos um período muito particular no nosso meio, para mim também, no sentido em que nunca sabemos o que vai ser o próximo ano: como é que vão ser os concursos de cinema, os concursos de teatro. Também para os atores, esta possibilidade de fazerem uma vida só do teatro ou só do cinema, que noutros países é possível, em Portugal não existe, por toda esta precariedade.” Período em que por outro lado a forte aposta da RTP na ficção televisiva fez Marco Martins considerar a hipótese que nunca tinha equacionado. “Não é um meio com que tivesse desejo de trabalhar, principalmente porque em Portugal as coisas são sempre muito pobres em termos de timings, de tempos de produção”, admite o realizador, do qual se conhecem os longos processos, mesmo para o tempo do cinema. Não espanta por isso que também esta série tenha tido outro tempo.
Daí que “Sara” venha apenas com oito episódios, e que mesmo assim tenha contado com um “grande investimento” da Ministério dos Filmes, a produtora de Marco Martins, além do habitual financiamento por parte da estação pública, que a estreia na RTP2 em outubro, numa alteração de estratégia que o realizador vê como “preocupante” – a série foi inicialmente encomendada pela RTP1, canal que a coproduziu e para o qual tinha sido pensada. “Se uma série como a ‘Sara’, que gerou toda a expectativa e entusiasmo, não se enquadra na programação da RTP1, que foi quem a encomendou em primeiro lugar, então algo de muito errado se passa em termos de serviço público”, diz o realizador-argumentista, para acrescentar que tem “pena que uma série feita com a preocupação de chegar a várias camadas de público não seja vista pelo um maior número de pessoas possível”, no canal de maior audiência, a RTP1.
Do mundo do cinema, a reação oposta, com a decisão dos programadores do IndieLisboa de exibirem os dois primeiros episódios numa sessão especial (hoje, às 21h30, no Grande Auditório da Culturgest), há dias esgotada, o que levou o festival a anunciar uma sessão extra, para domingo. Para Marco Martins não faz sentido já falar em linguagens de cinema ou de televisão, cada vez mais cruzadas. Mas os dois primeiros episódios de “Sara”, primeiro ato para o segundo e o terceiro que virão depois, são cinema. E, basta querermos hoje à noite, também um filme.