Estava à espera desta crise no mercado de arrendamento?
O que está a acontecer é aquilo que já tínhamos previsto que iria acontecer há muitos anos. Todas as leis que foram saindo ao longo destes anos diziam que era para dinamizar o mercado de arrendamento, mas isso nunca aconteceu. O mercado nunca dinamizou nem pelas leis que foram saindo em 1900 e qualquer coisa, nem em 2006, nem em 2012, nem pelas alterações que foram feitas em 2014 e em 2017. Porque é que nunca resolveu o problema? Porque as questões principais que se colocam aos inquilinos são sempre de difícil resolução e também porque nunca existiu uma lei de bases da habitação. Só agora é que foi lançada, pela primeira vez, e pode vir, de facto, a resolver o problema que desde o 25 de abril até agora nunca teve uma resolução. Como não há nenhuma lei de bases, o Estado não se assume como responsável pela habitação porque é o Estado que tem de ser responsável por garantir a habitação para as famílias portuguesas, não são os proprietários que devem fazer isso. O que diz a Constituição é que todas as pessoas têm direito a uma habitação condigna de acordo com os seus rendimentos, mas nada disto tem acontecido. Até 1990, como as rendas estavam mais ou menos congeladas, essa situação até se podia verificar, mas depois com a liberalização completa, com o Novo Regime do Arrendamento Urbano (RAU), os proprietários passaram a poder arrendar ao preço que quiserem e bem entenderem, sem terem qualquer tipo de restrições.
E há sempre alguém que paga esses valores elevados…
Sim. Mas não são muitas pessoas. Todos os alertas que fizemos em relação à lei de 2012 – que seria a lei dos despejos – vieram a confirmar-se, passado o período de transição que terminou agora. E após esse período de transição veio a confirmar-se de facto que os despejos são hoje uma evidência quer para os arrendamentos anteriores a 1990 quer para os arrendamentos mais recentes. Hoje qualquer proprietário não renova o contrato de arrendamento, chega ao fim do contrato e, ou porque têm pessoas que dão um valor superior de renda ou porque consideram que o contrato não tem qualquer razão de existir rescindem-no e põem as pessoas na rua. Existe muita precariedade no emprego, mas agora também existe uma elevada precariedade na habitação. Hoje as famílias não têm condições financeiras para pagarem as rendas que são pedidas. Por exemplo, um T1 na zona da Baixa não custa menos de 1100 euros ou mais. Isto quer dizer que poucos têm condições para pagarem esses valores, principalmente se consideramos que uns milhares muito largos de famílias que trabalham recebem apenas o salário mínimo e com esses ordenados não podem pagar 1100 euros por mês por uma casa. O valor que recebem não chega para pagar a renda quanto mais o resto. Logo aqui verifica-se que existe uma situação completamente irregular e que o Estado até agora não resolveu. Vários governos passaram desde o 25 de abril até hoje e nenhum deles conseguiu cumprir esta obrigação de garantir às famílias portuguesas a habitação. Vamos ver se agora com a lei de bases da habitação se vai de facto resolver o problema. É difícil e atualmente temos milhares de famílias que segundo o governo rondam as 26 mil a nível nacional, que não têm casa, mesmo assim, acho que são muito mais do que isso porque o inquérito foi feito num determinado parâmetro e não foi alargado a necessidades mais gerais. Há portanto famílias que não foram consideradas e, como tal, também estão a precisar de casa e não têm condições para arrendar aos preços atuais. Fala-se agora em rendas acessíveis e, em Lisboa, segundo o presidente da câmara, é possível ter sete mil fogos nestas condições, mas isso só vai acontecer daqui a quatro ou cinco anos. Os primeiros 136 fogos vão começar agora a ser construídos, mas só daqui a um ano e meio ou dois anos é que estarão prontos. A nível nacional a situação é idêntica ou ainda pior porque não há condições para colocar as casas necessárias no mercado de arrendamento. O governo veio dizer que é possível requisitar casas ao setor privado, às santas casas das misericórdias e outras instituições que tenham casas vagas, não vejo aqui nenhuma ilegalidade ou uma inconstitucionalidade. As casas estão devolutas e, segundo os censos de 2011, só em Lisboa havia 50 mil casas nestas condições e no país havia mais de 750 mil, seria perfeitamente possível colocá-las no arrendamento.
Mas os proprietários falam em inconstitucionalidade…
Falam nisso, mas esquecem-se que o artigo que invocam é o 102 que também diz que, em caso de necessidade, o Estado pode requerer essas casas para as colocar no mercado de arrendamento. E é aí que se coloca a questão da utilidade pública. Há aqui duas soluções: ou é esta ou outra que, do meu ponto de vista, é mais efetiva e que é utilizada em alguns países da Europa, que se foca nos impostos. Hoje em dia, o IMI já triplica quando a casa está degradada, mas depois o valor não é alterado ao longo dos anos. Ou seja, continua a ser aplicada a taxa de IMI a triplicar toda a vida se for necessário e os proprietários preferem ter as casas assim. É neste campo que tenho uma posição diferente do governo e acredito que daria melhores resultados: deveria aumentar todos os anos o IMI, de tal maneira que, ao fim de cinco ou seis anos, os proprietários preferiam entregar o prédio ao Estado para que ele resolvesse o problema. Os impostos seriam de tal forma elevados que obrigaria os proprietários a colocarem os imóveis no mercado de arrendamento se quisessem manter a propriedade. Não estou a negar o direito à propriedade, até pelo contrário, o direito à propriedade é um direito legítimo, mas têm é de pôr essa propriedade ao serviço da sociedade. Não nos podemos esquecer que o investimento no imobiliário apresenta algum risco, mas tem um risco muito menor face a outras alternativas. Por isso, aconselho todos aqueles que têm algumas economias disponíveis a comprarem habitação e a colocarem esses imóveis no mercado de arrendamento, mas a um preço acessível. Um preço acessível é 5% do valor patrimonial. Por exemplo, para uma casa cujo valor patrimonial seja de 100 mil euros, 5% do valor patrimonial daria cinco mil euros ao final do ano, o que daria origem a uma renda mensal de 400 e poucos euros. 5% é aquilo que os bancos não dão se depositar lá as suas poupanças, daí defender que, a habitação é um bom negócio para quem tem dinheiro.
Mas depois é quase impossível encontrar um imóvel por 100 mil euros…
Isso acontece em Lisboa. Vi agora no Algarve um T1, em Portimão, na zona da praia da Rocha por 85 mil euros. Tinha áreas maiores com 60 metros quadrados quando, em Lisboa, é muito difícil encontrar um T1 com mais de 50 metros quadrados. É um valor completamente aceitável. Por exemplo, na Baixa é impossível encontrar um imóvel por menos de 500 mil euros e há alguns que até atingem um milhão de euros ou mais. Mas indo para as zonas mais periféricas da cidade, como, Benfica, Ajuda, Belém, Marvila, Lumiar, etc., ainda se consegue comprar um T1 novo por 150 ou 160 mil euros porque se forem usados até se compram por valores mais baixos. E para evitar problemas aos proprietários, nomeadamente devido à falta de pagamento das rendas por incumprimento, propusemos ao governo que seja feito um seguro de habitação. Trata-se de uma espécie de um seguro de renda e no caso do proprietário vier a ter problemas com o inquilino poderá recorre a esse seguro, para que possa receber as rendas que eventualmente estiverem em atraso. Por outro lado, propusemos um seguro multirriscos para o inquilino no caso de este também ter problemas com o imóvel arrendado.
Mas defende que o seguro de renda deveria ser obrigatório?
Sim, para ser viável tem de ser obrigatório. E com este seguro o proprietário deixa de poder exigir o que exige que são cauções muito elevadas. Neste momento, já há quem esteja a pedir 12 meses de rendas, o que é impossível para a maior parte das famílias ou então pedem fiador e ninguém quer ser fiador de ninguém. Por isso, para evitar este tipo de situações e para garantir o pagamento da renda defendemos que o Estado obrigue a contratação deste seguro. Além disso, só sendo obrigatório é possível encontrar valores mais baixos que depois podem ser diluídos ao valor da renda.
Mas já alguma vez tinha visto o mercado desta forma ou é inédito?
O mercado da forma como está é uma situação inédita, mesmo se considerarmos que, após o 25 de abril, também havia falta de casas. Segundo os censos de 2011, há 750 mil casas devolutas, quando foi o 25 de abril havia falta de 700 ou 750 mil casas – e como não tinham casa, as pessoas viviam em barracas. Entretanto, há uns anos, o governo avançou com um Programa Especial de Realojamento e acabou com as barracas. Ainda podem existir algumas, mas a nível nacional praticamente não existem. Se isso foi possível também será exequível resolver o problema que existe atualmente. Mas só o será se for feita a revogação da lei Cristas, caso contrário vai continuar a existir este processo de despejos e, na maior parte dos casos, estes despejos só acontecem porque o proprietário não quer renovar o contrato por achar que terminou o prazo de validade. Mas se não revalidam os contratos, as pessoas vão para a rua e não encontram alternativas. Por isso, até que todas as propostas que estão a ser discutidas sejam aprovadas, deve-se suspender a lei para que não continuem a ocorrer estes despejos. Estamos a assistir a um descalabro em matéria de despejos.
Mesmo para quem tenha feito um contrato há um ou dois anos?
Há muitas pessoas a dirigirem-se à associação a dizer que o senhorio entregou uma carta e apesar do contrato terminar no final de outubro ou novembro, por exemplo, já estão a ser informados que o contrato vai ser rescindido e, ao abrigo da atual lei, isto é legal. Agora até onde é que do ponto de vista social o governo permite que esta situação se verifique? Para onde é que as pessoas vão viver?
Até que sejam aprovadas medidas concretas não há solução para o caso?
Não há solução. Até aqui a solução encontrada pelos proprietários é o despejo. Mas as pessoas não podem viver na rua. Uma pessoa que vive do rendimento do seu trabalho e quer viver numa casa, mas não tem dinheiro para a pagar, o que faz? O que se está a verificar agora é os filhos voltarem para casa dos pais e os pais juntarem três ou quatro filhos numa casa que, muitas vezes, não tem condições para isso. É completamente impossível viver assim e isto não pode continuar. O governo tem de tomar medidas no sentido de suspender a aplicação da lei. A partir do momento que o fizer, os proprietários não podem rescindir o contrato de arrendamento nem podem alterar o valor da renda. Como também pessoas com mais de 65 anos ou com mais de 60% de incapacidade não podem ser despejadas. É claro que o proprietário pode atualizar o valor da renda, mas não é atualizar indiscriminadamente. O que propomos é que a atualização da renda seja feita até 5% do valor patrimonial. E se isso acontecer, o inquilino tem de encontrar soluções para pagar, mas se não tiver dinheiro, o Estado que é responsável pelas pessoas tem de atribuir um subsídio para apoiar a renda. Mas não é um subsídio para apoiar uma renda especulativa. O que estava previsto na lei e que este governo anulou é que considerava que o inquilino pagava o valor que podia pagar e a diferença entre aquilo que podia e a renda atualizada era pago pelo Estado. Sabe o que isto dava? Muitas dezenas, talvez centenas de milhões no final do ano para pagar isto tudo. E estamos a falar de 735 mil contratos de arredamento a nível nacional, onde uma parte significativa das pessoas não consegue pagar rendas de 500, 800 ou mil euros. A maioria das pessoas não consegue pagar uma renda que vá além dos 400 euros. É claro que há muitas pessoas que estão a sair de Lisboa e estão a ir para a periferia: para a Amadora, para Queluz ou Barreiro. Já não digo Almada porque também já tem valores muito elevados.
Depois assiste-se a um efeito bola de neve…
Claro. Se na periferia começam a ver que existem mais pedidos também aumentam os valores. Neste momento, as rendas em Almada já são de 500 ou 600 euros quando há uns anos era de 250 ou 300 euros, o que eram valores aceitáveis, mesmo contando com os custos de vir diariamente para Lisboa.
Disse recentemente que há cem mil famílias em risco de ver a renda triplicar…
Falei nisso, mas já retifiquei os valores. Cem mil são aqueles que consideramos que têm contratos anteriores a 1990, mas como o total de arrendamentos anda nos 730 mil e o número de contratos de renda livre anda à volta dos 500 mil então seguramente estarão cerca de 600 mil famílias em risco de perder a habitação.
Um valor muito elevado…
Quando falei em 100 mil estava apenas a ter em conta os contratos anteriores a 1990 e, de acordo com os censos de 2011, havia 255 mil nessa situação e 500 mil na tal renda livre. Mas como muitos dos que tinham contratos anteriores a 1990 tinham idades avançadas já terão morrido. Por isso, acredito que agora não serão mais de cem mil nessa situação. A este número é preciso somar os tais 500 mil que estão no contrato livre e que podem ir para a rua a qualquer momento se o proprietário assim o entender. Para evitar esta situação, propomos que sejam exigidas determinadas condições para que os despejos sejam feitos: o proprietário precisar da casa para ele ou para os seus filhos. E é evidente que nem todos os proprietários precisam de todas as suas casas para eles ou para os seus filhos. Eles querem as casas neste momento para as transformar em alojamento local. No caso de Lisboa, o alojamento local está a ser uma praga. Há prédios em que os inquilinos estão a ser despejados em troca de uma indemnização de 20 ou 30 mil euros. Os proprietários incentivam-nos a ir para a terra – isto é um desenraizar de pessoas que viviam cá e não podem ser despejadas de um dia para o outro. E não estou a falar apenas de Alfama, acontece em outras zonas, como em Alcântara. Admito que havia situações em que as pessoas estavam na província e mantinham cá as suas casas para virem ao médico ou para passarem umas semanas em Lisboa com rendas baixas. Mas isso hoje já não acontece, as rendas só não foram atualizadas se os proprietários não quiseram porque a partir de 2012 todos puderam fazer isso. Além disso, os proprietários vêm muitas vezes dizer que as rendas estiveram muito tempo congeladas. De facto estiveram, mas em 1985 a lei determinou que os proprietários podiam atualizar as rendas em função do valor patrimonial da habitação. Muitos não fizeram, admito que alguns por não saberem, mas houve muitos que o fizeram e passaram de rendas muito baixas para o preço de mercado da altura.
Como vê a questão do arrendamento vitalício?
O arrendamento não é vitalício porque enquanto não houver limitações do valor da renda, o proprietário pode a partir de determinada altura pedir o que bem entender. O que o contrato diz é que este tem de ser renovado ano a ano e o que sugerimos é que além de ser atualizado consoante a taxa de inflação, a este valor deve ser acrescido 0,5% para valorizar um pouco o valor da renda – mas isso no caso de haver limitações. Se continuar a existir renda livre então posso dizer no final do contrato ao meu inquilino que quero duplicar ou triplicar. Se não tem dinheiro não paga e vai para a rua. Então é arrendamento vitalício? Os proprietários dizem muitas vezes que não são a Santa Casa. Não são, mas a habitação tem um caráter social muito importante. Quando investem em habitação estão a investir num projeto com características sociais e, sendo assim, tem de ter alguns limites e tem de se traduzir em alguns direitos para os inquilinos.
Há pouco falou na necessidade do governo em revogar a lei. Acha que o executivo tem sensibilidade para isso?
A ideia que tenho é que não está interessado. Sei que há alguns deputados querem revogar a lei, mas também sei que alguns deputados socialistas não querem que isso aconteça. Estão de acordo em fazer pequenas alterações mas não resolve o problema.
A lei de bases apresentou uma série de incentivos fiscais. Concorda?
Foi o que também propusemos ao governo. Considero que devem ser dados incentivos fiscais aos proprietários, mas não estou de acordo com a redução do IRS de 28% para 14%. Deveria baixar, mas não para rendas especulativas. Um proprietário que tem um imóvel com uma renda de 1500 ou 2500 euros quando deveria ser de 500 ou 600 euros não deve ser beneficiado do ponto de vista fiscal. Até pelo contrário. Já quem aplica as rendas acessíveis deve ser beneficiado, aliás o governo já disse que, nestes casos, vai isentar os proprietários.
Mas ainda se falou esta semana que no programa de rendas acessíveis um T2 em Lisboa pode ultrapassar os mil euros…
Não estou nada de acordo, isso não é acessível. Não sei como está a ser feito o cálculo, quando falámos com a secretária de Estado ela disse-nos que seria 20% abaixo do valor do mercado. O problema é que não há valor de mercado porque uma renda na Baixa pode ir dos 1200 aos 1500 euros, mas se formos para Benfica, Ajuda, Belém, Marvila, Lumiar já pode baixar para 800 ou 900 euros. A indicação que a secretária de Estado me deu é que pediu um estudo ao INE sobre a mediana dos preços de venda em Lisboa e que este disse que era de 9,62 euros por metro quadrado. Então se calcular 20% abaixo desse valor não pode atingir os valores que se falaram. Se for uma casa que tenha 50 metros quadrados dá uma renda mensal de 400 e tal euros, para uma casa com 100 metros quadrados estamos a falar de 900 e tal euros, mas se a esse valor baixarmos 20% dá 600 e tal euros. Neste caso, já estamos a falar de valores aceitáveis. Se o governo confirmar os tais 1100 euros então é porque não está a perceber nada disto e se está a pensar assim está a pensar mal. O governo sabe bem quais são os rendimentos das famílias portuguesas. Há 600 ou 700 mil famílias que recebem o salário mínimo e com isso nem sequer dá para pagar uma renda de 400 ou 500 euros. A classe média que sofreu durante o período da troika uma redução dos seus rendimentos como consegue pagar rendas de 1100 euros em Lisboa ou 900 euros no Porto? Se está a pensar nesses valores está a dar um tiro no pé e, mais do que isso, está a dizer que vai resolver o problema e depois não resolve nada.
A questão da habitação está a movimentar todos os partidos políticos…
Assunção Cristas fala agora numa redução do IRS, mas fez exatamente o contrário. Ela beneficiou apenas os proprietários, retirou todos os direitos aos inquilinos. Agora vem dizer que os terrenos da Feira Popular deviam ser destinados à habitação, mas há uns meses afirmou que podiam ser praticadas ali rendas de 1500 euros. Mas quem é que pode pagar isso? Só quem tem rendimentos acima dos três mil euros. Agora diz que era para famílias numerosas, mas tenho dúvidas que uma família com três ou quatro filhos possa pagar uma renda de 1500 euros. É um disparate, não conhece a sociedade portuguesa.