Este aviso – «Não te deixes levar pelo rebanho: despista o pastor, age com engenho!» – é assinado pelo Velho do Restelo, assinatura de diversas inscrições em vários locais de Lisboa.
Escrito de forma a rimar, este conselho exorta-nos a não seguir o «rebanho», tal como já outro grafito apelava a que não fôssemos «ovelha», e sugere que distraiamos o pastor, para o despistar, e conseguirmos escapar do grupo ordeiro e ordenado em que nos encontramos, mas adverte para a necessidade de o fazermos com engenho, caso contrário, não conseguiremos enganar o pastor ou o big brother que nos controla, domestica e obriga a sermos meros «sobreviventes».
Realmente, se observarmos o que se passa à nossa volta e o que acontece connosco, verificamos que, efetivamente, muitas vezes, o nosso comportamento é o de elementos de um vasto grupo – seguimos ordeiramente em fila, nos carros, para o trabalho, parando uns atrás dos outros, obedecendo aos «pastores» semáforos; seguimos ordeiramente a pé, detendo-nos nas paragens, em fila ordenada, aguardando a passagem do autocarro e, quando este chega, entramos e acomodamo-nos num canto, aguardando pacientemente a nossa vez de sair; caminhamos para o trabalho, onde cumprimos as nossas funções laborais, com maior ou menor alegria; voltamos quando nos dizem que é altura de o fazermos; comemos comida preferencialmente saudável para nos mantermos sãos e assim podermos poupar ao Estado despesas com saúde e, simultaneamente, mantermo-nos aptos para o trabalho; vamos para a praia quando chega o verão; abrimos o chapéu de chuva quando chove… Vamos, assim, fazendo o mesmo que todos os outros, diariamente, procurando ser bons cidadãos e boas pessoas, porque, como diz Drummond de Andrade: «Chegou um tempo em que a vida é uma ordem» e nada mais que isso.
Mesmo quando procuramos pensar ou sonhar com assuntos diferentes, acabamos por perceber que, como na canção de Sérgio Godinho: «guardamos os segredos dos locais que no fundo são iguais em todos nós». Apercebemo-nos, assim, de que nem mesmo os sonhos de sermos felizes e livres nos diferenciam muito do resto do «rebanho».
Ao tentarmos ser diferentes, acabamos também por carregar o peso que pagamos por querermos fazer algo diferente. Tal como conta Afonso Cruz, em crónica no Jornal de Letras: «Uma vez, no pantanal, (…) Contaram-me um episódio de um búfalo que teve a sorte de derrotar uma onça, mas ficou com ela presa nos cornos. A sua vitória era também a sua desgraça. Arrastava-se com o cadáver pendurado e acabou por definhar e morrer porque tinha dificuldade em deslocar-se e alimentar-se. A natureza parece estar cheia de búfalos destes, que levam cadáveres pendurados nos cornos, búfalos que por vezes morrem e outras vingam, dependendo da quantidade de peso inútil que carregam».
É exatamente este peso inútil que nos impede de sermos diferentes, de pensarmos pela nossa própria cabeça e regermos a vida da forma como queremos, e não apenas como podemos. É, pelo contrário, a ausência de pesos inúteis (mesmo que acreditemos, com Álvaro de Campos, que «É inútil tudo»), a ausência de amarras que nos prendem ao passado, ou nos impedem de prosseguir para o futuro o que nos permite agir «com engenho» e sermos livres. E só sendo livres é que podemos ser únicos. Na realidade, ser único é o que distingue cada um de nós, o que nos diferencia uns dos outros.
Sentindo-nos completos ou vazios, somos, no fundo, únicos. E, na realidade, o vazio acaba por ocupar muito espaço…
Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services