“O Festival de Cannes quebrou o feitiço. ‘O Homem Que Matou Dom Quixote’ entra na história do Cinema”, anunciava no Twitter a distribuidora francesa, a Océan Films, depois de ter sido conhecida a aguardada decisão sobre a providência cautelar interposta pelo produtor português Paulo Branco para impedir a estreia mundial do já conhecido como “maldito” filme de Terry Gilliam. “O Homem Que Matou Dom Quixote”, que o ex-Monty Python tentou sem sucesso pôr de pé por quase 20 anos, será mesmo, a 19 de maio, o filme de encerramento do 71.o Festival de Cinema de Cannes.
Apesar da autorização para que o filme seja exibido em Cannes, o tribunal de Paris terá obrigado (a decisão oficial ainda não foi comunicada por escrito) o festival a emitir uma nota de esclarecimento no início da sessão, explicando que a autorização concedida pelo juiz diz respeito apenas à exibição em Cannes, e não anula o resultado dos vários processos em curso nos tribunais franceses e do Reino Unido, em que Paulo Branco reclama os direitos sobre o argumento de “O Homem Que Matou Dom Quixote”. Segundo a “Variety”, o realizador, Terry Gilliam, a Star Invest Films France e a Kinology, coprodutora francesa do filme, terão de compensar Paulo Branco pelas despesas judiciais com o processo – decisão que o produtor português não demorou a descrever como “inteligente” à imprensa internacional, garantindo que o filme continua sem condições para ser explorado comercialmente.
Paulo Branco foi entretanto mais longe e, entre notícias citando fontes anónimas que dão conta de que a Amazon já não distribuirá o filme nos Estados Unidos e o anúncio da decisão de que processará o festival para que seja responsabilizado pelos eventuais danos que sofrer com a exibição do filme, ao i garantiu que a reação da distribuidora francesa à decisão de ontem não é mais do que “fogo-de-artifício”. “O filme não vai estrear [comercialmente] em França, pode ter a certeza.”
Não é o que diz Pandora da Cunha Telles, da Ukbar, a produtora que depois de, no processo de pré-produção do filme, Terry Gilliam ter rompido com Paulo Branco por alegados problemas de financiamento, acabou por assegurar a coprodução portuguesa, ao lado da Kinology (França), da espanhola Tornasol Films, produtora delegada do filme, e da Entre Chien et Loup (Bélgica). Ao contrário do que afirma Paulo Branco, Pandora da Cunha Telles sublinha que “todos os processos estão ainda pendentes”. E acrescenta, ao telefone com o i: “Neste momento, não há nada que diga que o filme está impedido de ser explorado comercialmente. A própria notícia sobre a Amazon não tem confirmação oficial.”
“uma vitória a favor do cinema” Para a produtora portuguesa, que obteve esta semana por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual a confirmação de coprodução oficial do filme, a decisão judicial de ontem “é uma vitória a favor do cinema, de Cannes, de um realizador que há 20 anos está a tentar fazer um filme e dos quatro coprodutores que efetivamente fizeram o filme”, rodado entre Espanha e Portugal com um orçamento de 16 milhões de euros e nomes como Adam Driver, Jonathan Pryce e Olga Kurylenko, mas também a portuguesa Joana Ribeiro, como protagonistas. “Não há volta a dar a isto.”
Quanto ao resto, “o tempo vai metendo tudo no sítio”, afirma a coprodutora, que avançou para o filme depois de Terry Gilliam ter rompido com Paulo Branco. “Acima de tudo, estou feliz [com a autorização para a estreia mundial em Cannes]. E o que quero é ver a Joana Ribeiro naquela passadeira vermelha para a estreia do filme na grande sala.”
Também a direção do festival reagiu rapidamente à decisão, via Twitter, anunciando que o realizador estará presente, depois das notícias sem confirmação oficial de que tinha sido hospitalizado durante o fim de semana mas que já se encontrava em casa a recuperar. “Façamos desta vitória uma grande festa.”
Depois de ter sido anunciado, a 19 de abril, que “O Homem Que Matou Dom Quixote” – em que Terry Gilliam conta a história de um homem que viaja no tempo, do séc. xxi até ao séc. xvii, onde se cruza com o protagonista da obra de Cervantes – faria o encerramento do festival, o produtor português Paulo Branco avançou com um pedido de providência cautelar contra o festival, em Paris, para impedir a exibição do filme.
Um filme maldito A contenda entre o produtor português, que em 2016 anunciou que tinha adquirido os direitos do projeto, vem já desde o final desse mesmo ano, quando o realizador anunciou, primeiro no Instagram, depois numa entrevista em que não referia o nome de Paulo Branco, que tinha deixado cair o projeto por alegados problemas de financiamento. Apesar das várias ações judiciais que desde então vêm sendo interpostas por Paulo Branco, que alega ter direitos sobre o guião, o filme acabaria por ser rodado no verão passado, numa coprodução entre Espanha, França, Bélgica, Inglaterra e Portugal – sem Paulo Branco, mas com a Ukbar, que participou com 10% do financiamento do filme, que ascende aos 16 milhões de euros e foi o primeiro projeto a ter beneficiado do sistema de incentivos fiscais para coproduções estrangeiras pouco antes lançado pelo governo português e o ICA.
“Espero que os contornos novelescos que está a assumir esta história não prejudiquem isto”, nota ainda Pandora da Cunha Telles. “Foi o primeiro filme elegível para o programa de incentivos fiscais [lançado pelo governo] e é um enorme cartão-de-visita para que mais filmes desta envergadura venham a ser rodados em Portugal. Este é um momento histórico. Conseguimos fazer um filme que há 20 anos estava maldito e temos uma atriz portuguesa, a Joana Ribeiro, como protagonista, ao lado do Adam Driver, num filme de encerramento de Cannes. Esperamos que seja o primeiro de muitos.”
Filme “maldito”, como ficou já conhecido, porque não foi a longa batalha judicial com Paulo Branco o primeiro dos problemas enfrentados por Terry Gilliam para a concretização desta sua obra a partir do clássico de Cervantes. Longe disso. “O Homem Que Matou Dom Quixote” é um projeto para o qual o ex-Monty Python avançou pela primeira vez já em 2000, com Johnny Depp e Jean Rochefort como protagonistas. Nessa altura, o filme chegou a começar a ser rodado em Navarra, num processo interrompido por problemas vários, já relacionados com falta de dinheiro mas também com uma lesão de Rochefort. Houve depois uma segunda tentativa, dessa vez com John Hurt e Jack O’Connell, e de novo o filme acabou por não avançar. Toda uma verdadeira saga que chegou a dar mesmo um documentário em 2002, “Lost in La Mancha”.