Diamantino, Ronaldo, o pobre burro Balthazar ou um novo Dom Sebastião. Suposições à parte, deixemo-nos com Carloto Cotta para o derradeiro ícone português. Resposta de Gabriel Abrantes sobre o ponto de partida para esta sua primeira longa-metragem – de novo ao lado de Daniel Schmidt, com quem realizou no passado “A History of Mutual Respect” (2010) e “Palácios de Pena” (2011) –, que chega esta manhã à Semana da Crítica de Cannes. Comédia romântica, conto de fadas, policial, ficção científica, tudo isto com o tom de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt de uma vez – que a isto falta imaginar a perseguição a um porco no jardim de um palacete, um Lamborghini amarelo, experiências genéticas numa estufa ou um bando de “cachorrinhos felpudos” gigantes num campo de futebol feito algodão-doce.
Não será de modo ou em lugar algum plana esta história sobre futebol, mediatismo, crises humanitárias, nacionalismo, neofascismo e trumpismo, offshores, clonagem, tragédia familiar, questões de género ou a aceitação do amor da forma que viver. Diamantino Matamouros (Carloto Cotta) para toda a história num só nome, para nos fazer pensar sobre “como todo o dinheiro e a representação mediática de futebolistas extremamente ricos tem alguma ligação a uma história de opressão portuguesa que vem desde a reconquista e da expulsão de um povo de um território que hoje é conhecido como Portugal”.
Estaremos então a chegar já perto de Trump, em piada, ou a Dom Sebastião, à bandeira monárquica e o apelo pela construção de uma nova muralha, à propaganda nacionalista ou ao plano secreto para, à falta de tradução que soe melhor, fazer Portugal grande de novo. A referendos pela saída da União Europeia ou à tragédia humanitária dos refugiados, à ironia a fazer-se susto, pela confrontação com esse “e se”. “O lado sério ou asfixiante do filme é que o absurdo, a brincadeira, o delírio pode ser descrito assim ao mesmo tempo que é mais sóbrio do que a realidade norte-americana neste momento, pelas frases que saem da boca do presidente dos Estados Unidos”, nota Gabriel Abrantes, que logo descreverá o argumento que assina com o americano Daniel Schmidt como “uma pobre edição de Trump”.
Lates, waffles e o ópio do costume O início de “Diamantino” será ele próprio – referência ao futebolista que no Benfica fez sucesso em finais da década de 1970 – numa grande final a fazer-se mais política do que aquilo que se aceita ver. Entre cachorros, Lamborghinis, iates e waffles com chantili, Diamantino como número zero para a salvação nacional nos planos secretos de um governo totalitário à procura da suposta glória perdida algures na História.
Realidade distópica mas quase verosímil, “uma realidade paralela” em que um regime totalitário utiliza o futebol como o que sempre foi. “É uma coisa que toda a gente aceita – e às vezes somos bastante cegos –, o futebol, e o desporto em geral, como uma das maiores ferramentas de manipulação de um povo, ao fomentar sentimentos de orgulho mas, ao mesmo tempo, de xenofobia e de racismo, por esse orgulho assente numa questão completamente abstrata e inventada que é a das fronteiras.”
Entre planos secretos, contas offshore e vilões como só no mais clássico conto de fadas – como as gémeas Anastácia e Natacha, Anabela e Margarida Moreira, nem mesmo as irmãs da Cinderela; e pior talvez só Joana Barrios como a derradeira vilã, na cadeira de rodas automática que também não é novidade na Europa – virá Diamantino como uma espécie de Balthazar, aquele burro de “Au Hasard Balthazar” (1966), de Robert Bresson. “Trabalhámos muito sobre esta ideia de que o Diamantino é tão naïf e tão simples que tem um génio que não é só o génio do futebol, mas um génio de falta de preconceitos”, explica-nos Gabriel Abrantes em vésperas da estreia na Semana da Crítica.
“Onde o filme se resolve melhor politicamente é nesta pressão toda de forças sobre o Diamantino – as irmãs que querem dinheiro, o partido que quer poder, o povo que quer uma gratificação, o ‘ópio’ – e ele ali no meio, um bocadinho como o Balthazar. Aquele burro completamente inocente que é oprimido por todas as esferas da sociedade ao mesmo tempo que é o personagem mais querido, mais lindo, mais de braços abertos. Foi isso que procurámos com o Diamantino.” Esse novo herói português, no fim de contas, a “ultrapassar nacionalismos, as questões do dinheiro, as questões do futebol e a aceitar no fim, de braços abertos, um amor muito inesperado”.
“Diamantino” é o bem e o mal simplificados, em arquétipos, na melhor saída possível para um filme tão contemporâneo, atento e político quanto os tempos do cinema permitem — e bem-sucedido nisso. “Queríamos contar uma história simples mas, ao mesmo tempo, temos este gosto um bocado barroco, extravagante. Recorremos aos géneros, até a comédia romântica, porque também nos baseámos na estrutura das grandes comédias românticas dos anos 1940 e 50, como o ‘Bringing Up Baby’ [de Howard Hawks], com a Katharine Hepburn e o Cary Grant, em que ela tem um leopardo. Ou ao James Bond, com os maus que são tão maus que são arquétipos, estereótipos. Essas estruturas supersimplificadas ou simplistas ajudaram-nos a criar espaço para toda esta loucura. Porque o filme é um grande baralho de cartas, na mistura de géneros e de histórias.”
E Ronaldo? “Queríamos um ícone. Digo sempre isto e ninguém publica: todos os personagens, locais, eventos e produtos retratados no filme são pura ficção”, sorri o realizador. “Qualquer parecença com a realidade não deverá ser inferida.”