‘Como a situação está, Israel é tudo menos uma democracia’

‘A sensação que dá agora é que a sociedade civil está amordaçada. Os debates quase não existem’, diz Lumena Raposo, especialista em questões do Médio Oriente.

‘Como a situação está, Israel é tudo menos uma democracia’

É uma das jornalistas que mais conhece as questões do Médio Oriente em Portugal, principalmente no que diz respeito ao conflito israelo-palestiniano, tema que acompanha há décadas. Pessimista em relação à situação atual, diz que a solução dos dois Estados se tornou «impossível» e que Israel não está a fazer nenhum esforço para ser a democracia que há muitos anos continua a garantir que é.

É este o Estado de Israel que pensariam os seus fundadores quando o viram nascer há 70 anos?

Se eles queriam um Estado para ser a pátria dos judeus, para ser um local para onde os judeus poderiam ir sem que ninguém lhes barrasse a entrada, conseguiram. Agora se a ideia deles era ter um país democrático, onde todos pudessem viver em paz, não conseguiram, obviamente. Como a situação está neste momento, Israel é tudo menos uma democracia. Não vale a pena continuarmos com essa narrativa de que é a única democracia do Médio Oriente porque isso não corresponde minimamente à verdade.

A partir de que momento é que essa democracia se foi perdendo?

Essa ideia de que é a única democracia é a frase chave que eles vendem desde que se conhecem. A própria declaração de independência fala nisso. É óbvio que a partir do momento em que tens um Estado que prende, que não respeita os direitos civis de outro povo – e não estou a falar dos palestinianos que vivem noutro território, mas dos chamados árabes-israelitas – e que os considera cidadãos de segunda categoria, não me falem de democracia. E isso acontece há muito tempo. Em 1948, assistimos à expulsão dos palestinianos das suas terras para que fossem ocupadas pelos judeus que vêm essencialmente da Europa. Também podem argumentar que a declaração de independência foi num dia e no dia seguinte Israel foi atacada, no entanto, isso não vai legitimar tudo o que tem sido feito desde aí até agora. Se Israel queria mesmo ser uma democracia deveria fazer um esforço para o ser.

Se recuarmos 20 anos, havia uma sociedade pluralista, diferenças de opiniões, debates acesos. Hoje as vozes daqueles que defendem posições contrárias à do Governo israelita estão caladas.

Hoje há menos debate. A sociedade civil israelita sempre foi muito dinâmica. Por exemplo, a retirada do Líbano foi feita da forma que foi porque a sociedade civil se movimentou. A sensação que dá agora é que a sociedade civil está amordaçada. Os debates quase não existem. Agora, existe uma coisa muito interessante que é o movimento de boicote, que está a criar uma nova dinâmica e fora de Israel. Curiosamente, muito mais fora do que dentro. Dentro, as pessoas já se habituaram ao statu quo, dá-lhes jeito. E tendo em conta que a violência palestiniana se reduziu – e não tem nada a ver com o muro, mas com uma decisão que os palestinianos tomaram há muito tempo, isso é mais uma narrativa que tem de ser desmistificada –, acham que está tudo bem. E a violência diária junto à Faixa de Gaza, com a juventude de dentro a exigir o regresso dos que partiram, a exigir a liberdade, está a ser apresentada, mais uma vez, como violência e não como exigência da liberdade que os dois milhões de pessoas que lá vivem têm direito a ter.

Quer isso dizer que a solução dos dois Estados está mais longe que nunca?

Completamente. Quando tens um território todo retalhado, onde estão os dois Estados? A não ser que, para Israel, os dois Estados seja Ramallah e acabou. O muro a cortar aldeias, os colonatos a aumentar e alastrar-se – a solução dos dois Estados acabou. Curiosamente, ontem [quinta-feira], assisti a uma conferência do Ilan Pappé que defende acabar com a ideia de que há solução de dois Estados, porque é impossível, e avançar-se para a solução de um único Estado. Não é uma ideia nova. Recordo que, nos anos 1980, já havia quem dissesse que a única solução era um Estado democrático, em que judeus, muçulmanos, cristãos poderiam viver em harmonia sob uma mesma lei e uma mesma Constituição.

Com esta história de 70 anos, com tudo o que se passou, acha possível que possa haver uma harmonia entre judeus e palestinianos. Não é uma ideia utópica?

Acho muito difícil, muitas gerações foram perdidas com a violência que existiu e continua a existir. Enfim, é utópico, sim, depois disto tudo, mas a ideia dos dois Estados acabou. A Palestina está totalmente retalhada, economicamente inviável, seria um Estado falhado. Aquela zona acaba por ser mais um berço de violência do que outra coisa.

Enquanto isso, Israel vai continuando a comer mais território da Palestina.

Até quando os palestinianos vão conseguir resistir, até onde vai a resiliência dos palestinianos, quando lhe são retiradas as terras, quando são destruídas as culturas, quando a água lhes é roubada. Toda a gente diz que os cristãos andam a abandonar o Médio Oriente. Sim, andam, porque não estão apara aguentar aquilo. Poucos têm a resiliência que têm os muçulmanos. Por outro lado, nós sabemos que há, da parte do Ocidente, movimentos no sentido de os fazer regressar, nomeadamente os evangélicos, que estão perfeitamente ao lado de Israel e apoiam essa saída dos cristãos. Isso em Belém é visível a olho nu.