Mamadou nunca andou de metro e mantém-se perto do pai. Afonso não tem tido vontade de sair de casa a não ser quando é mesmo preciso. Inês quer ser modelo e assim parece, alta e elegante nos seus 15 anos. Gonçalo é o mais novo e também está curioso com a experiência.
É uma sexta-feira diferente para o projeto Desenhar Contigo, que há um ano e meio anima os finais de semana das crianças e adolescentes em tratamento no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. O resultado da visita ao metro pode vir a fazer parte de uma exposição nas estações mais próximas do instituto, Praça de Espanha e Jardim Zoológico, mas, por agora, o objetivo não é muito diferente daquele que move a iniciativa há ano e meio: levar as crianças a observar o que as rodeia, deixar fluir a imaginação e desenhar, tentando esquecer por alguns momentos as dores dos tratamentos, as maldades da doença. Dar um pouco de normalidade às crianças e aos pais, que os acompanham dia a dia nas idas ao hospital e também neste passeio.
Teresa Ruivo, de 53 anos, a mentora do projeto, conhece hoje bem os talentos deste grupo e de muitas outras crianças e jovens seguidos no IPO. Durante algum tempo pensou em encontrar um projeto de voluntariado e os astros acabaram por alinhar-se em 2016. Participou num encontro de Urban Sketchers organizado no instituto e acabou por ter uma ideia: porque não pôr os desenhos ao serviço das famílias? Desde então, todas as sextas-feiras, por vezes a partir das 8h, instala-se no Pavilhão Lions, onde funciona uma espécie de sala de espera/ATL do hospital. E depois é ficar à espera que apareçam os aprendizes. “Às vezes pedem para marcar os exames para a sexta-feira para virem desenhar”, sorri Teresa. Os desenhos entraram na vida da psicóloga clínica há não muito mais tempo e hoje é hábil com as aguarelas e com o pincel com um pequeno depósito de água, ideal para os “desenhadores urbanos”, que em qualquer sítio sacam dos seus cadernos para registarem a realidade. “Se alguém me dissesse há cinco anos que ia parar em algum lado, sentar-me no meio do chão e desenhar, diria que estavam malucos.”
Um elo com o lado saudável Não se fala da doença no projeto Desenhar Contigo. Não é uma regra, simplesmente não há necessidade disso. Tudo funciona de forma simples: cada criança tem um caderno que funciona como o seu diário gráfico. Em cada sessão, Teresa desafia os mais e os menos reservados a experimentarem desenhar, propondo um tema ou deixando-os seguir as suas ideias. Há aguarelas, mas pode ser qualquer outra técnica, de lápis a colagens.
Ao fim deste ano e meio, no armário no Pavilhão Lions já há mais de 60 cadernos guardados e há outros que entretanto foram entregues às famílias. “O objetivo é tentar criar-lhes o gosto por ter um diário gráfico, proporcionar um espaço de expressão e criatividade e facilitar alguma dinâmica relacional entre eles”, diz Teresa. “Pretende-se acima de tudo ter uma componente lúdica que ajude toda a família a vivenciar da melhor forma as longas horas que tem de estar ali.”
A dureza dessas longas horas, que se transformam em dias, semanas e meses – os tratamentos rondam, em média, dois anos –, não é fácil de pôr em palavras. “É uma realidade muito difícil, superpesada para os pais, mesmo quando acaba bem. Acaba mais vezes bem, mas há vezes em que acaba mal”, partilha Teresa, que no meio desse turbilhão de emoções tem ficado muitas vezes surpreendida com alguns desenhos do projeto e como eles expressam os sentimentos dos mais novos.
À cabeça vem-lhe, por exemplo, um trabalho de Azenath, uma das meninas que costumam participar nas sessões. Um dia, quando estavam a desenhar pessoas, pintou quatro mulheres, todas bem vestidas, todas carecas. “Claro que há uma componente de aprendizagem, mas o objetivo é sobretudo distraí-los”, continua Teresa, que um dia, quando teve de regressar ao instituto por volta das 20h e ainda viu muitas das mães que estavam de manhã, com os filhos ao colo, percebeu bem como o projeto é uma gota de água na ajuda que é possível dar às famílias. “Os miúdos, enquanto estão ali, estão bem-dispostos, mas sabemos que não pode ser uma atividade complexa. Começam a desenhar, são chamados para os tratamentos. Dói e já não regressam com a mesma vontade, mas por vezes acontece o contrário e arrebitam.”
Com a Teresa, toda a gente desenha Na incursão pelo metro, os pais acompanham os filhos e também ensaiam uns traços nos cadernos. “Com a Teresa, toda a gente desenha”, avisam-nos ainda antes de sair do IPO para o passeio.
A primeira paragem é a estação de Marquês de Pombal, onde o desafio é desenhar as figuras que ilustram as paredes. O dito marquês, Goethe, Eugénio dos Santos, Carlos Mardel. Inês, concentrada com o seu caderno, vai replicando no papel as ilustrações do azulejo. É da Guiné-Bissau e estão há um ano em Lisboa, conta a mãe, emocionada com os dotes da filha. Vivem no lar do IPO e o futuro é incerto, por tudo um pouco. O tratamento ainda está para durar e Inês tem um sarcoma, um cancro ósseo: os médicos já lhe disseram que não é aconselhável viver num clima quente. “Se calhar, não pode voltar para África, tem de ficar cá.” Genabu tem outros três filhos, o mais novo de cinco anos. Ficaram todos em Bissau e não os vê desde março do ano passado. Não teria como pagar viagens regulares e “primeiro está a saúde da Inês”.
Também de Bissau é Mamadou, de 10 anos. Chegou em novembro, com o pai. De poucas palavras, os olhos curiosos captam os pássaros já na parede da estação de Sete Rios e sorriem com a primeira aventura no metro. “Metro na Guiné? Nem metro, nem comboio, nem autocarro!”, sorri Genabu, que se tornou amiga desta família.
Carla, mãe de Afonso, também está deslocada desde que o filho começou, há sete meses, os tratamentos. Faltam 18 meses de protocolo, palavras que depressa entram no vocabulário. São da Terceira e está a viver com o marido e o filho num apartamento em Benfica. Desde que a vida mudou tem sido complicado gerir tudo, mas o que importa é que os tratamentos estão a correr bem. Afonso, de 13 anos, tem tido aulas por Skype com os colegas dos Açores, uma boa ajuda da escola, conta Carla. De resto, tem a internet e os videojogos, tudo normal para um adolescente. Sair de casa é que não tem sido tanto com ele; por isso, um simples passeio no metro já é o suficiente para a mãe ficar com algum alento.
Mafalda, mãe de Gonçalo, partilha o mesmo. São de Torres Vedras e vêm ao IPO para os tratamentos, mas Gonçalo pode continuar na escola. Desenha as composições do metro e vai mostrar o resultado a Teresa, que em gestos rápidos vai captando o ambiente e as pessoas que entram e saem das carruagens. Teresa sugere-lhe que desenhe os passageiros. “Ia vazia!”, exclama o rapaz de nove anos, com o caderno já com muitos desenhos. “Às vezes temos de ser criativos”, devolve a “professora”. Como qualquer criança, Gonçalo sabe sê-lo: “Vou desenhar macacos.”
Luana, oito anos, vai ter à gare com a mãe e uma voluntária do IPO. É dos que mais gostam de desenhar e não podia faltar à visita de estudo. Gosta sobretudo de desenhar pessoas e os olhos fixam–se numa mulher africana do outro lado da plataforma, com vestes tradicionais em tons fortes, que instantes antes prenderam a atenção de Teresa Ruivo. Desenham-na as duas, ao seu jeito.
É nesta capacidade para detetar pormenores que possivelmente passariam despercebidos se não andassem de caderno na mão que Teresa vê uma das grandes dádivas da arte de urban sketching e é isso também que tenta passar aos mais novos. Se os desenhos lhe deram mundo, com as crianças e com o IPO percebeu ainda mais como é importante relativizar os pequenos problemas do dia-a-dia. “Ao lado do que eles passam, são migalhas, e às vezes focamo-nos nas pequenas coisas más que nos acontecem sem darmos valor às boas.”
Maria Miranda, educadora de infância do IPO há 16 anos, acolheu de bom grado o projeto de desenho e acredita que a constância de Teresa contribui muito para o sucesso. Todos os anos chegam ao IPO 160 novos casos de cancro em idade pediátrica e estão em acompanhamento cerca de 400 crianças e adolescentes. No Pavilhão Lions, o grande foco é que o tempo que têm de passar no hospital seja o mais agradável possível. “É fazê-los entenderem que não vêm ao hospital só para os tratamentos, pode ser um espaço de brincadeira”, resume Maria, que, tal como Teresa, sente que lidar com as famílias mudou a forma como leva a vida. “A nossa vida pode ser complicada, mas não tem nada a ver. Penso nisso, por exemplo, ao domingo, quando saio de casa para ir tomar um café, são coisas simples que, muitas vezes, as famílias deixam de conseguir fazer.”
Pode acompanhar os desenhos do projeto no Instagram Desenharcontigo