O documento elaborado pelo Ministério das Finanças de Angola diz a certa altura que existe um conflito em Cabinda e que a «a agitação» pode «levar a uma redução na produção de petróleo» do país, tendo em conta que é nas águas do território que se extrai mais de 80% da produção petrolífera angolana. Luanda sempre negou até agora a existência de qualquer problema na sua província mais a norte. A aparente nova posição oficial consta da informação de mais de 200 páginas, a que a Lusa teve acesso, que serve de suporte à emissão de 3000 milhões de dólares de eurobonds e foi distribuído aos investidores internacionais.
«Ter assumido a existência de escaramuças e emboscadas militares, onde já se teve como alvo estrangeiros feitos reféns para obter atenção mundial, representa para a causa cabinda um reconhecimento das suas reivindicações e conquista até, visto que sempre muito se falou sobre esse conflito e o Governo sempre negou», diz ao SOL Sedrick Carvalho, organizador do livro Cabinda – Um Território em Disputa, editado em abril.
«Fiquei um bocado surpreso ao ver essa notícia», afirma ao SOL, por telefone desde Luanda, Raul Tati, antigo vigário-geral da diocese de Cabinda, ativista pela causa cabinda, eleito deputado nas listas da Unita nas eleições do ano passado. «Fiquei estupefacto» porque pressupõe uma posição «completamente diferente» do Executivo angolano, ainda para mais num «documento desta natureza, que tem projeção internacional», acrescenta Tati, que é autor de vários livros sobre o tema, incluindo Cabinda – Órfã da Descolonização do Ultramar Português, publicado no ano passado.
«O reconhecimento talvez seja por estar perante uma relação económica que envolve entidades internacionais», avança Sedrick Carvalho, «até porque a comunidade internacional não esqueceu o que aconteceu à seleção do Togo em 2010». Na altura, o autocarro da seleção togolesa, que estava em Angola para disputar a Taça de África das Nações, foi atacado por rebeldes da Frente de Libertação do Estado de Cabinda (cujo ‘E’ em FLECjá representou Enclave), resultando em três mortos e nove feridos.
Mesmo assim, a narrativa oficial sempre foi a de que estava tudo pacificado na província e que as notícias de ataques da FLEC eram pura invenção. Algo que este documento oficial elaborado pelo Ministério das Finanças de Angola parece agora vir alterar, falando em «escaramuças e emboscadas militares em Cabinda, como resultado da campanha contínua da FLEC».
Representa isto uma mudança política? «E de que maneira!», exclama Raul Tati, que avança algumas possibilidades para o assumir desta posição «completamente diferente». Há um novo chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas (CEMGFAA) – o general Sachipengo Nunda foi substituído em abril pelo general Egídio Santos, que esteve várias vezes em Cabinda. Além disso, o general Fernando Miala, depois da sua travessia do deserto, voltou a ser o homem forte das secretas angolanas. E durante muito tempo foi ele que teve nas mãos o dossier de Cabinda.
Pode acontecer que esta seja uma reação de Luanda à oferta de paz da FLEC, que há cinco décadas luta pela independência daquele território, protetorado português sem continuidade geográfica com Angola e que a descolonização acabou por deixar nas mãos dos angolanos.
A 26 de abril, a FLEC propôs ao novo CEMGFAA um ‘roteiro’ para a paz, da qual ainda não obteve qualquer resposta pública. «João Lourenço não fez até agora uma declaração explícita, enquanto Presidente da República, sobre Cabinda. Não sei se é estratégia ou está a ignorar o problema», diz Tati. Pode ser o primeiro sinal.