A história poderia ter seguido outro rumo e hoje haveria, quem sabe, um Serviço Nacional de Justiça. António Arnaut até já tinha o esboço preparado quando Mário Soares mudou de ideias: afinal não o queria a tutelar a magistratura mas a pasta dos Assuntos Sociais, Saúde e Segurança Social. A sua missão não seriam tarefas como acabar com a corrupção na PJ, o que inicialmente lhe fora dito, mas cumprir um dos desígnios da Constituição de 76: “O direito à proteção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”.
Os capítulos que se seguiram mudariam a vida do jurista de Coimbra e a história do país. Corria o ano de 1978 e Arnaut, a estrear-se nas coisas da saúde, telefonou ao amigo médico Miguel Torga, mestre na poesia, para agilizar o contacto com Mário Mendes, outro médico de Coimbra que viria a ser seu braço direito como secretário de Estado. Junto com Gonçalves Ferreira, precursor dos cuidados primários, trabalharam nas bases técnicas do SNS. “O Governo tomou posse a 23 de janeiro. Entre os pontos de honra anunciei que o governo ia criar o SNS e que no prazo de cinco meses seria apresentado o projeto da Lei de Bases. Mas ao fim de um mês o anteprojecto do SNS estava pronto. Apresentei-o publicamente em princípios de abril e foi aí que o CDS, que estava com o PS no Governo, e as forças da direita, viram que era a sério. Porque habitualmente os programas do governo não se cumprem. Eu disse várias vezes que a criação do SNS era, para mim, um ponto de honra, não recuava um milímetro, não retirava uma vírgula”, lembrou em 2014 numa entrevista ao “Diário As Beiras”.
O governo cairia em agosto de 1978 mas, no final de julho, Arnaut faz sair um despacho, que viria a ser considerado uma antecipação do SNS, ao garantir o acesso aos serviços médico-sociais a todos os cidadãos, independentemente de estarem empregados e terem descontos. Era o começo da saúde universal. Ao regressar ao parlamento como deputado, fez-se o resto: apresentou o projeto de lei do PS para a criação do SNS para garantir cuidados tendencialmente gratuitos a toda a população.
O site do parlamento preserva esse registo. O projeto do PS estava assinado por Duarte Arnaut, o segundo nome de António, e ainda por Mário Soares e Salgado Zenha. Deu entrada nos serviços da AR a 23 de novembro de 1978 e seria votado na generalidade em maio de 1979. Se na primeira votação apenas o CDS votou contra, na votação final em reunião plenária opuseram-se PPD, CDS e vários deputados independentes, entre eles Rui Machete e António Marques Mendes (pai do ex-líder do PSD).
A lei passaria ainda assim e foi publicada em Diário da República a 15 de setembro de 1979, dia que em que desde então se comemora o aniversário do SNS. Por princípio, os cuidados devem ser prestados pelos estabelecimentos da rede oficial do SNS e, quando tal não é possível, por entidades não integradas no SNS, lê-se no diploma de 1979.
Combater o subfinanciamento, a degradação das carreiras profissionais e o excesso de dependência do setor privado tornaram-se nos últimos anos bandeiras de Arnaut, que vestiu a camisola de uma causa que dizia ter-lhe sido ditada pela sua consciência, ainda que recordasse sempre que se a lei tem progenitor, tem sobretudo uma mãe. “A mãe é que conta e a mãe é a Constituição. Se ela só tivesse o pai há muito tempo que tinha sido revogada e o SNS destruído”, disse numa entrevista ao i em 2016. Na sexta-feira, num encontro onde se debateu uma vez mais o futuro e onde já não conseguiu estar presente, foram lidas as suas palavras. Considerava que o SNS estava a ser reduzido a um “serviço residual para pobres” e esperava que em 2019, quando assinalasse 40 anos, pudessem voltar a ser motivo de orgulho.