Mário Cláudio. “Qualquer biblioteca é um imenso cemitério”

Mário Cláudio tornou-se, ainda na década de 80, uma figura de relevo das nossas letras ao publicar a “Trilogia da Mão”

Cedo trocou os códigos do direito pelos dos géneros literários, cujas leis canónicas contorna com a flexibilidade de um desenho animado. Manuseia-os com a desenvoltura de um estilo atravessado por registos em que o requinte, o recato e o mais rocambolesco calão convivem em regime de boa vizinhança. A deusa da História é santinha do seu altar, ora evocada com fidelidade, ora devotamente revista e aumentada. À verdade verdadeira e indiscutível prefere Mário Cláudio a verdade da ficção. Pende para a biografia romanceada como a balança da justiça para uma das partes.

O seu contencioso com o estado cultural da nação ficou bem expresso no magistral “Tiago Veiga” (2012), poeta de fugidia personalidade e autor involuntário da mais desassombrada (e desbocada) história crítica da literatura portuguesa do séc. xx. Os pareceres, sem fundamentações maiores, reservou-os também ao nosso pequeno reino literário; querelas, disputas, tricas, ambições pessoais marcam presença no romance “Astronomia” (2015), que é a orquestração romanesca da própria vida do autor. Como todo aquele que busca – e encontra – brechas na lei, também o escritor encontrou “brancos” relativos à autoria total de “Os Lusíadas” de Camões, figura que libertou das grades da mítica admiração (“Os Naufrágios de Camões”, 2017). Nunca prescindiu da vocação indagadora ou do rasgo perspicaz que assiste ao bom jurista. 

No momento em que acaba de chegar às livrarias o seu novo romance, “Memórias Secretas”, conversámos com Mário Cláudio, que “aos costumes” disse muito. 

A capa deste seu novo romance, que é todo um programa, exibe um relicário com a foto do autor, em tons de sépia matreiro. É um gesto de provocação ou são as artes do engano a funcionar? 

A ideia da foto foi minha. Mesmo quando escrevemos sobre outros, estamos sempre a escrever sobre nós próprios. Projeta-se sempre alguma coisa do que somos nas figuras que criamos ou que reinventamos. Portanto, As “Memórias Secretas” não são necessariamente as minhas memórias secretas. São as dos meus personagens, mas como há uma identificação entre o autor e as suas personagens, mesmo que sejam personagens já inventadas por outros, como é o caso, acabam por ser também as minhas memórias secretas. 

E, neste caso, figuras devidamente simbolizadas nas páginas do livro.

Sim, a gaivota do Corto Maltese, o colar de pérolas da Bianca Castafiore e a espada do Príncipe Valente. 

Concorda com Vittorio Affieri [autor dramático do final do séc. xviii, citado na contracapa] quando diz que o amor-próprio e a vaidade são o móbil da escrita memorialística? 

A escrita memorialística e autobiográfica assenta sempre na vaidade ou naquilo a que poderemos chamar autoestima, que é hoje o mais utilizado. As pessoas divisam eufemismos para nomear sentimentos que julgam negativos. Autoestima em vez de vaidade, simulação em vez de inveja e por aí fora. Mas o Affieri põe o dedo na ferida e chama-lhe, sem rodeios, vaidade. E eu estou de acordo. 

Mas a vaidade não será exclusiva desses géneros. Sabemos que é transversal. E que, por vaidade, há até quem, julgando estar a escalar aos céus da literatura, acabe a engrossar o lixo editorial. 

O escritor é um ramalhete de qualidades e de defeitos. As qualidades ligadas ao ofício são mais evidentes: o talento ou a genialidade, a solidariedade humana como mensagem da escrita, ou a generosidade. Tudo isso são qualidades, mas depois há defeitos que são tipicamente de um escritor: o egocentrismo, se quiser, o egoísmo, um misto de preguiça e de vaidade. 

Preguiça?

A preguiça faz parte do universo de um escritor. Mesmo que seja um escritor laborioso, ele tem sempre a tentação do lazer, vive sempre na beira, no apetite do lazer. São características com que um escritor tem de lidar e o público pode estar ou não atento a elas. Não creio que seja fundamental para a receção da obra de um autor. 

A avaliar pela quantidade de livros que hoje se despenham, às pilhas, nas livrarias, dá a ideia de que os escritores desconhecem o lazer. Acha que hoje se publica demais? 

Houve uma altura em que toda a gente tocava um instrumento, sobretudo na classe média, e as mulheres eram especialmente estimuladas a aprender a tocar, fundamentalmente, piano, mas também violino. Só que o que acontecia é que havia uma diferença entre a menina que tocava a “Für Elise” do Beethoven, em casa, para os amigos depois do jantar, e o grande concertista, o Backhaus, o Rubin-stein ou outros dessa época, que eram intérpretes de grande qualidade. E as pessoas sabiam separar uma coisa da outra. Hoje, este discernimento parece ter acabado.

Haverá razões …

Há as razões de mercado, claro. Os livros vendem não pelo seu conteúdo, mas pela capa ou pelo título. Sabemos que pode transformar-se num best-seller uma verdadeira porcaria e estamos a assistir diariamente a isso. Mas sabemos também – e a sociologia da literatura é muito clara sobre isso – que essa porcaria dura sempre muito pouco tempo: uns dias, uns meses, e acabou. A escrita a sério dura muito mais. Exatamente como o senhor que tocava cavaquinho tocava para os amigos, e o grande intérprete, que tocaria violoncelo ou violino e andava pelas salas de concerto do mundo, e durava muitíssimo mais. 

Essa literatura de perna curta incomoda-o ou preocupa-o de algum modo?

Eu não me preocupo nada com essa literatura. E devo dizer que, de vez em quando, até me apetece ir lá ver, por curiosidade e também porque me divirto com os disparates que leio. Há pessoas que ficam muito irritadas com o mau português, com as deficiências linguísticas, a bacoquice dos textos. Isso, a mim, diverte-me, sobretudo no campo do romance histórico, que é uma escrita que se transformou numa espécie de brotoeja feminina e, provavelmente, só vai ceder ao Canesten. Nessa escrita histórica, a quantidade de erros factuais é uma coisa inacreditável. Hoje, sobretudo com o acesso que há, poderia haver o mínimo de cuidado, mas não. Até em relação às espécies vegetais das épocas. (risos) São capazes de pôr uma mimosa no Castelo de Guimarães no tempo da D. Teresa, coisa que é absolutamente inexistente. E outras coisas que são ridículas, mas que são também muito cómicas. E eu acho que há que salvaguardar também esta comicidade. É evidente que as pessoas que escrevem se levam muito a sério, mas o leitor não tem obrigação nenhuma de levar a sério seja qual for o autor que esteja a ler. 

E o Mário Cláudio leva-se a sério?

Não, de modo nenhum. Creio que este novo livro é a prova de que não me levo a sério. Neste sentido: na idade em que eu estou, em princípio, estaria a dar lições às pessoas. “Façam isto, façam aquilo, vou dar este conselho, aquele conselho, já vivi bastante, tenho esta experiência, a outra…” Não. Eu abracei a infância, a chamada segunda infância, e quis vivê–la jubilosamente. Revisitei todo um universo de macaquinhos e macacões, da banda desenhada e da literatura infantil clássica, sobretudo. Divirto-me a conviver com eles e acho que se podem escrever coisas interessantes a partir dessas figuras, desde que reflitamos nelas. São figuras que acabam por deixar uma marca profunda em cada um de nós. 

Parece-lhe que, entre nós, os escritores se levam muito a sério?

Nem todos. Há alguns que se levam demasiadamente a sério. O autor que se vê como busto é uma figura recorrente. Um senhor austero, que raramente ri; como eu já tenho dito, é alguém que afivela a máscara de Jesus Cristo e, portanto, não pode rir à gargalhada nem arrotar depois da Última Ceia. Acaba por ser uma figura hierática, que impõe uma certa respeitabilidade e tal… Não tenho nada a ver com isso, sinceramente não tenho. Posso ser macambúzio, até mesmo um pouco rezingão, mas não quero levar-me a sério. Não quero. 

Este seu livro, que arranca com bom humor, tem como título “Memórias Secretas” mas poderia chamar-se “A Peregrinação”.

Sim, e também se poderia chamar “A Regressão”. São três regressões à infância. Quando se diz que o velho está na segunda infância – está velho, é uma autêntica criança, etc. -, está-se a desvalorizar, simultaneamente, o velho e a criança. Esta tem potencialidades infinitas e importantíssimas, e o velho também. E essas duas figuras, que correspondem aos extremos do corpo humano em termos biológicos, são desvalorizadas em função de um arquétipo ou de uma figura teórica que é a do homem maduro, o sujeito que está na maturidade, aquele que trabalha, produz, dá rendimento, etc. É, normalmente, uma figura muito pouco interessante porque está padronizada. Os outros não, têm esse potencial de loucura e de disparate que deve ser valorizado. 

A propósito de disparate. Encontrei há tempos uma leitora muito desagradada com a sua escrita: “Que horror, parece que o homem engoliu um dicionário.”

Às vezes também me chegam esses ecos. (risos) O dicionário, se existe, é por alguma coisa. A língua é um teclado, todas as teclas têm de ser vibradas, estão lá por algum motivo; e o que importa é que sejam utilizadas adequadamente e a propósito, e não à martelada. E eu fico muito satisfeito quando me sinto a recuperar determinados momentos do léxico português, que tende à rasura, ao desa-parecimento. Bom, se as pessoas precisam de ir ao dicionário … 

Não o usa?

Quando escrevo, nunca vou ao dicionário, apenas para verificar a ortografia de uma ou outra palavra; os significados, tenho-os na cabeça, e isso resulta de muitas leituras. Quando se procura dominar o léxico de uma forma muito ampla, acaba sempre por se encontrar muito mais facilmente a palavra certa. Também diziam isso a propósito do Aquilino e do Tomaz de Figueiredo, que são dois monstros sagrados que eu admiro imenso e, portanto, fico muito satisfeito se os leitores me atacarem por esse lado. Há outros aspetos muito mais frágeis da minha escrita e que eu não vejo serem atacados. E esses são os que me preocupam. 

E quais são essas fragilidades?

O Vergílio Ferreira, que gostou muito dos meus livros, sobretudo dos primeiros, e o assinalou no seu diário, a “Conta-Corrente”, uma vez apontou-me o perfeccionismo, que é sempre nocivo a um escritor, algo apoucante, até porque ameaça fazê-lo cair na academia. Ele disse que era o grande risco que eu corria. E tinha absoluta razão. O perfeccionismo, às vezes, leva-me a querer aperfeiçoar coisas que acabam por ficar estragadas por excesso de vontade de perfeição. E depois há outros aspetos que têm a ver com a construção novelística, em que eu não sou exímio, e, isso, as pessoas normalmente não dizem. Eu gostaria de escrever coisas com outra envergadura, com outra compleição. Acho que os meus textos são rigorosos em termos de arquitetura, mas não são de maneira nenhuma textos impositivos, não têm a dimensão … já não falo de uma catedral à Gloucester, mas não têm a dimensão sequer de uma igreja românica. 

Mais habitual é ouvir dizer que a obra de Mário Cláudio fica situada em território maldito: o da erudição. 

Os escritores que eu admiro são escritores, de facto, com alguma erudição: a Agustina é uma escritora erudita, o Aquilino, a Virginia Woolf também é, além do mais, com uma atividade ensaística absolutamente notável, o Proust. São autores que se veem, a eles próprios e aos seus personagens, integrados num mundo muito complexo. E para se fazer a leitura desse mundo muito complexo – sem se reduzir tudo a uma tábua rasa, como fez o Musil – tem de se estar atento a muitos referentes da ordem disciplinar da cultura geral. E eu sou um homem que tem essas curiosidades. Interessa-me tanto a biologia como a história como a antropologia. Adorava ser um homem mais informado em termos das ciências exatas, como a matemática. Não tenho essa formação, mas tudo aquilo que faz parte da informação cultural tem necessariamente de se projetar naquilo que faço. 

Em tempos como aqueles que atravessamos, em que as fasquias parecem estar sempre a baixar, a erudição não será propriamente um atrativo para os novos leitores.

Pois não, mas o problema é esse. Curiosamente, é possível atacar um autor pela sua erudição como é possível atacá-lo pela não erudição e pela parcimónia, pelo franciscanismo da escrita, essa escrita voluntariamente sóbria que recusa adjetivos, que se serve fundamentalmente do registo verbal. Esta postura acaba também por ser uma exibição da secura, do anódino, aquilo a que se pode chamar uma exibição da neutralidade, da escrita depurada, desse puritanismo.

Está a pensar, por exemplo, num Gonçalo M. Tavares?

Aí, é uma erudição da não erudição, mas de altíssima qualidade. Admiro-o muito. É o grande escritor da geração a seguir à minha. Não é um autor que seja imediatamente assimilável. E até a forma recatada como ele gere aquilo a que se chama habitualmente “a carreira” é também um exemplo deontológico até para mim, que sou um ser comunicativo, que gosta de estar com as pessoas. 

Sabemos que o Mário Cláudio, sempre muito atento às gerações mais novas, acompanha e encoraja até a literatura que os mais novos produzem. Não é coisa habitual. 

Não é só agora nas gerações que estão ainda em curso. Foi sempre assim: as gerações mais velhas, normalmente, ignoram tudo o que vem depois. É esse um dos preços que se pagam por se ser velho, é deixar de viver com os novos. Como convivi sempre com gente muito nova, também como professor, procurei sempre manter algum pé nos seus interesses e, por isso, interessa-me também a literatura que está a ser produzida hoje. E devo dizer que, para além daquele entulho que enche as livrarias e as prateleiras dos centros comerciais, há um grupo bastante grande de escritores de altíssima qualidade. 

Quer referir alguns?

O centro que tem o meu nome, em Paredes de Coura, organizou já dois concursos de conto (este ano, a temática é “A Festa”) que tiveram uma enorme afluência. E apareceram lá figuras extraordinárias de autores que estão a revelar-se agora. Estou a lembrar-me da Isabel Rio Novo, da Cristina Drios e outros que estão a aparecer, como o André Domingos, que é excecional, tem contos magníficos, o Diogo Leite de Castro e muitos outros (e peço desculpa aos que não referi aqui mas que foram incluídos na antologia). Mas há outras figuras, algumas delas ainda mal conhecidas e que, se continuarem a trabalhar…

E boa parte não brotou de Lisboa. A capital deixou de dar cartas neste campo? 

Há um fenómeno que eu acho que é novo. Estão a aparecer fora de Lisboa figuras muito interessantes, de toda a província. Lisboa deixou de ser o lugar onde aparecem os escritores, como acontecia antigamente. Quando eu apareci, a Agustina – que era do Porto e que sentia esse peso acrescido de Lisboa – dizia-me: “Você tem de ir pelo menos de 15 em 15 dias a Lisboa, senão ninguém repara em si.” Nunca mais me esqueci disso. Alguém que dizia uma coisa idêntica era o Manoel de Oliveira, que disse sempre que sem ir a Lisboa com periodicidade não era possível fazer uma carreira nas artes em Portugal com o mínimo de visibilidade. Essas coisas, ditas em Lisboa, têm um sinal negativo, de provincianismo, de bairrismo, mas não é nada disso. Se existem, vêm de Lisboa, por julgar talvez que é só lá que as coisas acontecem. Neste momento estão a acontecer inúmeras coisas interessantes nas várias áreas da criatividade, no pensamento até, completamente fora de Lisboa. Até nem me custa nada a crer que, dentro em breve, seja necessário eles virem cá. Essa pacovice acabou.

O Vergílio Ferreira, de quem há pouco falava, dizia que a nossa literatura é feita aos pares. Plutarco tinha dado o exemplo, e nós, foi só copiar. Assim, temos o Fernão Lopes e o Zurara, depois o Gil Vicente e o Bernardim, Bocage e Filinto, Herculano e Garrett, Régio e Torga… 

Saramago e Lobo Antunes… (risos)

Ele dizia que era “a lei do encosto”. O Mário Cláudio encostar-se-ia a quem?

Há escritores que eu admiro: o Lobo Antunes, o Mário de Carvalho. Mas eu insiro-me numa linha que tem antepassados, a minha família literária: a Agustina, o Camilo, o Aquilino… 

O Tomaz de Figueiredo …

Sim. A Imprensa Nacional publicou a obra completa e um dos livros, “Uma Noite na Toca do Lobo”, tem um prefácio meu. Acho-o um escritor enorme, mas ninguém conhece. É um homem que pagou uma fatura elevadíssima por viver em Arcos de Valdevez. Mas veja-se o próprio Régio, que agora está na linha de fogo, é uma figura a abater, mas há de voltar. Já começou com o Eduardo Prado Coelho, que espera os primeiros tiros do pelotão de fuzilamento. Tenho muita pena que o Pedro Mexia e o José Tolentino Mendonça tenham excluído o Régio de uma antologia de poesia religiosa. Pode não se gostar da poesia do Régio (eu próprio não gosto de tudo), mas ele tocou aspetos fundamentais. Quem faz uma escolha antológica não deve guiar-se só pelo seu gosto, mas também pelo que é o respeito pelo gosto do público. Não lhes teria ficado nada mal se o tivessem incluído. Eu acho que a responsabilidade de Tolentino Mendonça é particularmente acrescida: tratando-se de um eclesiástico, ele poderia, pelo menos em termos de solidariedade com uma voz importante da poesia portuguesa, ter marcado uma posição exemplar. Mas não o fez. 

Falar de escritores esquecidos começa a ser um lugar-comum … 

Sim, mas a verdade é que, hoje em dia, se falar do Cardoso Pires às gerações com menos de 25 anos, ninguém sabe quem é. O mesmo acontece com o Carlos de Oliveira. Quando um escritor morre, morre duas vezes: morre fisicamente e morre como autor. Há uma espécie de repulsa em tocar no cadáver e, então, não se compram os livros. Aqui, quando morre um autor, não aparece nada nas livrarias, que preferem os títulos de um patetinha qualquer, desses de escrita facilíssima, com títulos do género “Fazes-me Falta, Fica Comigo”. O Vergílio Ferreira desapareceu dos programas escolares. O próprio Saramago venderá hoje muitíssimo menos do que vendia na altura em que estava vivo. Mesmo se pensarmos em nomes de grande poetas com grande aceitação pública, como o Eugénio de Andrade, hoje nem se fala deles. Há uma ou outra reedição, sempre com tiragens muito limitadas, mas o boom a que assistiram em vida acabou. A Sophia continua, o Jorge de Sena também, mas bastante menos, e porque teve uma viúva impecável que manteve a chama. Esses desaparecimentos resultam da circunstância de não haver descendentes, familiares ou amigos que mantenham a chama. 

Todas estas questões conduzem-nos a essa porta estreita que é a posteridade literária. Há quem pense que caberá à larga e quem ache que é o cume do delírio do ego. Isso passa-lhe pela cabeça?

Eu não escrevo para o presente, nem para o passado, nem para o futuro, escrevo para o dia em que estou a escrever. Não estou a pensar na minha receção futura. Até aos 50, 55 anos, pensa-se muito na reação do público aos nossos livros. Entretanto, isso, para mim, deixou de funcionar. Essas obsessões, essas preocupações com a internacionalização, com as traduções não contam absolutamente nada. Os meus livros estão agora a ser muito mais traduzidos do que no passado. Se isso tivesse acontecido no passado, ter-me-ia dado uma grande alegria, mas era uma alegria em que havia sempre um espinho. E o espinho era o medo de não ser depois traduzido no outro país, e no outro, e no outro. Hoje, se querem traduzir, traduzam, se não querem, não traduzam: é-me indiferente. 

Esse é um dos benefícios da idade?

Uma das grandes vantagens do envelhecimento é justamente essa imunidade em relação à aprovação ou à opinião do outro. Agora, os velhos que não aceitam isso é que são crianças no pior sentido: crianças mimadas. (risos) Qualquer biblioteca é um imenso cemitério. As quantidades de nomes que lá estão enterrados é uma coisa … Há autores que não têm a noção do que é o tempo. Dois mil anos não é nada na história do universo. Que vai ser do Eça de Queirós daqui por dois mil anos? E da própria literatura portuguesa? Pense-se nos autores que eram absolutamente incontornáveis, como o Pinheiro Chagas, e hoje não falta quem não saiba sequer que existiu. Mais: pense-se nos gregos. 

Terminemos com o presente e o novo livro. Os apreciadores de banda desenhada devem alegrar-se?

Os leitores de banda desenhada ou que leram banda desenhada, sim, porque ainda há muito boa gente a pensar nela como género literário menor. Talvez se alegrem. Ainda há pouco tempo ofereci o romance a uma pessoa com alguma responsabilidade e disse-lhe: “Olha, isto é um livro em torno de três figuras da banda desenhada.” E a reação veio pronta: “Não há problema, não te preocupes, fica para os putos!” A banda desenhada é, hoje em dia, um género literário tão prestigiado como qualquer outro, com grandes figuras e até figuras geniais como o Hugo Pratt, do Corto Maltese, o Harold Foster, esse grande clássico do Príncipe Valente. Os que a apreciam encontrarão aqui deleite de revisita, mas o livro é perfeitamente legível e inteligível independentemente de as pessoas gostarem ou não de banda desenhada.