Coreia do Norte. Trump não está para conversas

Donald Trump diz que o clima de crispação torna o encontro em Singapura impossível. O seu próprio processo de “pressão máxima” fica a sofrer.

De tanto degenerar, o apaziguamento norte-coreano entra em coma induzido.

Donald Trump anunciou, para surpresa mundial, que a histórica cimeira de alto risco agendada para daqui a três semanas com Kim Jong–un, afinal, não se realizará, e por todos os gestos e avanços dos últimos meses, as últimas mensagens iradas de parte a parte tornaram o encontro “irrecomendável”. Antes de o afirmar num discurso, o presidente comunicou-o publicando no Twitter a carta enviada esta quinta-feira ao ditador norte-coreano. No segundo dos seus três parágrafos lê-se: “Senti que um diálogo maravilhoso se estava a construir entre nós os dois e, em última análise, apenas o diálogo importa. Antevejo com muito agrado encontrá-lo no futuro. Até lá, quero agradecer-lhe ter libertado os reféns que estão agora no seu lar, com as suas famílias.”

A notícia foi surpreendente, embora a cimeira entre Kim e Trump estivesse em risco desde o início. O presidente americano aceitou por impulso o convite que o ditador lhe enviou através de uma equipa de sul-
-coreanos acabada de chegar de Pyongyang. Estávamos em março e, por essa altura, gozavam–se os primeiros frutos da diplomacia de bastidores dos Olímpicos de Inverno em Pyeongchang. Trump aceitou o convite que a Coreia do Norte havia oferecido já várias vezes a antecessores seus, mais em busca de reconhecimento internacional que de verdadeiro diálogo. O facto de Trump ter aceitado o convite pôs o mundo em frenesim. Tê-lo cancelado surpreende menos.

Mas surpreende. O presidente sul-coreano, no entanto, parece ter sido apanhado desprevenido. O processo de apaziguamento com a Coreia do Norte é sobretudo obra sua, mesmo que o seu futuro tenha sempre dependido do governo norte-americano. O ultramediático encontro entre Moon Jae-In e Kim, por exemplo, pareceu dissipar algumas das dúvidas em torno da cimeira com Trump. “É muito lamentável”, afirmou esta quinta o presidente sul-coreano, comentando o passo atrás de Trump – as bolsas, em queda na Ásia, afirmavam o mesmo. Moon, pela meia-noite local, encontrava-se esta quinta numa reunião de emergência para tentar “decifrar” a mensagem de Washington. “A desnuclearização da Península e a consagração de uma paz permanente são tarefas históricas que não devem ser abandonadas ou adiadas”, disse, em comunicado, o homem que mais capital político tem a perder.

Degradação

Trump cancelou o encontro com Kim passadas horas de o regime norte-coreano ter demolido o seu local de testes nucleares. O gesto é duvidoso – a estrutura pode estar há muito inutilizada –, mas esta quinta dava, todavia, a impressão de é o regime incendiário o mais interessado no apaziguamento. O presidente americano, aliás, não se limitou a cancelar a cimeira com Kim: ameaçou-o também, como na semana passada e no mesmo tom usado nos últimos dias pelos conselheiros que tanto têm irado Pyongyang. O exército americano, assegurou na Casa Branca, “está pronto a agir” em caso de “uma má decisão ou ato irresponsável”. “Falam das vossas habilidades nucleares, mas as nossas são tão enormes e poderosas que eu rezo a deus para que elas nunca sejam usadas”, escreveu na carta.

Residem neste ponto as primeiras leituras sobre os vencedores e vencidos da cimeira frustrada. Trump pode ter evitado um encontro de alto risco na Singapura. Também pode ter negado parte do reconhecimento internacional pretendido em Pyongyang. Não evitará, porém, um golpe à sua campanha de “máxima pressão”. Nas últimas semanas de apaziguamento, o comércio clandestino entre China e Coreia do Norte recuperou a força dos últimos anos. Este processo reforçou também os laços de amizade entre Pequim e Pyongyang, através, por exemplo, de dois encontros – os primeiros – entre os líderes. A Coreia do Sul, por sua vez, ainda não desistiu da sua própria operação de paz. A “máxima pressão” exige consenso internacional. Trump pode tê-lo debilitado gravemente.