A discussão sobre a eutanásia em Portugal não é nova. Chegou ao Parlamento já em fevereiro de 2017 com uma petição do movimento cívico “Direito a morrer com dignidade” e, depois de ter passado por vários momentos, tudo ficará agora decidido com a discussão e votação na generalidade, dia 29 de maio, dos quatro projetos em cima da mesa: PS, BE, PEV e PAN.
Desde que a prática começou a ser falada por cá, não têm faltado notícias sobre casos controversos em países onde a eutanásia já está legalizada.
O do cientista David Goodall, por exemplo, chocou os opositores à legalização da eutanásia. Aos 104 anos, o australiano decidiu partir para a Suíça para ser eutanasiado – na Austrália, o procedimento não é legal; exceção feita ao Estado de Vitória, onde passará a sê-lo a partir de 2019. Goodall não sofria de qualquer doença terminal, mas sentia as suas capacidades debilitarem-se de dia para dia, o que o levou a tomar a decisão. «As minhas capacidades estão em declínio há um ou dois anos, a minha vista há seis. Não quero continuar a viver. Estou feliz por amanhã poder acabar com isto», justificou numa conferência de imprensa no dia anterior à sua morte, em 10 de maio.
Outro caso que tem dado que falar na imprensa internacional é o de um britânico de 68 anos, Noel Conway, que sofre de uma doença terminal. O homem recorreu aos tribunais para exigir o direito à morte medicamente assistida, ilegal em Inglaterra, onde vive. Conway, que tem apenas seis meses estimados de vida, ainda tem capacidade para expressar a sua vontade e justifica que a sua vida se tornou «insuportável». Está numa cadeira de rodas, com uma mobilidade quase nula do pescoço para baixo. Apesar de não ser um procedimento legal, Conway diz-se positivo quanto às possibilidades do seu caso.
Um dos casos mais polémicos dos últimos tempos, no entanto, aconteceu na Bélgica, onde a prática é legal desde 2002. Frank Van Den Bleeken, de 51 anos, foi condenado a prisão perpétua por violação e já tinha cumprido 30 anos de sentença quando avançou com um pedido para ser eutanasiado. Na base da sua argumentação, o condenado alegou uma «angústia psicológica insuportável», motivada por um impulso sexual incontrolável. O Governo belga – seguindo o parecer de um comité de especialistas e do Ministério Público – aprovou o pedido de Van Den Bleeken e ficou definido que ao condenado viria a ser administrado uma injeção letal. Contudo, o Governo recuou na decisão e acabou por voltar atrás na autorização que anteriormente dera.
A Bélgica tem, de resto, estado debaixo dos holofotes pela chamada «rampa deslizante», ou, por outras palavras, abusos do direito à morte medicamente assistida. Particularmente incendiários na opinião pública foram casos como o de um adolescente com uma deficiência cujos pais pediram que fosse eutanasiado, ou o de uma jovem de 24 anos, diagnosticada com uma depressão grave, cujos médicos autorizaram que recorresse à prática para pôr termo à vida. A Bélgica, note-se ainda, é o único país no mundo a permitir a eutanásia a menores de idade.
A importância da experiência
Numa altura em que Portugal está a discutir o assunto, importa olhar para as experiências que chegam do estrangeiro e tirar algumas ilações. Essa é a posição não só de quem rejeita a eutanásia, mas também de quem a defende, como o psiquiatra Júlio Machado Vaz.
Ao SOL, o médico assumidamente apoiante da despenalização da eutanásia – é até uma das caras conhecidas do vídeo de depoimentos lançado recentemente pelo Movimento Cívico Para a Despenalização da Morte Assistida – recorda em particular o caso de Van Den Bleeken como «muito desagradável, porque a comissão, a posteriori, com razão ou sem, decidiu que aquele caso afinal não tinha cumprido todos os requisitos». Defende, por isso, «que haja uma instância ou uma comissão que, fazendo uma verificação exaustiva de todo o processo, dê um parecer que seja prévio, sem o qual nada possa acontecer».
Machado Vaz frisa ainda que «a eutanásia é sempre uma avaliação pessoal». O médico exemplifica com casos mais extremos em que, por exemplo, a pessoa visada esteja em coma. «Ou a pessoa que está em coma deixou de alguma forma determinado o seu desejo, e há alguém que se constitui como procurador – isto partindo do princípio de que o quadro legal existe, evidentemente» ou então nem se coloca a questão.
Na visão do médico psiquiatra, indispensável é também que a escolha da morte medicamente assistida deva ser expressa de forma reiterada pelo doente. «Vou fazer 69 anos, se calhar estou a ficar muito cauteloso e muito rígido, mas estamos literalmente a falar de um caso de vida ou de morte e, portanto, não nos podemos arriscar a que seja uma decisão tomada de forma precipitada», defende.
Para Júlio Machado Vaz, outro dos requisitos «obrigatórios» e que em nenhuma circunstância deverá ser facultativo é «a realização de um exame ao estado psicológico da pessoa».
Os critérios dos partidos
Os projetos de lei que serão discutidos e votados no Parlamento na próxima terça-feira debruçam-se todos sobre o mesmo tema, mas têm critérios diferentes, a começar pela denominação: se PAN e PEV usam a expressão «morte medicamente assistida», já o BE opta por «morte antecipada» e o PS escolhe «eutanásia».
Nomes à parte, existem outras diferenças relevantes entre os documentos: o BE, o PAN e o PEV, por exemplo, admitem as duas formas de morte assistida – eutanásia e suicídio assistido –, enquanto o PS não se pronuncia quanto à segunda. O partido distingue-se dos restantes por admitir que a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde fiscalize o processo e possa suspendê-lo. E se, para os bloquistas, o pedido do doente tem de ser reiterado até cinco vezes, já o PEV propõe que o seja até quatro. Diferenças à parte, resta esperar para ver se a discussão prosseguirá para a especialidade.