O inspetor tributário Paulo Silva, que ficou conhecido por deter José Sócrates no aeroporto de Lisboa, fez esta semana uma sugestão que aparentemente seria do interesse da ‘geringonça’, num momento em que os partidos que sustentam o Governo clamam por novas armas para combater a corrupção: criar «uma Polícia Tributária». Mas o Governo foge do assunto como o diabo da cruz. E o líder do sindicato dos inspectores do Fisco diz que o discurso anticorrupção do Governo «não passa de uma falácia».
Para o homem que tem feito parelha com o Ministério Público (MP) nos casos judiciais mais mediáticos, o desafio passa por formar, dentro da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), uma unidade policial autónoma, de forma a fazer face ao crescente número de processos de inquérito em que o Fisco tem um papel ativo juntamente com o MP. A sugestão foi feita por Paulo Silva durante a sua intervenção no 3º Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais e Aduaneiros, que terminou na quarta-feira, no Porto.
«[Com] a quantidade de informação que hoje em dia temos na AT, muita dela tratada mecanicamente de uma forma automática, vão começar a sobrar meios para podermos atuar dentro da inspeção tributária noutros moldes, ou seja, passar de um procedimento inspetivo tradicional para uma atuação que implica a recolha de prova e de elementos para fazer um trabalho eficiente e eficaz no quadro de uma inspeção tributária que se baseia muito a nível de processo criminal», explicou o inspetor tributário, citado pelo Público.
Amadeu Guerra realça papel fundamental do Fisco
Atualmente, a AT está dividida em duas áreas: as direções de finanças/alfândegas e os serviços centrais. A proposta deste inspetor da Direção de Finanças de Braga passa pela criação de uma terceira área, que seria subdividida em unidades regionais. Paulo Silva defende ainda que essa Polícia Tributária deveria permanecer sob a alçada do Ministério das Finanças, aproveitando «todas as sinergias, todos os conhecimentos que [lá] existem», e não sob a supervisão do Ministério da Justiça, como acontece com a Polícia Judiciária.
O diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Amadeu Guerra, que também interveio no congresso, preferiu não abordar esta questão, mas realçou o papel fundamental que o Fisco tem tido nas investigações: «A AT deve fazer um caminho de compatibilização das funções operacionais no âmbito da inspeção tributária com as preocupações da investigação criminal», disse.
O SOL questionou os ministérios da Justiça e das Finanças para perceber a sua abertura a este assunto, mas ambos preferiram não se pronunciar. E Nuno Barroso, o rosto do Sindicato dos Inspectores do Fisco, vai directo ao assunto: «Há 10 anos que o nosso caminho tem sido o de criar uma polícia tributária. Actualmente o Governo tem um discurso em que dá prioridade ao combate à fraude e evasão fiscal. Pelos vistos, não passa de uma falácia».
‘Vou fazer diligências com a minha viatura’
Na medida em que os elementos da Autoridade Tributária são os principais protagonistas do combate à fraude fiscal, Paulo Silva considera que a nova estrutura que propõe tem de ser equiparada a um órgão de polícia criminal (OPC).
E adianta que não faltam na casa meios humanos, mas estão subaproveitados: existem 700 inspetores que não trabalham neste momento na área da investigação que poderiam ser colocados nesta estrutura.
Para além disto, esta nova polícia teria de ser dotada de instrumentos iguais aos dos outros OPC, nomeadamente em termos de viaturas, para não acontecer o que o inspector realçou na sua intervenção: «O funcionário tem de colocar os seus próprios meios» para trabalhar. E utilizou até o seu caso para exemplificar o estado a que as coisas chegaram na AT: «Vou com a minha própria viatura» fazer diligências, revelou.
Durante o congresso, Paulo Silva preferiu não falar sobre os megaprocessos em que esteve envolvido, mas o seu currículo fala por si. Não é por acaso que no DCIAP é conhecido como ‘O Carola’, pois é o ‘cérebro’ por trás de casos como o BPN e a Operação Marquês.
O homem dos megaprocessos
O seu primeiro megaprocesso foi a Operação Furacão. Em 2003, as autoridades britânicas enviaram uma participação às estruturas fiscais portuguesas sobre movimentações suspeitas: a Calbourn Investments Ltd, empresa sediada em Londres, recebia pagamentos de empresas em Portugal relativos a serviços de «planeamento fiscal» – um termo ‘técnico’ para fuga aos impostos. Paulo Silva foi o único que prestou atenção a esta denúncia e assim começou a Operação Furacão. Os crimes de fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais terão lesado o Estado em mais de 60 milhões de euros.
Depois da Operação Furacão, vieram outros grandes processos, como o caso BPN (que investigou crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influências, e a Operação Monte Branco (que surgiu a partir do caso BPN e investigava a maior rede de fuga ao Fisco e branqueamento de capitais).
Mas aquele que fez com que o inspetor de Braga ganhasse mais notoriedade na sociedade portuguesa foi a Operação Marquês, que investiga um esquema de corrupção que envolve o antigo primeiro-ministro José Sócrates e o antigo líder do BES, Ricardo Salgado. Paulo Silva liderou a operação de detenção de Sócrates, no aeroporto de Lisboa, a 21 de novembro de 2014. Segundo o livro Caso Sócrates – O Julgamento do Regime, da autoria de Felícia Cabrita e Joaquim Vieira, o inspetor tributário tinha noção da importância daquele momento: «Nós hoje vamos fazer História», comunicara antes à sua equipa. E o episódio é descrito assim:
«[Sócrates] percorre, imperturbável, toda a manga. No fim, está um grupo de homens parados, em pé – dois da AT, três da Alfândega e os agentes da PSP –, que, com o olhar, perscrutam os passageiros. Fixam-se no indivíduo do dólmen escuro e não têm dúvidas. Interceta-o Paulo Silva, que informa o recém-chegado estar ali aquela equipa para executar a sua detenção e levá-lo até onde ela possa ser formalizada. Se ele quiser cooperar, muito bem; caso contrário, haverá outras formas de concretizar a missão. O viajante não esboça qualquer sinal de resistência ou rejeição. O inspetor tributário dá-lhe uma alternativa: ir para uma sala da Alfândega e oficializar ali a detenção ou fazê-lo mais tarde no DCIAP. O ex-líder socialista escolhe a segunda opção».
Felícia Cabrita e Joana Marques Alves