A 14 de maio de 1995, Manuel Cajuda entregou a baliza do Braga a um menino de 19 anos numa deslocação a Setúbal, na 32.ª jornada de 94/95, que terminou empatada a zero. Vinte e três anos depois, esse menino tornou-se no mais velho jogador a atuar numa final da Taça de Portugal… e ganhou-a, defendendo a baliza do ‘pequenino’ Aves perante o gigante Sporting. Com 42 anos e meio, Quim continua a ser um dos grandes guarda-redes portugueses e não parece estar disposto a terminar a carreira nos tempos mais próximos, mas se o fizer será em glória. E é esse o conselho que lhe deixa o treinador que o lançou na alta roda do futebol nacional.
«Se ele me pedisse opinião, aconselhava-o a acabar, pela idade mas acima de tudo por poder acabar com uma vitória estrondosa», assume Manuel Cajuda ao b.i.. O agora técnico do Académico de Viseu foi o treinador que mais anos passou com Quim (sete, sempre no Braga) e fala com propriedade e «um orgulho e sentimento vaidoso enorme» de um dos seus «meninos». «Ainda bem que tomei a decisão de tirar um extraordinário guarda-redes como era o Rui Correia e lançar um puto que acabou por fazer um percurso fascinante, de que qualquer treinador se orgulha. Foi campeão nacional, campeão europeu de juniores por Portugal (1994) e agora ganhou esta Taça aos 42 anos. Só me resta dizer-lhe obrigado pelo feito histórico», assume o carismático técnico algarvio, que vê o Quim de hoje exatamente como o conheceu nos anos 90: «A capacidade emocional, o controlo das emoções nele é fascinante. Já o tinha quando o lancei, a cara era exatamente a mesma quando fazia uma grande defesa ou quando sofria um golo. Insensível, concentrado, um gestor de emoções acima da média. E alguns defeitos bons, provocados pela enorme humildade.»
Neste ponto, Manuel Cajuda lembra um debate que surgiu no fim da década de 90 e inícios de 2000. «Nessa altura começava a questionar-se se o Quim devia tirar o lugar ao Vítor Baía na seleção e muita gente dizia que não porque o Quim era um guarda-redes baixo. Mas ele e o Vítor Baía tinham exatamente a mesma altura: 1 metro e 84. Só que o Quim não era nada vaidoso, não ligava nada à imagem, equipava-se mal, às vezes parecia que tinha o tronco maior que as pernas. Nas fotografias de equipa descansava sobre uma perna, o que lhe fazia parecer mais baixo. Eu dizia-lhe: ‘Quim, equipa-te melhor. Escolhe outro calção!’ Ele respondia: ‘Mister, eu tenho é de conseguir defender as bolas’. E defendia (risos)! Não era vaidoso, nunca gostou de falar muito, de dar muitas entrevistas. Por essa razão não tinha o marketing de outros. Se o tivesse, se não fosse tão humilde e não aceitasse tudo o que os treinadores decidiam sem se queixar, tinha marcado uma era definitiva na seleção. Mas ele aceitava tudo e não reclamava. Ainda assim, está no grupo dos melhores guarda-redes portugueses de sempre, porque tecnicamente sempre foi muito bom. A par do Armando, que ganhou a primeira Taça de Portugal pelo Braga, o Quim foi o guarda-redes mais importante dos últimos 30 ou 40 anos da vida do clube. Suportou tudo, foi o garante das nossas vitórias. Até pelo seu feitio, merece que toda a gente seja capaz de lhe fazer elogios», salienta Cajuda.
O minhoca metido no seu mundo
Quim fez parte da equipa do Braga que marcou a segunda metade da década de 90 e a primeira da seguinte no futebol português. Nela constavam nomes míticos do clube, como Barroso, Artur Jorge ou José Nuno Azevedo, e todos dizem exatamente o mesmo em relação à sua personalidade. «Eu acompanhei o início da sua carreira, era um dos principais responsáveis por integrar os mais jovens e ajudá-los na ascensão. O Quim – que nós carinhosamente tratávamos por Quinel – era calmo, muito recatado, humilde, apegado às raízes e manteve-se sempre assim. Também acho que pagou caro por ser assim em termos de seleção: era um minhoca, como nós dizemos sobre jogadores que têm menos estatuto, menos poder. Acabou por ser afastado da seleção por um jogo onde Portugal foi goleado (2-6 com o Brasil, em 2008), mas sem ele ter qualquer culpa. Mas quando a equipa não quer…», acredita Barroso, icónico médio (e capitão) desse conjunto bracarense.
Luís Filipe, que partilhou balneário com Quim noBraga entre 1999 e 2001 e mais tarde no Benfica, de 2007 a 2010, corrobora essa ideia: «O Quim foi um dos grandes guarda-redes de Portugal nos últimos anos. Em termos de seleção nacional, talvez tenha sido preterido por ser introvertido, isso acabou por prejudicá-lo. Aqueles jogadores mais puxa-saco acabam por se safar melhor. Ele não era assim, não fazia fretes e isso se calhar prejudicou-o.»
Na memória do antigo lateral/extremo direito há uma curiosidade que ainda hoje perdura. «Sempre foi uma pessoa muito reservada, no mundo dele. Um excelente profissional, mas no seu mundo. Acabava o treino e cinco minutos depois já estava a sair do balneário de banho tomado, ainda a maioria dos colegas estava a chegar! Era o feitio dele. No Benfica já era mais sociável, ainda que continuasse tímido», recorda.
Artur Jorge, presença assídua no centro da defesa do Braga entre 1992 e 2004, e Ricardo Rocha, que partilhou o balneário com Quim no Braga (de 2000 a 2002), no Benfica (de 2004 a 2007) e ainda na Seleção, lembram um jovem de «personalidade pacata, tranquilo, muito virado para a família e de fácil trato para com os colegas». «Depois, com o estatuto, assumiu também um papel importante no balneário e acabou por se impor no Benfica, mas nunca tirou os pés da terra, manteve-se constante na sua humildade», considera Artur Jorge, atual treinador dos juniores C do Braga.
Para José Nuno Azevedo, essa «simplicidade e humildade» são facilmente identificáveis na decisão que Quim tomou em 2012/13, quando terminou a segunda passagem pelo Braga e aceitou ir para o Aves, então na II Liga. O antigo lateral-direito dessa equipa e hoje comentador na Rádio Renascença lembra um «homem simples, pouco expansivo mas um guarda-redes de grande qualidade, visível assim que subiu dos juniores».
Fumar às escondidas? Não vale a pena
Manuel Cajuda lembra outra curiosidade relacionada com Quim: quando subiu aos seniores, ainda com 18 anos, já fumava. «E não era pouco (risos)! Na altura descobri que ele fumava às escondidas. Disse-lhe: ‘Não precisas de fazer isso, porque eu não te vou bater’. Não era bom, claro que um desportista não deve fumar, mas era preferível fazê-lo à minha frente do que ir para a ilegalidade! Ele fazia-o porque na altura havia quem dissesse que era uma falta de respeito os jogadores fumarem à frente dos treinadores, mas para mim o conceito de respeito tem mais a ver com outras coisas: o caráter, a personalidade», realça o técnico.
O hábito manteve-se durante muitos anos, mas entretanto já lá vai. «Quando joguei com ele no Benfica ainda fumava, mas entretanto já deixou. É mais uma prova da enorme força de vontade que sempre teve», conta Luís Filipe. Barroso, que partilhava a mesa ao almoço nos estágios com Quim, lembra esse vício e conta outra história curiosa: «Ele não bebia álcool. Ele e o Tiago. Mas eu disse-lhes logo: ‘Se não bebem, passam a beber (risos)’. Era Muralhas, branco. Mas depois acabava eu a beber o copo dele e o Zé Nuno a beber o do Tiago (risos)!»
Além do gosto no seu cigarrito, havia quem apontasse outra particularidade a Quim: a de ser mais um jogador de jogo do que de treino – que é como quem diz, não dar o máximo nos treinos. Manuel Cajuda e Barroso concordam parcialmente com essa análise. «Ele era ligeiramente preguiçoso, é verdade. Mas porque tinha uma grande confiança nas suas capacidades», salienta o treinador. «Nalguns treinos não havia muito Quim, aparecia um bocado com sono. Mas eu chateava-lhe a cabeça, dizia-lhe que só com trabalho é que ele podia ir lá. Ainda por cima depois apareceu o Eduardo, que era louco com o trabalho, e o Quim teve de se esforçar. Mas sempre foi um excelente guarda-redes», completa o antigo médio.
Zé Nuno Azevedo garante que «seria impossível chegar aos 42 anos a jogar a este nível se não fosse um bom profissional», mas realça: «O Quim era um talento natural, não precisava de grande trabalho. Há jogadores que precisam de treinar muito para atingir um determinado nível, e ele não precisava. Se calhar, se tivesse trabalhado de forma diferente, hoje já não estava a jogar. Foi esse profissionalismo que lhe permitiu recuperar de uma lesão gravíssima (falhou toda a temporada 2010/11, a primeira no regresso ao Braga após seis anos no Benfica) e sete anos depois estar a ganhar uma Taça de Portugal.» Ricardo Rocha, por seu lado, acredita que essa lesão até pode ter acabado por ser positiva para o amigo. «Se calhar deu-lhe mais força para voltar e mostrar que conseguia continuar ao mais alto nível», indica o antigo central.
Em 2002, uma mancha na carreira: devido a um controlo anti-doping positivo (nandrolona), Quim falhou o Mundial – a suspensão, que durou quatro meses, foi levantada pela Comissão Disciplinar da Liga precisamente dois dias depois de António Oliveira anunciar a convocatória final. O guardião sempre clamou inocência e quem com ele partilhou anos de vivência acredita a 100 por cento nessa versão. «Foi uma farsa enorme que ele superou com sofrimento e humildade, como sempre», diz Manuel Cajuda. José Nuno Azevedo concorda e fala de «mais uma coisa muito estranha» a esse nível em Portugal, lembrando outros casos semelhantes, como o de Kenedy no mesmo ano.
Continuar ou parar? Eis a questão
O feito de Quim encontra paralelo na história do futebol com outros guarda-redes míticos, com Dino Zoff à cabeça – campeão mundial pela Itália aos 40 anos –, mas também Buffon, outro italiano que aos 40 anos mantém todas as capacidades intactas e, acabado de conquistar campeonato e Taça pela Juventus, disse adeus ao clube e ainda não decidiu se vai jogar mais uma época ou pendurar as luvas.
A questão coloca-se também para Quim. Para já, o internacional português foi enigmático ao abordar o tema. «Vou conversar com a minha família e com os responsáveis do Aves, mas neste momento sinto-me bem. Ficou provado hoje que ainda estou em condições para jogar e ajudar a equipa. Quando me sentir que estou ‘a arrastar’, então deixarei», realçou após a conquista do último domingo. Nesse dia, Zé Nuno Azevedo falou com ele e disse-lhe somente: «Termina quando já não sentires que tens o gosto de ir para o treino todos os dias.»
Barroso salienta que a decisão final dependerá sempre do «bom amigo Quinel», mas ressalva: «A qualidade está lá!» Artur Jorge e Luís Filipe concordam. «Mantém as suas competências, está bem e capaz. Do que o ouvi dizer no domingo, ainda que num momento mais de emoção do que racional, acredito que a sua vontade seja a de continuar a jogar. Mas temos de lembrar que a idade vai pesando, as épocas são longas e o desgaste intenso. Se sair agora, sai em grande. É um exemplo para os mais jovens, pela ambição, o gosto pelo que faz, a vontade nos hábitos de trabalho», considera o antigo central. «Acho que vai continuar enquanto se sentir bem, útil. Acho que se deve avaliar um jogador não pela idade mas pelo que fez durante a época, e nesse aspeto provou claramente que merecia fazer mais um ano no Aves», acredita o antigo defesa/extremo, secundado por Ricardo Rocha: «Estou muitas vezes com ele, ainda antes da final da Taça falámos e disse-lhe: ‘Se te sentes em condições, continua! Tens 42 anos? Isso não interessa, nos jogos que fizeste esta época estiveste sempre bem, foste sempre dos melhores e se sentes essa vontade, continua!’ Ele disse que ia pensar.»