Domingos Xavier Viegas, coordenador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra, foi dos primeiros peritos a chegar a Pedrógão Grande no fim de semana da tragédia. Numa entrevista ao jornal i enquanto o fogo ainda lavrava, era perentório: a culpa do que acontecera era de todos, do país. Viria a liderar uma das análises sobre o incêndio que vitimou 66 pessoas, apontando responsabilidades concretas a entidades como a EDP e a Ascendi, que não tinham cuidado devidamente da limpeza das faixas de proteção da rede elétrica e das estradas. Mas também alertou que não havia um Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios em Pedrógão Grande, o que colocava menos pressão sobre as empresas responsáveis. Um ano depois, diz que o objetivo não foi apontar o dedo, mas admite não estar esperançado que a Justiça tenha um papel de responsabilização e lamenta que a mudança de atitude em termos de prevenção não seja ainda generalizada. Espera um verão mais tranquilo que o de 2017 e lamenta que pouco de objetivo tenha sido feito para melhorar as condições de vida no Interior, onde os fogos do ano passado puseram à vista de todos um outro país.
Um ano depois de Pedrógão, o país está melhor preparado para prevenir e combater os incêndios?
Em alguns aspetos julgo que sim, pelo menos em relação àquilo que é essencial, que é a proteção das pessoas. E mostrar às pessoas a importância que tem cuidarem da envolvente das suas casas e assegurarem a limpeza. Tal como aconteceu no ano passado, as pessoas terão de admitir que em muitas situações poderão não ter o apoio de forças exteriores como os bombeiros e a Proteção Civil. Têm de bastar-se a si próprias, saber o que fazer, preparar-se e tomar as opções corretas.
Em outubro, o então secretário de Estado Jorge Gomes foi criticado por dizer que as pessoas não podiam ficar à espera dos bombeiros. Esse raciocínio não implica, ainda assim, uma capacidade de resposta mais célere? Do ponto de vista de prontidão terá havido melhorias?
Creio que houve. Não é que haja uma diferença abissal, mas é muito notório o reforço do Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS): incorporaram novos militares, o que penso que poderá ser significativo. Há uma redistribuição destas forças pelo país de modo a que possam ter uma intervenção mais rápida, o que seguramente também é muito importante. O que temos infelizmente no país é que todos os anos há um grande número de ocorrências e se esses fogos não forem prontamente combatidos acabam por se transformar em grandes incêndios e depois por mais meios, recursos e aviões, torna-se impossível ou muito difícil travar o fogo. Muitas vezes só quando as condições meteorológicas mudam, quando vem chuva, é que os incêndios param.
Já tem sido dito que este ano o verão poderá não ser tão exigente e o país está longe do cenário de seca que se vivia há um ano. Há mesmo razões para o país estar mais tranquilo ou é demasiado otimismo?
Pessoalmente eu estou mais otimista relativamente às condições meteorológicas do ano passado. No ano passado viveu-se uma seca muito prolongada. Este ano, no inicio, continuou a haver falta de chuva mas nos últimos meses tem estado a chover. Isso é bom, embora também acarrete um maior crescimento da vegetação.
Há quem diga que, nesse aspeto, pode estragar a limpeza feita.
Isso é verdade, mas o solo está mais húmido e isso é favorável. Quando houve o incêndio de Pedrógão o solo, a vegetação, estava tudo muito mais seco.
Começa a haver sinais, ainda assim, de que podem vir aí dias de muito calor. Perante essa mudança do tempo, são expectáveis fogos de grande dimensão?
Nas próximas semanas não esperaria incêndios muito graves, a não ser, claro, que aconteça algum fenómeno excecional. Mas em condições normais não estaria à espera de incêndios muito graves e assim teria passado o pior do verão. Poderá ser, na minha opinião, um ano relativamente tranquilo e espero que assim seja.
As pessoas continuam a descrever que o fogo em Pedrógão Grande foi algo fora do comum, pela rapidez, pelo barulho – quase como que explosões no meio da floresta – e ter ficado de noite, escuro. Foi mesmo algo fora do comum ou será, em alguns casos, o trauma a falar?
Foi claramente uma coisa fora do comum. Quer Pedrógão quer outubro foram fenómenos excecionais. Não únicos, no sentido em que possamos dizer que não se podem repetir ou que algumas circunstâncias não possam voltar a ocorrer, mas foram fenómenos completamente fora do comum pelo menos para aquilo a que estamos habituados e de que há registo. O que se verificou tanto em Pedrógão como em outubro foi uma situação meteorológica excecional. No caso de Pedrógão, tivemos um dia com temperaturas muito altas e próximo do local onde houve aqueles dois focos de incêndio houve além disso a aproximação de uma trovoada, que é um fenómeno que ainda não está bem compreendido. Os próprios meteorologistas não estão familiarizados com esta interação e por isso Pedrógão está a ser para nós um caso de estudo.
Mesmo hoje ainda não é totalmente clara a conjugação de fatores?
Diria que talvez haja uma compreensão melhor mas na altura não havia capacidade de antecipar o que iria acontecer. Foi uma surpresa que teve essa componente da trovoada e o facto de ter havido essa convergência de dois focos de incêndio.
Foi o vosso relatório que alertou para isso: até então pensava-se que tinha havido apenas um incêndio a deflagrar em Pedrógão Grande, na zona de Escalos Fundeiros, e não havia qualquer registo oficial sobre o fogo de Regadas, que declararam ter sido menosprezado.
Sim, muitas entidades desconheciam. Claro que os bombeiros sabiam que havia um problema ali ao lado, mas não tinham meios para acudir. Esse desenvolvimento quase simultâneo de dois incêndios foi o pior em termos de ocorrência. O incêndio de Góis começou praticamente à mesma hora, afetou quase a mesma área, mas não teve a mesma consequência. O que temos estudado ao longo dos últimos anos, também com base em experiência no estrangeiro, é que quando há este processo de encontro destes dois incêndios se geram fenómenos muito graves e violentos.
Como se explica dois fenómenos excecionais no mesmo ano, em junho e outubro? É azar?
É uma coincidência muito grande. Nos incêndios de outubro, que afetaram muito mais área, tivemos condições meteorológicas muito diferentes e foi claramente o vento que precipitou aquilo. Foi um vento fora do comum, quase ciclónico. Isto aliado ao facto de as pessoas terem começado a fazer queimadas para se livrarem da vegetação acumulada fez com que em muitas ocorrências se tivesse perdido o controlo. Mas se uma coisa fica clara é que estas coisas podem acontecer e o que não podemos permitir é que haja perda de vidas.
No estudo que fizeram sobre Pedrógão concluíram que a falta de limpeza de bermas da estrada e até das zonas envolventes de cabos de alta tensão teve um papel determinante, algo que estaria a cargo de entidades como a EDP ou a Ascendi. Espera que, um ano depois, já tivesse havido uma acusação no inquérito aberto logo após a tragédia?
Nós ao levantarmos essas questões e apurarmos esses factos objetivos não o fazemos com a intenção de apontar o dedo ou de culpar alguém. Isso compete às autoridades e entidades que têm essa função. Agora, esperava pelo menos que houvesse uma correção e uma mudança de atitude, que me parece haver em alguns casos, embora não de forma generalizada.
Os autarcas queixam-se de que há muitos terrenos que não foram limpos, até bermas de estrada e de caminhos-de-ferro. Mesmo a ‘estrada da morte’ tem as bermas com vegetação.
Sim, é verdade, foi feito algum trabalho logo depois, houve esse rebate de consciência. Não está é talvez a ter o alcance que seria desejável.
Não lhe cabendo esse julgamento mas tendo em conta o historial dos incêndios no país, com prejuízos avultados todos os anos, a ausência de uma Justiça mais célere não pode até contribuir para desresponsabilização? Até nos casos de negligência mais do quotidiano…
Há processos em curso e que envolvem as entidades que foram referenciadas, não faço ideia se estão para acabar ou se ainda vão demorar. Agora, a experiência que temos do modo de funcionar da Justiça portuguesa não nos deixa muito esperançados que se aproveitem estas circunstâncias e ocasiões para, de um modo muito claro, chamar a atenção destas entidades e de as responsabilizar naquilo que têm de participação e culpabilidade em relação aos factos que ocorreram. O que posso dizer é que noutros países estes processos decorrem bem mais depressa e as conclusões são retiradas mais rapidamente.
Das muitas cartas e testemunhos que reuniram enquanto prepararam o relatório que vos foi pedido pelo Governo, recolha que fizeram de novo para o trabalho que está em curso sobre os fogos de outubro, há algum relato ou imagem que lhe tenha tocado particularmente?
O contacto com os familiares das vítimas foi muito impressionante. São histórias, vidas, problemas que ali ficaram e marcas que dificilmente sairão. Diria que uma coisa que me tocou foi ter encontrado como que um outro país, o que continua a ser um bocado evidente nesta investigação que estamos a fazer dos incêndios de outubro. De facto, temos uma parte da nossa sociedade que tem recursos, boas oportunidades e depois outra parte que tem muito menos condições de vida, sendo cidadãos nacionais como os outros. O país nos últimos anos pouco fez para melhorar a vida destas pessoas para os encorajar a manterem-se no interior e o mais triste é que, passado um ano, continuo a ver praticamente a mesma atitude. Muito pouco se fez de objetivo e de diferente em relação ao interior.
Nos últimos tempos um movimento cívico pediu mais condições.
Sim, mas de resto nada. E o que vemos é que pessoas jovens que até estariam dispostas a ficar ali estão a ficar cansadas e a pensar em sair. A seguir à perda de vidas, esta perda de interesse e de pessoas no interior talvez possa ser a pior consequência dos fogos do ano passado.
Escrevem-lhe a dizer isso?
Sim. Umas pessoas desistiram logo. Outras tentaram aguentar mas vão-me dizendo agora que o tempo está a passar e está a esgotar-se a sua paciência.
Temos relato de pessoas que até há pouco tempo viviam em tendas.
Sim, é algo difícil de perceber.
Também teve esses relatos?
Sim. Mas também há muitos oportunismos. Enquanto nos consta que há pessoas que tiveram casas de segunda habitação reconstruídas como se fossem de primeira, outras perderam casas de primeira habitação e não estão devidamente alojadas. E tudo isto é muito pouco visível.
Para alguém que tem estudado incêndios florestais toda a vida, 2017 marca definitivamente uma mudança na forma como o país encara o problema ou parece-lhe que um verão mais brando este ano pode fazer cair no esquecimento tudo o que se aprendeu?
Penso que foi algo que marcou o país e uma boa parte da sociedade não irá esquecer. Por mais benignos que sejam os verões, por mais coisas que se façam, creio que não deixaremos de acompanhar este processo e de avaliar o comportamento de todas as entidades. Admito que em algumas pessoas, até em responsáveis que já mostraram antes e depois pouca sensibilidade, que isso possa ser assim, mas estou convencido que a maioria das pessoas não esquece.
Está a referir-se a alguém em particular?
Refiro-me de um modo geral à classe política, decisores e autarcas. Estou convencido de que o povo não vai deixar passar isto em claro.
O vosso estudo de outubro já foi entregue?
Pedimos um prazo de oito meses. É um trabalho que está em curso.
A ministra da Administração Interna Constança Urbano de Sousa e o secretário de Estado Jorge Gomes viriam a ser substituídos apenas depois dos fogos de outubro. Politicamente podia ter havido uma decisão mais cedo, depois de Pedrógão?
Talvez. Não tenho capacidade para me pronunciar sobre política a esse nível mas creio que pelo menos podia ter havido alguma mudança de atitude por parte dos responsáveis políticos e creio que isso só aconteceu muito tarde.
Na análise que estão a fazer sobre os fogos de outubro, já concluíram se aquele desfecho trágico poderia ser evitado?
É muito difícil dizer. As circunstâncias foram muito excecionais mas talvez se pudesse ter feito algo para mitigar os efeitos.