Iémen: ofensiva no meio da fome

Conselho de Segurança rejeitou o pedido do fim imediato dos combates em Hodeida, apesar dos alertas de que a ajuda humanitária pode parar.

Um quarto de milhão de pessoas podem estar à beira de perder tudo na cidade Hodeida, porto vital para um país como o Iémen, onde a guerra deixou milhões de pessoas entregues à fome e à cólera. Sem a ação das Nações Unidas, as forças apoiadas pela Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos podem continuar a sua ofensiva contra as posições dos rebeldes huthis cidade-portuária do Mar Vermelho.

Lise Grande, a coordenadora da ONU para a ajuda humanitária no Iémen, diz que «até 250 mil pessoas poderão perder tudo, até mesmo as suas vidas». Mas apesar dos avisos, o Conselho de Segurança conseguiu apenas uma declaração a «incitar todas as partes a cumprir as suas obrigações de acordo com a lei internacional humanitária». Muito pouco para travar «o grande perigo de um prolongado cerco e guerrilha urbana», como avisou David Miliband, diretor executivo do International Rescue Committee. Adama Dieng, conselheiro especial da ONU para a Prevenção do Genocídio, lembrou que «Hodeida é um canal vital para a distribuição de ajuda e os ataques da coligação podem matar pela fome muito mais pessoas a longo prazo ao danificarem infraestruturas civis».

Ao fim de três anos de guerra civil, com o país transformado num Estado caótico ou uma coleção de mini-Estados dentro de um grande Estado que não funciona, a ofensiva das tropas apoiadas por sauditas e emiradenses contra o porto de Hodeida nos últimos dias veio fazer recrudescer a escala do conflito «numa guerra que não tem estado muito ativa no último ano», como diz ao SOL Yezid Sayigh. Para este investigador do Carnegie Middle East Center em Beirute, «não há como chegar a uma vitória decisiva, nem a uma solução política duradoura que seja aceite pelos principais líderes».

Paul Sullivan, analista do MédioOriente na Universidade de Defesa Nacional em Washington, disse à Bloomberg que «tomar o porto e a cidade pode cortar os fornecimentos aos principais grupos rebeldes e obrigar às negociações, porém, a guerrilha urbana numa cidade com este tamanho pode revelar-se cara e demorar mais tempo do que as previsões de alguns».

É improvável que os rebeldes consigam manter o controlo da cidade e ontem já havia relatos de que as forças huthis estavam a recuar na zona do aeroporto para posições defensivas. O apoio norte-americano, nomeadamente através de informação de inteligência, às forças do governo iemenita no exílio, apoiadas pela Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, tem permitido que estas sejam capazes de escolher melhor os seus alvos no terreno. Mesmo assim, a ofensiva, que começou na quarta-feira, não tem avançado com a velocidade prevista, naquilo que tem sido um hábito nas previsões desde que sauditas e emiradenses decidiram entrar na guerra contra os rebeldes apoiados pelo Irão.
E nem sequer será pela influência de Teerão no conflito, que Riade continua a insistir ser substancial – opinião corroborada pela administração Trump –, mas pela capacidade dos huthis. «O apoio militar iraniano nunca foi muito significativo. O Iémen sempre teve enormes quantidades de armas. O verdadeiro problema para a coligação saudita não são as armas iranianas, mas a experiência e as táticas dos militares iemenitas», explica Sayigh ao SOL.

De qualquer maneira, o impasse na ONUpermite às forças da coligação liderada pelos sauditas ponderar a possibilidade de um ataque direto contra Hodeida. Aviões têm atacado posições dos rebeldes, mas a cidade continua a funcionar normalmente, tal como o porto. A ideia é evitar que a infraestrutura portuária seja atingida, aumentando ainda mais as agruras do povo iemenita.

De acordo com a ONU, cerca de 25 milhões de pessoas estão sem acesso a qualquer ajuda humanitária. No entanto, com os serviços de saúde destruídos ou fragilizados e a braços com uma epidemia de cólera, o Iémen não parece ainda ter batido suficientemente no fundo para que a comunidade internacional se resolva a atuar.

«A depauperação do povo iemenita é descomunal: 22 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária, oito milhões estão em risco de inanição, 50 mil morreram o ano passado de cólera e de doenças relacionadas com a cólera», contou Milliband à BBC Radio 4. 

A ONU garantia ontem, através de Lise Grande, que «dezenas de funcionários da ONU estão na cidade de Hodeida a ajudar a distribuir comida, água e serviços de saúde». A estimativa é que haja 600 mil civis na cidade, «muitos deles dependentes de assistência para sobreviverem».

Há semanas que as equipas no terreno se preparavam para a ofensiva, juntando, de acordo com Lise Grande, 63 mil toneladas de alimentos, dezenas de kits de emergência, suplementos de nutrição, água e combustível. Um navio da ONU atracou no porto na quarta-feira para descarregar alimentos, enquanto outros dois se esperam nos próximos dias.

*Cláudia Santiago