O Ministério Público quer que Carlos Silva e Daniel Proença de Carvalho sejam investigados no âmbito do caso Fizz. O anúncio de que seria extraída uma certidão do processo em que o ex-procurador Orlando Figueira é suspeito de ter sido corrompido por Manuel Vicente foi feito ontem, durante as alegações finais e poucas horas depois de a Procuradoria-Geral da República ter confirmado o envio para Angola da parte que respeita ao ex-vice-Presidente daquele país.
«Evidentemente que até à leitura do acórdão vou pedir a extração de uma certidão contra pessoas que foram citadas neste julgamento e os senhores terão conhecimento dessa certidão», revelou Leonor Machado
A leitura do acórdão do julgamento que decorreu em Lisboa e que tinha como arguidos, além de Orlando Figueira, o antigo advogado do estado angolano Paulo Blanco, e Armindo Pires, homem de confiança de Vicente, está marcada para 8 de outubro.
MP pede penas suspensas
Na quinta-feira, primeiro dia de alegações finais, a procuradora Leonor Machado pediu para o antigo magistrado uma pena de prisão de até cinco anos suspensa por corrupção e por branqueamento (se o coletivo entender existir este último crime) e a proibição de exercer funções públicas durante cinco anos. Quanto ao arguido Paulo Blanco, antigo advogado do Estado angolano, o MP quer que seja condenado por corrupção ativa, também com pena suspensa. Para Armindo Pires não foi pedida qualquer condenação.
Durante o julgamento, o MP deixou assim cair o crime de falsificação de documento.
Para o Ministério Público ficou ainda demonstrada a participação do banqueiro Carlos Silva neste alegado esquema (embora considere que sempre em representação de Vicente), tendo sido ainda feita referência pela procuradora à intervenção de Daniel Proença de Carvalho na cessação do contrato de trabalho com a Primagest.
Nessa primeira sessão, as alegações do Ministério Público ficaram ainda marcadas pelo elogio ao jornalismo de investigação, justificando assim a opção de usar peças jornalísticas para estabelecer ligações entre a entidade Primagest (que contratou e pagou a Orlando Figueira) e a Sonangol, petrolífera de que Manuel Vicente foi presidente. «As democracias devem muito ao jornalismo e se este não deve ser considerado prova em tribunal, deve ser valorado quando se trata de [revelar] sócios de fachada ou testas de ferro para encobrir os reais proprietários», disse, concluindo: «Se a investigação se socorreu de alguma imprensa de referência foi porque são fontes que devem ser tidas em conta».
A procuradora Leonor Machado lembrou ainda que, quando saíram tais notícias, «os visados não recusaram ligações» à Sonangol.
Além disso, também foi enfatizado pela procuradora a plausibilidade do encontro entre Orlando Figueira e Carlos Silva no hotel Trópico em 2011, aquando da Semana da Legalidade, facto negado pelo banqueiro.
O puxão de orelhas
Leonor Machado terminou as suas alegações na quinta-feira dizendo que Orlando Figueira teve um grau de culpa mais intenso do que o de Blanco, deixando duras críticas ao comportamento do arguido.
«Foi responsável pela prisão de várias pessoas que sofreram com a crise e relativamente às quais foi mais difícil ser sério. É um privilegiado por ser mais consciente e estar mais habilitado nas matérias em que está acusado», atirou.
A magistrada disse ainda que nenhum dos arguidos carece de ressocialização, referindo que nos crimes de colarinho branco os responsáveis são híper adaptados e não inadaptados, são «pessoas que jogam com as regras do sistema».
‘Inversão do ónus da prova’
Depois das alegações do MP, foi a vez de a advogada Ana Rita Relógio, que representa Paulo Blanco, dizer que neste julgamento os arguidos foram forçados a provar a sua inocência: «Assistimos a uma verdadeira inversão do ónus da prova». Respondendo à procuradora sobre a importância do jornalismo, a advogada afirmou que o que foi feito neste caso foi «um googlar para dar sustento a uma denúncia recebida pelo MP».
Referindo que a acusação está cheia de falsidades, Ana Rita Relógio levantou ainda suspeitas sobre as procuradoras que conduziram esta investigação: «O MP não o fez por razões que não sabemos quais são, esperamos que um dia venhamos a saber as razões».
A Emoção de ‘um anjo caído do céu’
Mas a defesa com mais emoção foi a da defensora pública que defende o antigo procurador Orlando Figueira. Carla Marinho não conteve as lágrimas durante as alegações finais. Logo no início, Carla Marinho garantiu não ter existido qualquer acordo entre Orlando Figueira e outros intervenientes com vista ao arquivamento dos processos de Vicente e lembrou que a procuradora Teresa Sanchez, que assinou com Orlando Figueira tais arquivamentos, foi avaliada positivamente por esses trabalhos: «Na avaliação feita a Teresa Sanchez não foi feito nenhum reparo, aliás foram feitos diversos elogios».
E ainda se insurgiu mais contra a tese da acusação e as omissões ao nome da outra magistrada que assinou os arquivamentos com Orlando Figueira: «Como pode a dra. Teresa Sanchez dizer em tribunal sob juramento que apesar de ter assinado o despacho não o leu?»
Durante duas hora e meia de alegações, a advogada sugeriu também que a conduta do banqueiro Carlos Silva deverá ser analisada pelo Banco de Portugal e pelo Banco Central Europeu. Isto porque o presidente do Banco Privado Atlântico e ex-vice-presidente do BCP tem sido apontado pelas defesas de Figueira e do arguido Paulo Blanco como o verdadeiro responsável pelo convite ao ex-procurador para trabalhar no privado (na sociedade que viria a pagar os valores considerados pelo MP como ‘luvas’, parte dos quais através de uma conta em Andorra com o objetivo de evitar o fisco).
A defesa lembrou ainda que, tendo em conta os conhecimentos de Figueira, se este quisesse ocultar a parte do dinheiro que recebeu na conta de Andorra não a teria aberto em seu nome e no do filho: «Se estivesse de má fé teria optado por uma conta numérica ou adquirido uma sociedade offshore».
Carla Marinho terminou as suas alegações com um momento emocionado a agradecer ao coletivo de juízes por ter libertado Orlando Figueira, que esteve privado de liberdade durante dois anos.
E a sua dedicação acabou por ser mais tarde agradecida pelo arguido, que a considerou mesmo «um anjo que caiu do céu».
Orlando Figueira, que começou por reclamar a sua inocência, disse ainda estar disponível para «ir a Angola testemunhar no processo contra Manuel Vicente»: «Nós não temos nada a ver um com o outro!».
O antigo magistrado, que insistiu ser um homem ingénuo, terminou a olhar para os juízes para deixar um último recado: «Eu confio na justiça e neste coletivo, apesar dos erros da investigação».
‘Isto já devia ter morrido’
Ontem, ainda antes do almoço, o advogado Rui Patrício, que além de representar Manuel Vicente, neste processo defende Armindo Pires, começou a alegar. E o advogado foi cáustico nas críticas ao Ministério Público, dizendo até não invejar a posição em que a procuradora de julgamento está: «A senhora procuradora faz-me lembrar aquelas pessoas que são chamadas a ouvir um testamento, porque herdaram um imóvel, e quando vão ver é um monte de escombros. Não invejo a posição em que se encontrou».
Afirmando que o caso Fizz é um processo «sem ponta por onde se lhe pegue», Rui Patrício deixou claro não ver na acusação nada sobre o envolvimento do seu cliente em factos que possam consubstanciar crimes e lamentou que, além das procuradoras do MP que investigaram o caso Fizz, a juíza de instrução que pronunciou Armindo Pires não o tenha percebido.
«Ele não interveio em momento nenhum, ele não deu emprego ao dr. Orlando Figueira, não trabalha em nenhum banco, ele nem lhe transmitiu nada. Não há factualidade imputada», enfatizou o advogado, demonstrando com emails que constam no processo que na altura em que a acusação diz ter sido celebrado o acordo entre os alegados corruptores, Armindo Pires nem sequer os conhecia.
«Isto devia ter morrido na instrução. Não era preciso um grande trabalho para concluir que Armindo Pires não tinha nada a ver com isto, desapontou-me a instrução», afirmou.
Quanto a esta fase de julgamento, concluiu que mesmo que o coletivo desse por provada toda a acusação não podiam condenar Armindo Pires, dado não existir nesta qualquer facto contra o seu cliente.
«O princípio do fim desta acusação foi tirar o BPA, porque aí a acusação ruiu como um castelo de cartas», continuou Rui Patrício defendendo que não se pode considerar ter havido vários crimes a envolver o Banco Privado Atlântico – desde a não comunicação das contas ao Banco de Portugal à atribuição de um crédito fraudulento a Orlando Figueira – e esta entidade presidida por Carlos Silva ter ficado de fora.
O advogado reiterou ainda que «o salto que foi dado da Primagest para a Sonangol não é um salto lógico, é um salto no escuro».
E depois de admitir que também tem dúvidas sobre a contratação de Orlando Figueira para o privado, acrescentou ter pelo menos uma certeza: «Tenho absoluta certeza que quem contratou o dr Orlando Figueira foi o dr Carlos Silva ou alguém com ele relacionado, sob pena de tudo isto ser uma loucura. Porquê? O que tinha em mente? Aí entram as especulações».
Lembrando as personalidades angolanas que Figueira mais investigou, como o caso de Álvaro Sobrinho, Rui Patrício disse que para perceber ao certo algumas motivações dos angolanos era preciso conhecer a realidade e saber as amizades e inimizades.
O advogado que usou um powerpoint e um apontador a laser para desmontar detalhes da investigação acabou as suas alegações com um slide em branco, dizendo que era assim que via esta acusação.
Caso chega à justiça de Angola
Num comunicado enviado ontem às redações, a Procuradoria-Geral da República confirmou que «na sequência de decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, o Juízo Central Criminal da Comarca de Lisboa remeteu à Procuradoria-Geral da República certidão digital do processo respeitante a Manuel Vicente».
O gabinete de Joana Marques Vidal explicou ainda que a PGR, enquanto autoridade central para a cooperação judiciária, «enviou já à Procuradoria-Geral da República de Angola a referida certidão».
Na próxima semana será enviada para Luanda a certidão em suporte de papel, «a qual, atenta a respetiva dimensão, só agora foi entregue ao Ministério Público» – tem 49 volumes (33 de documentos produzidos até 22 de janeiro e 16 volumes de apensos).
A acusação do DCIAP
No âmbito da Operação Fizz, Manuel Vicente foi acusado de um crime de corrupção ativa, um de branqueamento de capitais e um de falsificação de documentos. Já o ex-procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) Orlando Figueira foi acusado por corrupção passiva, branqueamento de capitais, violação de segredo de justiça e falsificação de documento. Foram ainda acusados o advogado Paulo Blanco e Armindo Pires, homem de confiança de Manuel Vicente.
Em causa, para o Ministério Público, estão alegados pagamentos do ex-vice-presidente de Angola ao magistrado português (cerca de 760 mil euros), para que este acelerasse arquivasse dois inquéritos que corriam contra si – um dos quais ficou conhecido como caso Portmill.
Logo após o início do julgamento, o coletivo de juízes decidiu separar a parte relativa a Manuel Vicente.
Banqueiro sem idoneidade?
O SOL apurou, entretanto, que o Banco de Portugal está a analisar a idoneidade de Carlos Silva para o exercício de cargos de administração na banca. O banqueiro luso-angolano, que já foi afastado da administração do Millennium BCP, faz parte das listas dos órgãos sociais do BPA-Europa, para novo mandato como Presidente. O Banco de Portugal ainda não tomou uma decisão, estando a decorrer o prazo para se pronunciar.
No caso do BPA-Europa, não é necessária a validação pelo Banco Central Europeu.
*com Sónia Peres Pinto