Num quotidiano marcado pela ascensão do individualismo e pela aceleração da globalização vertida numa reorganização acelerada do mundo em espaços geoeconómicos com contornos cada vez mais bem definidos (antecâmara de múltiplas manobras defensivas da concorrência no mercado internacional), o futebol vai, por um lado, dando expressão ao reconhecimento da individualidade revelada em múltiplas manifestações simbólicas e, por outro, contornando e adocicando as perdas de identidade histórica que começam a emergir em quase todos os países de todos os continentes.
Em 1979, os revolucionários Iranianos que depuseram o Xá da Pérsia fizeram tudo para ajustar o desporto ao seu programa de ‘Modernização do País’, chegando os mais fanáticos a considerar a profissão de jogador de futebol como absolutamente degradante. Tal como noutras paragens, não foi preciso muito tempo para que as autoridades percebessem o elevado valor político do futebol, uma vez que ele se assume como uma forma substantiva de expressão da sociedade. Além do mais, perceberam também que o futebol alimenta sempre a secreta esperança que se esconde por detrás da possibilidade de os fracos derrotarem os fortes. Esperança tão estimulante e adaptável que, tal como ocorrerá no jogo Portugal – Irão, os respetivos selecionadores, ambos portugueses, a vão colorir em tons distintos.
Esperança, cooperação, confiança e simpatia são gradualmente ampliadas pelo sentimento de partilha, dando expressão coletiva ao orgulho, à felicidade, à paixão, à fidelidade e ao prazer, mas também à raiva, à tristeza, à dor e à resignação, sentimentos que, no futebol, são coados pelo talento, pela inteligência, pelo caráter e pela entrega e gestão do esforço dos protagonistas no jogo. Pelo que, todos os seus protagonistas têm de estar preparados para que o julgamento do seu profissionalismo passe pelo crivo desta complexa fusão de fatores, adicionado ainda pela grelha de um moralismo com regras apertadas, por norma pouco praticadas pelos usuais reclamadores de tais exigências. É um desafio bem pesado.
Mal orientado o futebol pode estimular a idolatria cega, a competitividade individualista, o amor obstinado ao dinheiro, a indiferença pelo outro, sendo por isso muito exigente em matéria da sua ética de gestão. E tal como o futebol sem arte não mobiliza o espetador, a ausência duma gestão competente matará seguramente o negócio, fechando-o na armadilha dos ganhadores a todo o custo e transformando-o em luta de galos que passa então a atrair somente fanáticos, que quando estruturados em claques se elevam facilmente a cumes de grande irracionalidade, expressando-se demasiadas vezes em modulações absolutamente negras do comportamento humano, próprias de uma espécie de etnia chauvinista dominadora de territórios específicos com zonas de fronteira controladas.
O cinismo, a demagogia e o populismo são os vértices da maldade intelectualizada que centrada no futebol tem vindo a dar corpo uma perigosa mescla de ilusões, abrigando e incentivando manifestações da mais pura estupidez materializada em variados tipos de violência. Este é o principal desafio que atualmente o futebol tem que vencer. Não nos podemos iludir quando, nas grandes crises, alguns dos principais incendiários militantes aparecem mascarados quer de anjinhos benfazejos, quer de paladinos da prática das boas maneiras. Talvez ande demasiada gente, com responsabilidades objetivas, a ignorar o sentido do verdadeiro desafio.