Porque é que o Estado português não tem de pagar um cêntimo a Carlos Cruz e restantes condenados no processo Casa Pia que recorreram para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos invocando cinco irregularidades quanto à forma como correu o seu julgamento?
Porque dos cinco pedidos dos requerentes, três dos quais comuns a Carlos Cruz, Ferreira Diniz, Jorge Ritto e Manuel Abrantes, quatro foram chumbados. Ou seja, ao contrário do que maior parte da comunicação social noticia hoje – em linguagem futebolística, num assunto que evoca décadas de abusos sexuais de crianças à guarda do Estado – Carlos Cruz não ganhou: a vitória estrondosa do antigo apresentador televisivo, não passou de uma “derrota” em toda a linha.
E porque é que Sá Fernandes, advogado de Carlos Cruz, apelidou este acórdão como uma vitória revolucionária? Apenas porque é um assunto que só se compreende no universo onírico.
Perante a cegueira dos média que, hoje confundiram o substantivo derrota com vitória, Joana Marques Vidal, viu-se obrigada a recorrer a uma lição de linguística. Damos, na íntegra, a palavra à PGR:
“Caso Pereira da Cruz e Outros c. Portugal (resumo do acórdão do TEDH de 26 de junho de 2018)
Foi publicado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos o acórdão proferido por este Tribunal nas queixas apresentadas por Carlos Pereira da Cruz, João Ferreira Dinis, João Marques Leitão Rito e Manuel Abrantes (arguidos no processo designado “Casa Pia”).
Os quatro requerentes tinham apresentado queixas separadas mas o TEDH juntou-as e decidiu-as em conjunto.
De acordo com a delimitação do objeto feita pelo mesmo Tribunal, estavam em causa as seguintes eventuais violações do direito a um processo justo e equitativo (artigo 6.º da Convenção):
· Impossibilidade de os quatro requerentes confrontarem, na audiência de julgamento, as vítimas com os depoimentos que as mesmas tinham prestado perante a PJ ou o MP no início do processo (artigo 6.º, n.º 1 e 3 d), da Convenção)
Nesta parte, o TEDH considerou, por unanimidade, que não houve violação do direito a um processo equitativo, dando relevo ao princípio da imediação referente à prova em processo penal e tendo em conta que todas as vítimas que se pretendia que fossem sujeitas a essa confrontação estiveram presentes nas inúmeras sessões de julgamento e os requerentes/arguidos tiveram possibilidade de as interrogar e contra interrogar, não se podendo, por isso, concluir que não puderam testar a sua credibilidade.
O Tribunal disse mesmo estar impressionado com o número de sessões realizadas para interrogar e contrainterrogar as vítimas.
· Impossibilidade invocada pelo segundo requerente de interrogar diretamente as vítimas durante a audiência de julgamento (artigo 6.º. par. 1 e 3 d), da Convenção)
Nesta parte, o TEDH considerou, por unanimidade, que a prática seguida, de acordo com a lei interna – segundo a qual as perguntas foram dirigidas às vítimas/assistentes através da juiz presidente do coletivo – não violava a norma da Convenção e que a queixa era manifestamente mal fundada.
O TEDH teve em consideração a circunstância de se tratarem de vítimas de abusos sexuais que eram menores à data dos factos e entendeu que o método seguido não punha em causa a observância dos princípios do contraditório ou da igualdade de armas, na medida em que nada demonstrava que alguma questão sugerida pelo requerente não tivesse colocada aos assistentes e que o mesmo método foi seguido relativamente à acusação e à defesa. Louvou-se, ainda, no acórdão do Tribunal Constitucional, segundo o qual, o princípio do contraditório é respeitado desde que o arguido possa obter – direta ou indiretamente – esclarecimentos dos assistentes e das partes civis.
· Impossibilidade, invocada pelos segundo, terceiro e quarto requerentes, de apresentarem uma defesa efetiva na sequência da comunicação que lhes foi feita pelo tribunal interno, no decurso da audiência de julgamento, quanto à possibilidade de alteração não substancial de factos, estando em causa o tempo que lhes foi concedido bem como as provas que foram admitidas para esse efeito (artigo 6.º, n.º 1 e 3, a) e b), da Convenção)
Sobre este ponto, o TEDH considerou, por unanimidade, que não foi violada a norma convencional, na medida em que não estava em causa a requalificação dos factos, mas apenas modificações relativas a datas e locais precisos da ocorrência dos factos imputados aos requerentes, alterações que, segundo o mesmo Tribunal eram previsíveis em processos desta natureza em que a particular vulnerabilidade das vítimas pode justificar algumas dificuldades de memorização exata de tais circunstâncias de tempo e de lugar.
Por outro lado, considerou razoável o prazo de 20 dias concedido pelo tribunal interno para apresentação de novas provas. Quanto à rejeição ou limitação de algumas delas, considerou que cabe, em princípio, aos tribunais internos apreciar a pertinência dos elementos de prova apresentados aceitando que, dado o elevado número de pessoas que os requerentes pretendiam que fossem ouvidas, tais provas não se revelassem pertinentes ou proporcionadas. Por fim, teve em consideração a circunstância de o tribunal interno ter dedicado mais oito sessões de julgamento para a produção dos novos meios de prova admitidos.
Concluiu assim que os três requerentes que suscitaram essa questão tinham tido o tempo e as condições necessárias para apresentarem a defesa relativamente aos referidos aspetos factuais.
· Recusa do Tribunal da Relação de Lisboa de admitir provas apresentadas pelo primeiro requerente no âmbito do recurso interposto (artigo 6.º, n.º 1 e 3 d), da Convenção)
Sobre este ponto, apenas suscitado pelo primeiro requerente, o TEDH concluiu, por maioria (quatro votos contra três), que houve violação da citada norma da Convenção.
De facto, o requerente solicitara ao Tribunal da Relação, na fase de recurso interposto do primeiro acórdão proferido pelo tribunal de primeira instância, que fossem juntas ao processo cópias de entrevistas dadas por um dos coarguidos (CS), por dois dos assistentes e por duas testemunhas, bem como um livro entretanto escrito por um outro assistente, com o fundamento de que tais documentos revelavam contradições com as declarações que os mesmos tinham feito em julgamento. O mesmo requerente solicitara igualmente ao Tribunal da Relação que ouvisse, pessoalmente, aquele coarguido e aqueles assistentes e testemunhas; alguns deles enviaram também cartas ao Tribunal da Relação em que afirmavam que tinham prestado declarações falsas, que tinham conduzido à condenação de inocentes.
O Tribunal da Relação rejeitou esses pedidos com os seguintes fundamentos: apresentação tardia desses elementos de prova, nos termos do artigo 165.º do CPP; inexistência de qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP (insuficiência da matéria de facto provada, contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova); falta de pertinência desses elementos de prova.
O TEDH recordou alguma jurisprudência sua anterior, de acordo com a qual, quando um tribunal de recurso tem competência em matéria de facto e de direito e deve decidir sobre a culpa ou a inocência de um arguido que invoque não ter praticado o crime por que foi condenado, não deve, em princípio, proferir a sua decisão, sem ouvir pessoalmente o arguido ou as testemunhas que confirmem essa invocação.
Considerou, também, que, apesar de o Tribunal Constitucional ter dito que o meio indicado e que devia ser exercido pelo requerente era o recurso extraordinário de revisão, não era exigível ao requerente seguir essa via, dada a jurisprudência do STJ, à época, ou seja, que a retratação de uma testemunha não devia ser considerada, para o efeito, como novo meio de prova e ainda alguns outros acórdãos do mesmo Supremo Tribunal segundo os quais o falso testemunho determinante para a condenação de alguém só podia constituir fundamento do recurso de recurso de revisão após esse fundamento ter sido reconhecido por decisão judicial.
O TEDH considerou, em especial, que a recusa de audição do referido coarguido bem como da junção e análise dos documentos em que duas das testemunhas se retratavam constituiu uma limitação dos direitos de defesa do requerente, incompatível com o direito a um processo equitativo, visto que os mesmos tinham afirmado ter acompanhado a vítima de abusos sexuais ao local (em Lisboa) onde os factos teriam ocorrido e pelos quais o mesmo requerente foi definitivamente condenado.
O TEDH não deixou, contudo, de acrescentar que a conclusão a que chegou «não significa em qualquer caso que o Tribunal tenha tomado posição sobre a existência de abusos sexuais sobre as crianças da Casa Pia». (parágrafo 231 in fine).
· Duração do processo interno (artigo 6.º, n.º 1, da Convenção)
Por fim, nesta parte, o Tribunal considerou, por unanimidade, que não tinha havido violação do direito a um processo equitativo, na vertente do prazo razoável, e que as queixas eram manifestamente destituídas de fundamento.
Apesar de o processo ter demorado onze anos, dois meses e 26 dias relativamente aos dois primeiros requerentes, onze anos e vinte seis dias relativamente ao quarto, e dez anos, onze meses e seis dias relativamente ao terceiro, o Tribunal teve em consideração as circunstâncias específicas do caso e a enorme complexidade, não só pela gravidade e número de crimes denunciados mas também pelo número de intervenientes.
O Tribunal salientou que as vítimas eram em número de 32, os arguidos eram 7, que foram ouvidas 920 testemunhas, 19 consultores, 18 peritos. Que só um dos arguidos estava acusado por 770 crimes, e que os crimes imputados, no total, aos quatro requerentes ascendiam a 83.
Teve ainda em conta o elevado número de recursos e requerimentos apresentados ao longo do processo, bem como a extensão dos acórdãos proferidos, exemplificando que o acórdão proferido pelo tribunal de primeira instância em 3 de setembro de 2010 tinha 1735 páginas e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 23 de fevereiro de 2012 tinha 3374 páginas.
Assim, dadas as circunstâncias do caso e à luz dos critérios definidos pela sua jurisprudência, o TEDH não considerou excessiva a duração do processo. Referiu também que as autoridades judiciárias tinham conduzido o processo com diligência suficiente.
Conclusão
O TEDH concluiu, por unanimidade, que não houve violação do direito a um processo equitativo relativamente a quatro das cinco questões suscitadas.
Considerou ter havido violação desse direito, apenas no caso do primeiro requerente e relativamente a uma dessas questões, referente ao indeferimento do seu pedido para que, em fase de recurso, o Tribunal da Relação admitisse certas provas.
Por fim, o TEDH disse que esta constatação de violação constitui reparação suficiente dos danos morais sofridos pelo respetivo requerente e não lhe atribuiu indemnização, nos termos do artigo 41.º da Convenção.”