“Sabes aquela do homem que caiu de um prédio de 50 andares?”, pergunta um dos personagens de “O Ódio”, do francês Mathieu Kassovitz, filme de culto dos anos 90. “À medida que cai, vai repetindo sem cessar, para se tranquilizar, ‘jusqu’ici tout va bien’ [até aqui, tudo bem].” A parábola, como todas as parábolas, tem um conteúdo moral: o que importa não é a queda, mas a aterragem.
Angela Merkel está presa numa parábola idêntica. A chanceler alemã que aparecerá hoje na Conselho Europeu estará a dizer para si “até aqui, tudo bem”, enquanto o seu governo de coligação que tanto demorou a concretizar está à beira do colapso. E tudo por causa da questão das migrações.
O último “até aqui, tudo bem” de Merkel poderá ser este da cimeira de Bruxelas (hoje e amanhã), onde a chanceler espera que haja um qualquer plano europeu a 28 que permita ultrapassar a crise política doméstica devida ao tema do asilo e dos refugiados – algo que a própria chanceler já tinha descartado na terça-feira: “Não haverá solução para todo o pacote de asilo, ou seja, para todas as sete diretivas até sexta-feira.”
Daí que na terça-feira à noite a CDU se tivesse empenhado em buscar uma solução com a CSU, de modo a evitar uma nova crise governativa no país. Horas de conversações entre os parceiros da coligação tripartida (CDU/CSU/SPD) que governa a Alemanha há três meses não conseguiram superar a questão transformada num nó górdio. A CSU, o partido gémeo da CDU de Merkel na Baviera, quer mudar a política de braços abertos e fechar as fronteiras, com eleições regionais à porta (14 de outubro) e acossada pela Alternativa para a Alemanha (AfD), o partido de extrema-direita.
Desde 2014, a Alemanha já deixou entrar 1,6 milhões de pessoas que procuram asilo. A um milhão foi dada autorização de residência por razões humanitárias. Em 2017, 65 mil a quem foi recusado o direito de asilo não puderam ser expulsos porque não tinham documentos de identificação.
A CSU quer controlar o fluxo de refugiados e travar a sangria do seu eleitorado mais à direita para a AfD. Por uma questão de sobrevivência política, está disposta a romper uma relação começada em 1949 e que transformara, ao longo destas quase sete décadas, os dois partidos em apenas um com duas denominações distintas. Desta vez a questão é séria e ameaça mesmo separar os siameses.
“Isto não é sobre uma coisa pequena, é sobre uma coisa central e importante”, disse na televisão o veterano deputado Volker Kandauer, explicando que as conversações entre os dois partidos tinham terminado na terça-feira à noite num impasse.
A CSU é perentória na sua exigência inflexível: “A partir da próxima semana queremos que os migrantes sejam rejeitados na fronteira se já tiverem sido registados noutro país europeu e, como tal, devem passar aí pelo processo de asilo”, explicou Alexander Dobrindt, um dos dirigentes do partido.
Horst Seehofer, líder da CSU e ministro do Interior, pode avançar com o plano porque a Constituição permite-lhe fazer isso numa área que pertence à sua pasta. A Merkel só restará então demitir o ministro e, com isso, ditar o fim da sua coligação governamental porque, sem a CSU, a CDU e o SPD não têm deputados suficientes para congregar uma maioria.
Merkel chega hoje a Bruxelas sem grande esperança de ver os Estados-membros darem-lhe a mão. A chanceler queria evitar a todo o custo decisões unilaterais em sua casa, de modo a impedir que outros países o façam também e deixe de haver uma política comum para as migrações.
No entanto, como dizia um assessor de um primeiro-ministro dos 28, citado pelo “Financial Times”, “ninguém terá pena” de Merkel, antes pelo contrário: “Ela tem muitos inimigos à volta da mesa que ficarão contentes se a virem pelas costas.” No entanto, a mesma fonte não deixou de acrescentar que “se a perdermos, ficaremos em apuros”.