Felícia Cabrita: ‘O Estado Novo era um paraíso para os pedófilos’

A jornalista que abalou o país com as revelações sobre pedofilia na Casa Pia, em 2002, comenta os acórdãos do tribunal europeu. Diz que eles confirmaram as sentenças dos tribunais portugueses e apenas apontam irregularidades sem grande significado.

Nas últimas semanas houve duas decisões judiciais que levaram muita gente a mudar de opinião relativamente ao caso Casa Pia: o pagamento de uma indemnização a Paulo Pedroso e um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que dá razão a Carlos Cruz. Isto permite supor que foram injustiçados?

Não, há aí um engano.

Este acórdão não dá razão aos que achavam que Carlos Cruz está inocente?

De todo. Por isso é que escrevi um artigo de opinião nesse mesmo dia. Fui a primeira a chamar ‘derrota’ a esse acórdão e o Miguel Sousa Tavares depois também disse o mesmo.

Derrota porquê? O acórdão não lhe deu razão?

Se Portugal jogar com a Alemanha, e a Alemanha marcar três golos e Portugal só marcar um, é uma vitória para Portugal? É exatamente o que se passa aqui. Estes arguidos – estamos a falar do Carlos Cruz, do Jorge Ritto, do Ferreira Dinis, do Manuel Abrantes – queixaram-se de não terem tido um processo justo e equitativo, com base em cinco questões. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos veio dizer que não, antes pelo contrário: tiveram direito a um julgamento justo, em que a prova é abundantíssima, ficaram até perplexos com a quantidade de prova e de testemunhas ouvidas, e, portanto, o tribunal rejeitou todas essas pretensões.

O importante neste acórdão, para já, é o facto de vir de fora. Nós consideramo-nos um pouco um país de terceira divisão, não nos temos em grande conta, e achamos que só é bom o que vem de fora. A investigação da Casa Pia começou há quase duas décadas, houve uma brutal reação quer a nível político, quer a nível da nossa classe jornalística. Acho que Portugal não estava preparado para uma miséria tão grande – e grande parte dos jornalistas e comentadores abandonaram as ferramentas com que lidamos habitualmente, como a objetividade e a isenção, e funcionaram em termos de classe, de amizade, ou por questões ideológicas. Por que é que as pessoas não disseram antes que isto era uma derrota para o Carlos Cruz? 

Mas há um ponto em que dá razão a Carlos Cruz…

Há uma parcela de uma questão em que o tribunal europeu lhe dá razão.

Que está relacionada com as contradições das testemunhas, não é?

Não. Tem a ver com isto: após aquela fase de retratação das vítimas, Cruz vem pedir que duas testemunhas fundamentais neste processo – que não se retractaram – fossem obrigadas a depor de novo, porque os seus depoimentos teriam sido postos em causa por uma testemunha que se retratou. Eles diziam: ‘Nós estivemos naquele sítio na Rua das Forças Armadas com ele’, mas essa testemunha mais tarde negou. Portanto, o que eles pediram foi para ouvir essas duas testemunhas que já tinham sido ouvidas – aliás, foram dos testemunhos mais exaustivos, cada uma delas levou cerca de dois meses a ser ouvida em tribunal – e os arguidos tiveram hipótese de as confrontar com todas as questões. E mesmo nesse ponto a votação foi 4-3. E é importante lembrar que a presidente do coletivo a determinada altura diz que ficaram chocados com o argumento do requerente que considera o abuso de menores na Casa Pia «o resultado da fantasia – consciente ou inconsciente dos alunos ou ex-alunos». E também se referem aos outros juízes como pessoas que desconhecem de todo a psicologia que está por detrás dos abusos sexuais.

Conheceu esses dois rapazes que a defesa queria voltar a ouvir?

Já não falo com eles há uns tempos, mas conheci muito bem. E tanto quanto sei, o seu testemunho hoje não seria diferente.

E a outra testemunha que depois negou?

Também. Ele negou, mas depois a nós veio confirmar. 

Esta questão das retratações é relevante. O que motivou essas vítimas a mudar de opinião?

Há aqui uma viragem. Um ano depois de sair o primeiro acórdão da Relação, começam as retratações. Em todas elas há sempre em comum um jornalista chamado Carlos Tomás, que curiosamente escreveu um livro sobre a vida do Carlos Cruz, com a sua ex-mulher, a Marluce. O Carlos Silvino é o primeiro a retractar-se, dando uma entrevista a este jornalista freelancer onde tenta insinuar que a Polícia o drogava. Sempre que bebia um copo de água ficava semi-adormecido, portanto tinha dito o que a Polícia queria que dissesse. Estava perfeitamente inocente. Depois há mais três jovens que se vão retractar.

Como sabemos que não era dessa vez que estavam a dizer a verdade?

Todos estes três tinham problemas de drogas. Do lado das outras vítimas há então uma imensa revolta. Primeiro, em relação à retratação do Carlos Silvino; depois há a retratação de outro jovem que eu conhecia muito bem e sabia todas as conexões que ele tinha com as outras testemunhas. Quando foi a vez dele, um grupo de vítimas que nunca tinham falado com a comunicação social falam comigo e decidem ligar-lhe e gravar a conversa.

O que lhe disseram?

Perguntaram-lhe: ‘O que é que tu foste fazer? Vais-nos dizer que é mentira que estiveste na casa X comigo e com este, aquele e aqueloutro?’ Mas isto era num tom… eles estavam profundamente revoltados. E ele respondeu-lhes: ‘Pagaram-me 1500 euros’. Isso foi gravado em áudio. O mesmo aconteceu com todos os que se retractaram. Nós falámos com eles e todos acabaram por dizer que tinham recebido dinheiro ou droga desse jornalista.

Não vai ser processada por dizer isto?

É público! Ele já me processou e eu ganhei.

E agora, o que vai acontecer?

Segundo o nosso sistema processual penal o Tribunal da Relação não pode julgar o que já foi julgado ou ouvir o que já foi ouvido. Mas se o Supremo absorver a decisão do TEDH, pode mandar a Relação repetir essa prova. Ou então nem sequer lhe dá provimento. O julgamento em primeira instância é altamente louvado pelo tribunal europeu. Mesmo assim, os elementos do coletivo de juízes que venceram não põem em causa a valoração da prova. O que eles dizem é: ‘Teria sido melhor…’. E Portugal não foi condenado, porque o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deu razão – com exceção desta parcela – e elogiou o julgamento. Isso para mim é importante, porque no decurso de quase duas décadas houve muitas vozes que fizeram dos arguidos uma espécie de Cristos crucificados, e das vítimas uma espécie de Judas. As crianças mentiam, mas não se questionava os adultos. Neste acórdão é dito que os arguidos tiveram até um excesso de garantismo. A juíza Ana Peres aceitou tudo e mais alguma coisa do que a defesa pediu. Portanto, além das mais diversas instâncias portuguesas, temos agora um tribunal europeu a elogiar a sentença (com exceção duma parcela). E também a considerar que o tempo que durou o julgamento foi normal, dado o número de testemunhas [920], de vítimas [32], e ainda o elevado número de recursos por parte dos arguidos. Esse expediente, aliás, foi em grande parte o responsável pela demora do julgamento.

Em relação a Paulo Pedroso foi diferente: o Estado foi condenado a pagar-lhe uma indemnização. 

Aí o Tribunal dos Direitos do Homem considerou que não havia indícios suficientes para a prisão preventiva. Apenas isto. Em relação a esse caso tenho a dizer o seguinte: os jornalistas não são o tribunal e a verdade jornalística é diferente da verdade judicial. Paulo Pedroso já tinha sido inocentado, isto não é novidade…

Mas agora tem mais força.

Esteve preso e, portanto, há aqui contradições que os políticos têm de pensar. Em termos legislativos, têm de moldar certas questões em conformidade com as diretivas do tribunal europeu. Esta questão está bem explícita no nosso Código de Processo Penal: a Relação não pode julgar aquilo que já foi julgado em primeira instância.

Trouxe comigo um artigo de opinião do dr. Mário Cordeiro, em que ele pede desculpa e diz que se envergonha de Paulo Pedroso ter estado preso. O que acha disto?

Não tem nada a ver. Há várias fases na Casa Pia. Quando a investigação começa, temos apenas como suspeito um desgraçado de um homem que tinha sido abandonado na Casa Pia pela mãe – e a miséria ficava por aqui. Depois começou a falar-se de políticos, mas a ideia é que seria gente de direita. E daí a classe política vir dizer em peso: ‘Iremos para a frente com isto doa a quem doer’. Foi esta a primeira reação da classe política.

Mas quando começou a doer…

Quando aparecem dois nomes ligados ao Partido Socialista, muda tudo. Aliás, posso dizer que este é o primeiro processo judicial que põe a nu a fragilidade da nossa democracia. Faz estremecer os alicerces do regime. Há uma fuga de informação e, antes da detenção, o PS já sabe o que vai acontecer. Sabe que existem dois membros de relevo, nomeadamente Ferro Rodrigues, que são suspeitos, e que Paulo Pedroso vai ser detido. E começam a mover montanhas. O Presidente Jorge Sampaio vai almoçar com o procurador Souto de Moura, outros vão tentar pressionar o procurador titular do processo, João Guerra. Onde é que está a separação de poderes? Isto foi um péssimo sinal para a sociedade portuguesa. Nós sabemos de todos esses movimentos para pressionar o procurador Souto de Moura e o titular do processo, através de escutas telefónicas. E uma das pessoas dizia: ‘Eu estou-me ***ando para o segredo de Justiça’. Fizeram tudo o que estava ao seu alcance para condicionar a Justiça.

Mais tarde, no caso Sócrates, foi o oposto. António Costa defendeu uma separação total…

Aí ele tem um comportamento completamente distinto, pelo menos publicamente. Lembro-me de que, quando Paulo Pedroso saiu da prisão, fez-se uma espécie de festim na Assembleia da República, supostamente a casa de todos nós, para celebrar a saída. O que eu diria ainda em relação a isso é que a lei e a Justiça não são a mesma coisa. Só quem tem muito dinheiro pode pagar a advogados habilidosos que consigam arranjar veredas para prolongar estes julgamentos. Isto não é para todos, é só para alguns.

Recorda-se da primeira vez que ouviu dizer que havia casos de pedofilia na Casa Pia?

Isto começou por uma denúncia. O Pedro Namora, um ex-aluno da Casa Pia, à época advogado, teve conhecimento de um menor que tinha sido abusado por Carlos Silvino. Ele próprio, Pedro Namora, tinha sido alvo de tentativas de abuso que não se chegaram a consumar. Na altura eu estava no Expresso, a investigação começa com esse menor e com imensos alunos da geração do Pedro Namora, que na altura andava pelos 40 anos. Estamos a falar daquilo a que eu chamo uma ‘geração perdida’…

O que aconteceu a esses ex-alunos? O que fizeram quando deixaram a Casa Pia?

Não houve quem se salvasse. Com exceção do Namora e de um outro advogado, todos eles tinham entrado por caminhos da droga ou do álcool.

E acha que isso foi uma consequência dos abusos?

Não tenho dúvidas, e é também a justificação que eles dão. O facto de eles terem dinheiro que os pedófilos lhes davam para pagar os ‘serviços’, pode dar para um grande disparate numa criança de nove, dez anos. E a Casa Pia não era um modelo de educação e muito menos de virtudes. As crianças cresciam de rédea solta. E muitas vezes a droga era-lhes oferecida pelos próprios pedófilos! Para nos situarmos, na Casa Pia temos de ir à prova – e a prova remonta aos anos 60.

Nessa altura já havia pedofilia na instituição?

Na minha investigação, consegui arranjar documentos que culminaram num processo nos anos 60 em que estiveram envolvidos uns americanos, um tal Ken Rogers, que era médico, e alguns outros amigos dele, multimilionários, que geralmente vinham a Portugal num avião privado e tinham cartão de entrada livre na Casa Pia.

Então havia consentimento dos responsáveis…

Com certeza. Havia conivência, como sempre houve. Enquanto decorriam os Ballet Rose, um outro processo com meninas, aconteciam estes abusos. Isto acabou num julgamento. Eles faziam-se passar por uma organização humanitária chamada Amaco, e só estavam infiltrados em países subdesenvolvidos. Portugal era um deles. Entravam propondo ajuda: por exemplo, criar um curso de dentistas ou fornecer aparelhos para surdos-mudos. Em pleno marcelismo, estes americanos levavam os miúdos para hotéis, normalmente o Hotel Fénix, ou chegavam a ir para colónias de férias. Um padre denunciou isto na década de 60 e deu origem a um processo, que depois foi arquivado. Conseguimos muito material, como cartas amorosas entre estes americanos e as crianças. E houve miúdos que apareceram mortos sem se saber porquê. Eles tinham um boletim informativo em que anunciavam os seus grandes êxitos. Este miúdo que morreu tinha um problema grave no coração e eles levaram-no supostamente para Espanha, onde seria curado. Mas o miúdo apareceu morto e num caixão fechado. Estes miúdos iam com eles no avião para países de Leste, a PIDE carimbava os passaportes de um dia para o outro. Está tudo documentado. Isto estava quase enraizado.

Como confirmou as informações que os miúdos lhe davam?

Estes miúdos sempre disseram que eram filmados. E eu consegui descobrir um filme entre dois miúdos da Casa Pia. Um foi imediatamente reconhecido pela família e por amigos; e, em relação ao outro, o Carlos Silvino, ao ser confrontado com as imagens, disse: ‘Este é o deficiente’. Não se lembrava do nome, mas o miúdo de facto tinha problemas. Isto para dizer que tudo aquilo que eles disseram acabou por ser confirmado. Andar a trabalhar num processo tão complicado como este era como andar em cima do fio da navalha. Lembro-me de uma situação com um ex-aluno da geração do Namora. Ele dizia-me que tinha sido abusado por este, este e este – e afirmava que um deles era médico e o tinha filmado. Ele deu-nos o filme. Esse filme foi divulgado na altura. Depois a PJ fez buscas e apanhou imensos filmes.

Pornografia?

Pornografia infantil. Só da Casa Pia eram 69 vídeos. E a dada altura ele dizia-me: ‘Eu não vos sei dizer a rua mas sei ir lá ter’. Pelo caminho ele ia-se perdendo, e eu ia ficando inquieta e começava a ficar com dúvidas. E depois ele diz-me: ‘Já não sei se era médico, se era jornalista’. Afinal, era as duas coisas: era médico e escrevia umas coisas para os jornais. Depois acertámos com a morada e a Polícia foi lá fazer uma busca e apanhou todo este material. Foi uma investigação complicada, que muitas vezes me levantava dúvidas, e houve muita gente que mentiu.

Mesmo entre os miúdos?

Entre os que chegaram a julgamento, não. Mas apareceram mulheres que estavam em processo de divórcio litigioso a tentar aproveitar-se do escândalo [para prejudicar os maridos]. Tive também um encontro com a filha de uma pessoa muito importante que me dizia que tinha sido abusada pelo pai, pelo Mobutu e por mais não sei quantos, mas nada daquilo batia certo. Aliás, testámo-la com um telefonema para o pai, em que estávamos a ouvir a conversa, e deu logo para perceber que era mentira.

Esses vídeos de que falou para que serviam?

Isto era uma rede com relações internacionais. Havia uma ligação à indústria da pornografia e a uma rede francesa que envolveu também políticos importantes. Um dos arguidos era Jean Manuel Vuillaume, um fotógrafo e realizador de filmes de pornografia infantil. Gaie France Magazine era uma revista pedófila, não tinha nada a ver com homossexualidade. 

Era clandestina?

Não, vinha a público até este processo ter rebentado. Este Vuillaume esteve detido em Portugal e é a pessoa que filma aqueles dois jovens que nós conseguimos identificar. Havia um lado mercantil na questão, com a distribuição de filmes pornográficos. Esta revista tinha uma versão portuguesa, aqui saíam imensas fotografias de miúdos portugueses, do Norte ao Sul do país. No Estado Novo, Portugal era um paraíso para pedófilos. Veja este parágrafo: «A haver um país cujas aparências se tornam enganadoras, esse país é Portugal. Continua a ter uma face convidativa, os seus habitantes continuam a ser comunicativos e os seus jovens continuam a largar uma sensualidade natural. Mas uma grave mudança registou-se para todos aqueles que lá vão à procura de contactos agradáveis». Como quem diz que o tempo de Salazar é que era bom.

Há pouco disse que muitos dos ex-alunos abusados enveredaram pela droga e outras coisas complicadas. Apesar disso confiava neles?

Estamos a falar de miúdos que cresceram neste ambiente e que obviamente se tornaram malandros. Tenho uma das vítimas que me confessa que hoje é pedófilo. E eu sabia de quem ele tinha abusado. Houve um processo aqui e ele fugiu. E era medonho o que ele me dizia. Ele deu-me uma entrevista e aquilo era verdadeiramente abjeto. Eles começavam a ser abusados muito novos, oito, dez anos, iam crescendo, chegavam aos 12, 13 anos e eram uns rapazinhos cheios de manhas. Muitas vezes passam a servir de intermediários e levam outros mais novos. Posso referir-me ao embaixador Jorge Ritto, porque um dos casos era referente a ele. Enquanto o embaixador estava com um dos menores, eles roubavam-lhe a casa. E à conta disto, que faziam noutras casas de outras pessoas, houve quem caísse na tentação de apresentar queixa.

Foi isso que os denunciou?

Isso fez com que os miúdos explicassem por que ali estavam. A esse nível havia informação bastante significativa. Há quem diga que leu o processo Casa Pia – eu não acredito, porque são centenas e centenas de volumes. Mas quem conhece o processo não tem dúvidas. Há um cruzamento de testemunhas destas três gerações. Não estamos a falar só das vítimas. Há as empregadas, por exemplo. Uma empregada do dr. Ferreira Dinis apanhou vídeos de pedofilia. E fala de jovens ainda anteriores à ida de um ‘afilhado’ lá para casa. Fala de determinados jovens, esses jovens são ouvidos e por sua vez falam de outros. A empregada reconhece esses outros. São muitas camadas de informação que se sobrepõem.

Imagino que esteja convencida da culpabilidade de Carlos Cruz por causa dos depoimentos dos miúdos. Mas alguma vez chegou a falar com ele sobre isto?

Durante muito tempo, o Expresso e a SIC optaram por não dar nomes. Nós tínhamos os documentos com os nomes, mas acabou por ser a TVI a divulgá-los. Aliás, fui processada por Carlos Cruz – e por outros – e ganhei. Falava-se com os advogados. Mas não era só o Carlos Cruz, era muita gente. E este processo não fechou aqui. Sabemos que existem outras pessoas que, usando uma palavra cruel, se ‘abasteciam’ na Casa Pia. Mas à medida que iam tendo cargos de mais responsabilidade, souberam-se acautelar, mudar de zona, etc. E noutros casos os crimes já tinham prescrito. E outras ainda estavam com uma idade bastante avançada.

Pelo facto de se ter colocado do lado das vítimas…

Eu não me coloquei de nenhum lado. Eu investiguei, fiz o contraditório e consegui um manancial de provas que levou até o Ministério Público a pedir-me que fosse testemunha. A maior parte do meu material foi para o processo. O material, e todos os testemunhos que recolhi, levaram-me a não ter dúvidas em relação a certas pessoas. Entre elas, o Carlos Cruz.

Ser uma figura pública não o tornava um alvo mais facilmente identificável?

Estamos a falar de três gerações que falam do Carlos Cruz. Não estamos a falar destes miúdos apenas. Há três gerações. Há um processo no início dos anos 80. E este é um nome recorrente… 

Não houve outros casos em que pode ter feito acusações injustas ou até ido longe de mais? Herman José, por exemplo, diz que foi vítima de uma notícia falsa que saiu na altura no Expresso.

Esses eram nomes de pessoas que foram ouvidas. Havia testemunhas, essas coisas estavam no processo. Foi também no Expresso que saiu uma notícia relativa à suspeição em torno de Ferro Rodrigues, que levou a que nas escutas me insultassem. Mas o artigo não era meu. Eu desconhecia até que o artigo ia ser publicado. Estou de consciência tranquila em relação ao meu trabalho. Aliás, estes miúdos que serviram para condenar estes arguidos referiram outras pessoas. Por isso, repito que a verdade judicial não tem de ser igual à verdade jornalística…

Disse atrás que houve pessoas muito influentes que moveram mundos e fundos para condicionar a marcha do processo. Essas pessoas não fizeram nada para a travar a si?

Nessa altura, não. Aquilo que houve foi uma tentativa de atropelamento, mas eu sou como os gatos, salto bem.

Como é que isso aconteceu?

Eu tinha marcado uma entrevista com o dr. Ferreira Dinis em Belém, onde ele tinha um consultório. E fui com um cameraman, porque tínhamos uma parceria SIC/Expresso. O Ferreira Diniz ia adiando: ‘Mais daqui a cinco minutos’, ‘Daqui a dez minutos’. Entretanto, uma das testemunhas que estavam connosco num local protegido, uma pizaria, telefona-me a dizer que o afilhado do dr. Ferreira Dinis, um ex-aluno que vivia com ele, andava ali a rondar com o carro. Eu, com medo que acontecesse alguma coisa ao miúdo, dirijo-me para a pizaria e digo-lhe para se esconder e ficar lá dentro. Quando estou a atravessar uma rua, vem a grande velocidade e em contramão o tal afilhado do dr. Ferreira Dinis. Não sei como, mas tive o reflexo de saltar para o passeio. Mas à velocidade a que ele vinha foi complicado. Depois, ele fez inversão de marcha e foi apanhar o cameraman. No fundo, o Ferreira Diniz estava-nos a enganar. Tinha dito que dava a entrevista mas depois estava-nos a empatar. E dissera ao afilhado para o ir buscar, para se pirar. Mas eu ainda chego a tempo de o ver quando está a sair. Ele entra no carro, este faz uma marcha-atrás violenta, com o cameraman ainda a filmá-los – levando-o a cair com a câmara.

Tinha montado uma armadilha?

Eu não participei à Polícia, mas aquilo era um crime público sob todas as formas. Aliás teve graça, porque o Ferreira Dinis na altura ameaçou-nos que, se puséssemos essas imagens no ar, colocava-nos um processo. Nós é que tínhamos tentado atropelar o carro!

E outras ameaças?

Havia telefonemas anónimos, mas nunca dei grande importância a isso. Só houve um que me perturbou, porque tinha a ver com a minha família. Foi logo no início. Quem me telefonou sabia onde estava a minha filha, que tinha ido ao teatro com uma amiga. Mas nada de significativo. Estas são as duas situações. Uma considero que foi causada pela emoção do momento…

Se bem que, se a atraíram lá e depois atentaram contra a sua integridade…

Não atraíram, eu é que quis ir lá. Ele foi-me enganando dizendo que dava a entrevista e depois chamou o outro. Há muita forma de ameaçar pessoas. Eu, a Polícia envolvida no caso, os magistrados e os juízes vimos a nossa vida devassada em todo o lado. Com as maiores invenções. O meu pai tinha sido o primeiro homem a abusar do Pedro Namora, eu estava grávida do Carlos Cruz. E fizeram o mesmo com a Catalina Pestana, com muita gente. Tentaram desacreditar-nos lançando notícias falsas. 

Tem amigos na Polícia? Nessa altura mais complicada deram-lhe conselhos sobre segurança?

Francisco Pinto Balsemão quis pôr-me segurança, falou-se nisso. Uma miúda que trabalhava comigo nessa altura fartou-se de rir: ‘Eu queria ver como é que a segurança te descobria!’. Eu não queria uma coisa dessas. Com que cara me apresentaria perante vítimas da Casa Pia que, essas sim, tinham sofrido e corriam riscos?

Mas os amigos não lhe davam conselhos sobre como proteger-se?

Já me ameaçaram de atentado à bomba! A mim e ao Expresso. Quando estávamos no Porto, ameaçaram-nos de bomba, no seguimento da biografia do major Valentim Loureiro. No hotel foi uma salganhada, mandaram vir a Polícia, etc. O Joaquim Vieira e a Paula Barreiros, que era mulher dele, vieram comigo – que estava com uma barrigona, quase a ter a minha filha – e ele explicou-me o que fazer: ‘Primeiro olham para debaixo do carro para ver se tem alguma coisa. Depois abrem as janelas todas. E só depois é que ligam o motor’. 

Porquê abrir as janelas?

Porque, se houver bomba, mesmo que rebente, há uma pequenina hipótese de a pessoa ficar com vida… [risos] Há alturas em que tomamos cautelas: olhar para trás, fazer algumas manobras para perceber se estamos a ser seguidos, só que passados dois dias entramos na rotina e esquecemo-nos disso. Esta minha casa foi assaltada, só levaram documentos da Casa Pia. Eu acordei, a miúda também, depois veio cá a Polícia, as impressões digitais que apanharam não estavam no sistema.

Foi noticiado em janeiro deste ano que Carlos Cruz foi hospitalizado com uma doença grave. Não sente compaixão, não acha que chegámos a uma fase em que se devia deixá-lo em paz?

Eu sei bem separar as águas. Para mim, o Carlos Cruz foi um excelente apresentador de televisão, foi um excelente entrevistador, fazia entrevistas soberbas, foi o homem que conseguiu pela primeira vez pôr o Cunhal a falar da vida privada (chegou a mostrar uma fotografia do neto, acho eu). Tal como a maioria dos portugueses, eu acreditava na inocência do Carlos Cruz. Da primeira vez que o nome dele apareceu pensei que tinha sido uma festa louca, um episódio. A minha reação foi igual à de tantas outras pessoas. O problema é quando a informação começa a avolumar-se. Nada me move contra esta ou aquela pessoa. Eu sou uma humanista. Em relação a qualquer um que esteja doente, a única coisa que espero é que melhore rapidamente. Não posso congratular-me com isso, nem pensar. Há pessoas que estiveram envolvidas no caso que eu admirava e continuo a admirar. Não misturo as coisas.

Às vezes não tem dúvidas?

Há sempre dúvidas. Se me perguntar se tenho a certeza… Mal de nós se não tivermos dúvidas. Mas em relação a umas tenho mais certezas do que em relação a outras.

Só que aí coloca-se a tal questão: se os miúdos disseram a verdade em relação a X, por que hão de mentir em relação a Y?

Pois. E por que carga de água miúdos da Casa Pia, sem conhecimento nenhum (apesar de estarem ao abrigo do Estado, eram na prática miúdos de rua), haviam de apontar determinadas pessoas? Quando ouvi falar no nome do Paulo Pedroso, por exemplo, tive de perguntar: ‘Quem é o Paulo Pedroso?’. Não sabia. Por que é que os miúdos sabiam? Aliás, acho que não sabiam, acho que descreviam as pessoas. Depois chegou-se a nomes.

Volto ao artigo de Mário Cordeiro, em que este pedia desculpa a Paulo Pedroso em nome dos portugueses. Acha que os portugueses têm de pedir desculpa?

Paulo Pedroso foi inocentado. E é assim que deve ser tratado. A partir daí penso que a questão está resolvida. Se colocarmos a hipótese de ele ser verdadeiramente inocente, é evidente que foi atingido de uma forma sem reparo, o que do meu ponto de vista é uma tragédia.

E coloca essa hipótese?

Quer que eu leve um processo em cima? Eu vi os miúdos, aqui mesmo, a falar ao telefone aos berros: ‘Queres dizer que não estivemos com o Carlos Cruz? Que eu não estive com o Paulo Pedroso?’ Eu vi aqueles miúdos, eu conheço-os, portanto não posso achar que disseram a verdade sobre uns e mentiram sobre os outros. Fartei-me de os aldrabar com fotografias.

Para os despistar?

Claro. Quando percebi a forma como a Polícia atuava… Já o julgamento decorria quando descobri novos abusos. Nenhum de nós estava preparado para este processo. Nem os jornalistas. Fomos aprendendo a lidar com o caso. O miúdo dizia-me: ‘É este’. E eu punha outras fotos que não eram para ver se ele tinha a certeza. Houve um erro durante a fase de inquérito que foi quase obrigar os miúdos a dizerem a data e o local em que foram abusados. Há um miúdo – por acaso, um dos dois que o Carlos Cruz queria que fossem ouvidos – que dizia que tinha sido abusado numa casa no bairro X, na zona do Restelo. Por acaso, no início da investigação eu tinha estado nesse sítio. Durante o julgamento este miúdo sempre disse que não se lembrava. Só sabia onde apanhava o autocarro e onde saía. Mas fazem-lhe a imposição de ele mostrar onde era, e o miúdo leva-os a outra casa. Houve então uma confusão enorme, porque a casa tinha estado ligada ao Represas. Quando vi aquilo, pensei: ‘Que grande porcaria. A casa não é esta’. O miúdo tinha-se enganado. Ligo-lhe então e convido-o para almoçar. E digo-lhe que tenho de ir buscar uns documentos a um sítio e depois seguimos. Quando eu mandei parar o táxi, já o miúdo estava branco, amarelo, de todas as cores, de queixo caído. A casa era aquela e não a que ele tinha apontado. O número da porta era igual, a cor era a mesma – mas a casa era outra. E por isso o crime caiu. Como jornalista, parte-se-me o coração. Por que é que fazem isto? Os miúdos, quando vão ser abusados, não vão para uma festa de anos nem vão ter com a namorada. Nos momentos felizes conseguimos reconstituir mais facilmente as coisas. Mas coisas que se querem esquecer não se consegue.