A obra de arte busca quem se deixe por ela devorar. A presa é cúmplice da própria predação, porque lhe agrada sentir-se em apuros. Se a arte, hoje, não nos coloca na «proximidade de um eco» que desfigure o quotidiano, capaz de ofender a normalidade, fazer tremer o chão que distraidamente se pisa, então não nos deve importar.
O mais célebre romance de Émile Zola, Germinal, é citado no primeiro núcleo que trabalha a coleção de Pedro Cabrita Reis adquirida, em 2015, pela Fundação EDP por milhão e meio de euros. Com um acervo de cerca de 400 peças de 75 artistas, todos portugueses, chega agora ao MAAT a exposição que se faz valer de uma décima parte do total desse acervo. Germinal junta 42 obras de 35 artistas que, em Março, tinham estado na Galeria Municipal do Porto. Ana Anacleto, que assina com o diretor do museu, Pedro Gadanho, a curadoria desta mostra, diz ao SOL que o nome da exposição reflete a predominância no acervo de «um significativo conjunto de obras iniciais da carreira de vários artistas que, a partir dos anos 1990, vieram a desenvolver percursos fulgurantes».
Zola publicou o seu romance em 1885, depois de ter passado um par de meses a extrair carvão ao lado dos mineiros. Partilhou as suas condições, sentiu na pele a dureza do trabalho, o calor e a humidade no interior da mina, as horas de esforço insano necessário para arrancar à terra o carvão, a sordidez e promiscuidade nas habitações, recebeu o mesmo salário indigno, passou fome, e depois acompanhou os mineiros quando entraram em greve. Como escreveu o crítico literário inglês V.S. Pritchett, naquele que se tornou o mais famoso volume da série ‘Les Rougon-Macquart’, Zola não assistiu à marcha para as cinzas do homem esmagado pela economia. O que viu foi bocas, muitas, bem abertas, e de diferentes formas.
«Para a sua personalidade curiosamente dividida aquela visão tornou-se uma esfaimada orgia, ao mesmo tempo repugnante e idealizada. Os mineiros são as sementes que despontam no horror negro da terra e irão um dia germinar e elevar-se por entre a lama para se libertarem a si mesmos e ao mundo», resume o crítico. Talvez não tenha sido intenção dos curadores levar tão longe a citação do romance de Zola, mas o facto é que, traçando uma «ampla e sólida» representação do que fez a geração de 90, como se apresenta em duas das galerias da antiga CentralTejo, dada a concentração, a diversidade de abordagens e de media, entre instalação, vídeo, escultura, pintura, damos por nós rodeados de uma série de «objetos trágicos», de testemunhos que concorrem, criando um espaço de sobressaltos que deixa ofegante quem tenta encontrar um percurso ao mesmo tempo que sente o chão fugir-lhe.
Com fronteiras muito porosas, a mostra que estará patente até 2 de janeiro de 2019 encontra-se dividida em quatro núcleos: ‘O sujeito em fratura’ mostra peças que apontam para a ideia do pós-modernismo, para a definição de identidade; em ‘Ao encontro do Outro’ as obras revelam questões de identidade de género e têm um caráter antropológico; ‘O predomínio da tecnologia’ mostra como os artistas começaram a descobrir a tecnologia e a usá-la de forma mais democratizada, acima de tudo através do vídeo, do som e da imagem em movimento; e, por fim, ‘A herança das imagens’ remete para a tradição histórica das imagens e da representação. O que transparece, como em Zola, é que ao reunir esta coleção entre 1994 e meados dos anos 2000, Cabrita Reis foi muito mais longe que um mero colecionador, apoiou e deu-se, misturando-se com os artistas da geração que lhe sucedeu.
‘Uma razão de prazer’
Seguindo o «imperativo ético» que o fez reverter o seu sucesso enquanto artista para ajudar os mais novos, isto numa época em que a matéria que estes mineiros arrancavam de si mesmos, entre a terra e o céu, valia menos para o mercado do que carvão e eram muito escassas as iniciativas ou instituições que ofereciam condições, ou sequer o pão, para aquelas bocas. Mas como o artista deixa claro no texto à direita deste, sempre houve «uma razão do prazer aqui tomada». E se, como disse ao The New York Times – que lhe dedicou um extenso artigo na edição de terça-feira –, assumiu a sua coleção como uma responsabilidade, isso não passou por um sacrifício, nem perdeu alguma vez de vista a enorme razão que o fez sempre defender a alegria.
Fala, por isso, de uma viagem com os outros, de uma fecundante convivência, fala de vida, de sair, de beber copos, de uma coleção em que o ato de guerra próprio da arte não prescinde de um vínculo emocional. Como conta ao NY Times Vasco Araújo – um dos artistas que integra a mostra –, ter uma peça comprada por Cabrita Reis era um marco na carreira de qualquer artista: «Se o Pedro comprasse o trabalho, isso era sinal de que estavas no caminho certo. Era sinal de que o que estavas a fazer tinha algum valor». Bem mais do que eclético, e para lá da evidente generosidade, o que os curadores da exposição reconhecem a Cabrita Reis é um olhar «visionário» enquanto colecionador. Certo é que na arte contemporânea não se trata tão só de reconhecer qualidade, mas de apontar caminhos, e é aqui que o dilema do ovo e da galinha mais se agudiza. Para o artista, o importante não é trazer à atenção o que entretém ou é bonito, mas aquelas obras capazes de expandir a inteligência e a capacidade do público para entender o mundo. Depois de ter passado uma década num armazém nos subúrbios de Lisboa, a coleção começa agora a ser trabalhada e entregue ao público português. E há motivos de entusiasmo, pois se este artista teve já um papel central em colocar Portugal no mapa da arte internacional – como frisa Eva Wittocx, curadora principal no M, um museu em Leuven, Bélgica –, é chegada a vez de os portugueses serem apresentados à arte que marcou o fim do século XX e o início do XXI, e isto através de um olhar que não podia ser mais vivo. Esse olhar é o de alguém cuja arte, segundo João Miguel Fernandes Jorge, «sustenta a sobriedade de uma narração que se deixa percorrer por uma significação heróica e por um entusiasmo ‘excêntrico’». E talvez não haja exemplo mais expressivo desta capacidade de arrancar de uma terra escura e aparentemente inculta algo ao mesmo tempo subtil e grandioso, gradual e encantador como uma aurora, uma peça como Central Tejo. Encomendada pela Fundação EDP ao artista para assinalar a primeira exposição a partir do acervo por ele reunido, a nova instalação ficará instalada no pontão junto ao pólo museológico. Ganhando presença contra o fim do dia, como um farol decomposto, que introduz uma ponta de extravagância numa paisagem bela, uma leve torção, um suave deslocamento, como se nos despertasse para o que há de admirável naquela composição. Para a necessidade de nos mantermos atentos, como quem escava no já visto.