Procurar o estranho

Com ar de lorde gozando o fim do império, Cabrita Reis, ao gosto pelo charuto cubano, alia o «síndrome de Fidel Castro». E se o raciocínio engatilha, o disparo vai longe. Aqui fica, em discurso direto, um olhar sobre uma coleção que já foi sua e hoje é de todos.

Um artista nunca corre riscos. Tudo o que faz, a maneira como está na vida, o modo como encara o mundo a que pertence, tudo isso é um desenho de viagem e de aventura. A noção de correr riscos implica a noção de rutura com aquilo que seria a sua vida normal. Não há isso na prática artística, como não há na posição do artista perante a sociedade, nem no modo como ele materializa e responde aos seus imperativos criativos, estéticos, políticos, ideológicos, emocionais, amorosos ou outros.

Quando saio para a rua, a partir de 1995, e decido que tenho de fazer alguma coisa pela geração que me sucedeu – e que claramente vivia num contexto difícil por essa altura (ao passo que eu, por então, gozava já de um relativo sucesso mundano enquanto artista, e, por inerência, também económico) –, decidi gastar 20% de todo o dinheiro que ganhava colecionando obras exclusivamente de artistas portugueses, de preferência, todos revelados a partir dos anos 1990. O período de aquisições da coleção Pedro Cabrita Reis está balizado, assim, entre meados de 1990 e metade dos anos 2000.

Como artista que coleciona, o meu olhar é necessariamente um olhar particular. Não corresponde ao de um investidor, que conta muitas vezes com uma malha de apoios de toda a ordem e que o leva a fazer aquilo que pensa serem os investimentos adequados, e também não é a perspetiva que um colecionador privado terá. 

Sou colecionador sem ser investidor, e sou colecionador sem ser colecionador. Sou um artista que viaja com os outros, acompanho-os, saio, ouço-os, bebemos copos juntos, visito os ateliers, passo tempo com eles. Portanto, a construção da coleção é um ato de guerra e um ato de poesia, mas também um ato emocional ligado à convivência com os outros.
E para que é que era preciso esta coleção? Porque é que era preciso estabilizar a produção dessa época (a qual não estava a ter a desejada visibilidade na sociedade portuguesa)? Achei que tinha alguma obrigação em relação a essa questão. Foi por isso que me lancei nisto.

A mostra que aqui se exibe é uma parcela ínfima em relação ao total da coleção. Mas, hoje, olho para trás e não há nenhuma obra, nem nenhum dos momentos que vivi para construí-la que considere mal empregue ou desaproveitado. E há uma coisa de que se deve falar, porque se perdeu o uso dessa palavra maravilhosa, que é a alegria. Foi um tempo de alegria e de construção. É assim que me dou conta que fiz o que tinha de fazer.

Se me perguntam se tenho pena que a coleção tenha mudado de mãos, o que digo é: ‘Não, antes pelo contrário. Estou muito contente’, porque uma coleção é um conjunto de obras de artistas e aquilo que lhes é mais necessário é a visibilidade. É preciso conferir, sempre e cada vez mais, visibilidade às obras. Quem é que pode fazê-lo em condições adequadas? Um museu e não um colecionador particular, que não tem, como é o meu caso, nem meios económicos nem logísticos para o fazer. De resto, também não quero viver com a ideia de que as coisas que fui juntando estão condenadas a fenecer porque não são vistas. Foi por isso que desenvolvi contactos com pessoas relacionadas com a Fundação EDP, e o resultado é este.

Mais uma vez temos aqui uma iniciativa que nos alegra. Já não é minha a coleção, fica à guarda deles, mas, acima de tudo, é da cidade, do país, da comunidade. Porque está à vista, mostra-se, e as pessoas podem ver estas obras dos anos 1990 e perceber com uma clareza ainda maior o que é que a produção artística de hoje é face a essa. E a verdade é que já se nota que o que se faz hoje é relativamente diferente daquilo que foi feito naquela época.

Quanto às peças, não tenho a impressão de que estas obras tenham envelhecido. Há muito tempo que não as vejo todas. Vi estas 42, que são as mesmas que estiveram em exposição no Porto. A sensação que tive foi de que mantinham uma plenitude e uma intensidade que me recordou aquilo que vi quando as encontrei pela primeira vez. O que faz pensar que a questão da escolha das obras que se adquirem e juntam numa coleção tem que partir de um olhar forte, de uma visão interior. Um olhar que não seja pautado pela normalidade, pela redução da paisagem, um olhar que, acima de tudo, tenha uma inequívoca vontade de procurar o estranho, aquilo que fica para lá do que é aceite. São essas obras que trazem essa espécie de chama, no seu corpo e no pensamento que lhes é inerente. São essas que mais do que qualquer outras terão condições para perdurar. Orgulho-me de pensar que esta coleção é feita de obras que vão perdurar.