Uma biblioteca digna dos Papas

Fundada no século XV mas com origens muito mais recuadas, a biblioteca que o padre Tolentino Mendonça vai dirigir acumulou ao longo do tempo riquezas incalculáveis. Hoje tem mais de 1,6 milhões de livros impressos, 150 mil manuscritos e 300 mil moedas e obras de arte.

Consta que Calisto III, de seu nome de batismo Alonso de Borja (apelido depois italianizado para Bórgia) e pontífice máximo entre 1455 e 1458, ao visitar a Biblioteca do Vaticano terá comentado: «Então é assim que são esbanjados os bens da Igreja de Deus».

O seu antecessor, o Papa bibliófilo Nicolau V, mandara na primeira metade do século XV estabelecer, organizar e enriquecer a coleção de códices da Santa Sé. Para isso, enviara emissários a regiões tão díspares quanto a Grécia e a Dinamarca, para adquirir ou, em alternativa, fazer cópias de manuscritos relacionados com a história, a vida e a doutrina da Igreja. Outros volumes e documentos que vieram engrossar estas coleções foram resgatados de Constantinopla, aquando da tomada da cidade pelos turcos em 1453.

Segundo o inventário feito pelo primeiro bibliotecário, Bartolomeo Pina, em 1481 a coleção do Vaticano possuía 3500 referências, o que, ainda que pareça uma ninharia aos olhos de hoje – sobretudo quando comparado com os atuais mais de 1,6 milhões de livros impressos, 150 mil manuscritos, 100 mil gravuras e 300 mil moedas e obras de arte – fazia dela de longe a maior biblioteca do Ocidente.

Embora oficialmente estabelecida em meados do século XV, as origens da Biblioteca Apostólica do Vaticano remontam a tempos muito mais recuados. Alguns situam-nas na época do Papa Hilário, no século V, podendo no entanto supor-se que já aí a Igreja de Roma possuía um importante fundo de textos e documentos.

 

Vandalismo e esplendor

Júlio II, o grande mecenas e amigo de Miguel Ângelo, mandaria, durante o seu pontificado, expandir o edifício para aumentar a capacidade de armazenamento. Mas este primeiro período áureo da biblioteca humanista teria um ponto final em 1527 com o Saque de Roma. Os soldados germânicos do imperador Carlos V aterrorizaram a população e vandalizaram a cidade, deixando marcas ainda hoje visíveis: sobre um dos famosos frescos de Rafael nas stanze, alguém grafitou: ‘Viva Lutero’. Também na biblioteca exerceram uma ação devastadora, mutilando, queimando e roubando manuscritos preciosos. Chegaram ao ponto de arrancar os selos de chumbo dos documentos oficiais para os fundirem para balas de canhão.

No final do século XVI, Sisto V encomendava a Domenico Fontana, um dos grandes arquitetos do barroco inicial, o projeto de uma nova ala para a biblioteca, que contrastava com a simplicidade do edifício inicial. As novas instalações revestiam-se de uma sumptuosidade nunca vista, com esplêndidos frescos a ornamentar as paredes e os tetos. Os livros estavam expostos em bancos de madeira, aos quais se encontravam presos por correntes.

Com o movimento de reação da Contra-reforma, porém, a biblioteca fechou-se ao exterior. Quando em 1580 o filósofo francês Michel de Montaigne visita Roma, ainda obtém permissão para aceder aos belos manuscritos do Vaticano. Mas nos anos seguintes, com uma crescente cultura de proibição e censura de textos no seio da Igreja, a biblioteca deixa de estar acessível aos olhares curiosos dos leigos.

Ainda assim, as suas coleções não deixam de se enriquecer, recebendo as bibliotecas de figuras como o príncipe eleitor Maximiliano da Baviera, os duques de Urbino ou a rainha Cristina da Suécia, a cuja corte acorriam os maiores intelectuais da época, entre os quais o padre António Vieira. Com tantos tesouros inacessíveis, a Biblioteca Apostólica começou, cada vez mais, a ser vista pelos eruditos e bibliófilos como uma espécie de paraíso proibido.

 

Arquivos pouco secretos

Complementarmente com a biblioteca, o Vaticano possui uma outra secção documental: o Archivum Secretum Vaticanum. O adjetivo ‘secreto’ é hoje sinónimo de ‘proibido’ ou de ‘oculto’, o que só parcialmente é verdade para estes arquivos. Em latim, a palavra pode ser traduzida por ‘privado’, o que significa que o acervo se destinava ao uso do Papa em funções.

Criados em 1610 como uma espécie de cofre-forte da Fé católica, os Arquivos Secretos contêm 85 quilómetros de estantes repletas de papéis: estima-se que no total ascendam a qualquer coisa como dois milhões de documentos, dos quais só 35 mil volumes estão catalogados.

Em 1980 Paulo VI deu autorização para a construção de um novo espaço subterrâneo, que é conhecido entre os seus visitantes habituais como ‘bunker’.

Desde o final do século XIX que os Arquivos Secretos deixaram de estar inacessíveis: em 1881 Leão XIII abriu-os ao exterior. Atualmente, todos os anos cerca de 1500 investigadores estudam e exploram os documentos. Alguns deles, porém, continuam longe de olhares indiscretos. O que tem alimentado teorias da conspiração, segundo as quais os Arquivos Secretos guardam efetivamente textos cuja divulgação seria muito incómoda para a Igreja Católica.