Sombrio e humano ao mesmo tempo, para Bergman não houve nunca contradição nisso. Coisa de génio, mais do que isso, como o descreveu Woody Allen um dia: «Provavelmente o maior artista de cinema, considerando todos os aspetos, desde a invenção do cinematógrafo». Por ocasião dos dez anos da morte do realizador sueco, Benjamin Ramm lembrava num texto publicado na página cultural da BBC como o tema primeiro na obra de Bergman não era a morte, como tantas vezes se repetiu, mas o amor. O amor que salva, com tudo o que de cliché houver nisso: «a possibilidade redentora do amor».
Da morte de Bergman, aos 89 anos, passaram-se quase 11. Do seu nascimento comemoram-se hoje, a 14 de julho, os 100. Pretexto para regressos por todos o mundo a um dos nomes maiores da História do cinema, e do teatro sueco ainda, antes disso. Com a efeméride a assinalar-se em ciclos programados por todo o mundo, a Criterion Collection anunciou o lançamento da maior coleção alguma vez editada em DVD com a obra do realizador sueco, com 39 títulos – de Crise (1946) a Saraband (2003) – acompanhado de um livro de ensaios de 248 páginas. Ingmar Bergman’s Cinema é lançado apenas a 20 de novembro mas está já disponível em pré-compra online, por 240 dólares (205 euros).
Por cá, depois dos ciclos que nos últimos anos devolveram a Lisboa e ao Porto os títulos mais significativos do prolífico realizador sueco – dezenas de longas, desde a década de 1940, intercaladas com outros tantos telefilmes, mais regulares à medida que se foi aproximando do fim da sua carreira – a Midas Filmes repõe em sala (Cinema Ideal, em Lisboa, Cinema Trindade, no Porto, e Teatro Aveirense, em Aveiro), a sua última obra, Saraband. Filme televisivo que filmou com a última tecnologia digital de alta definição, em 2003, de regresso às personagens de Cenas da Vida Conjugal, minissérie de seis episódios estreada em 1973 na televisão sueca. Ou seja, Marianne e Johan (os recorrentes Liv Ullmann e Erland Josephson) reencontrados quarenta anos depois, aos quais juntou Borje Ahlstedt e Julia Dufvenius para o que descreveria como «um concerto para uma orquestra sinfónica com quatro solistas». Pretexto para o rever em fim de carreira e de vida, mas também para uma viagem por alguns dos muitos títulos obrigatórios que o levaram até aí. A começar pelo primeiro: Crise.
1. Crise (1946)
Depois de assinar o seu primeiro argumento de cinema, para Tortura do Desejo (1944), de Alf Sjöberg, como discípulo de Victor Sjöström, mestre do cinema mudo sueco, há de se estrear Bergman na realização com Crise (1946). Um filme em que explora dois dos temas que se tornariam centrais na sua primeira fase: as tensões entre a juventude e a sociedade e entre homens e mulheres.
2. Mónica e o Desejo (1953)
É Harriet Andersson, uma das atrizes a que regressaria frequentemente nos seus filmes, a protagonista deste que fez dela estrela. Escrito para atriz numa altura em que os dois mantinham um relacionamento, Mónica e o Desejo deu que falar na estreia nos Estados Unidos, em 1955, dois anos depois da estreia, pelas cenas de nudez – o que se considerava nudez à época. Um dos primeiros grandes sucessos de Bergman, também o filme com que Woody Allen o descobriu. «O primeiro filme que vi de Bergman foi este porque havia um falatório sobre uma cena de nudez […] Fui ver e era um filme muito, muito interessante, à parte dessa cena absolutamente inofensiva. Pouco tempo depois, calhou ter visto o Sawdust and Tinsel [1953]. Fiquei colado ao assento com tudo aquilo. E pensei para mim: ‘quem é este tipo?’.»
3. O Sétimo Selo (1957)
Em 1955, Sorrisos de Uma Noite de Verão seria muito mais que um filme premiado em Cannes. Seria o tiro de partida para o que viria depois, com os títulos estreados em 1957, ano seminal para o cineasta sueco. Primeiro com O Sétimo Selo. Um dos grandes clássicos do cinema de todos os tempos, com um dos mais marcantes quadros do cinema, ou de toda a arte do século XX: um homem a jogar xadrez com a própria morte. Num filme de época, a recuar ao tempo da peste negra, na Dinamarca. O título alude a uma passagem do livro do Apocalipse, citado no início e no final, questionando a existência de Deus. Pergunta para a qual este cavaleiro procura resposta, recorrente na filmografia do cineasta, filho de um pastor luterano. As questões da morte e da religião, da fé e da solidão como temas recorrentes para o cineasta que ficaria conhecido como «o ateu protestante».
4. Morangos Silvestres (1957)
Um velho assiste ao seu próprio funeral, confrontado com o vazio da sua existência na fase final da sua vida. A morte que ameaça, de novo, desta vez o professor de medicina que tem encontro marcado na universidade para a comemoração dos 50 anos da sua carreira e que, ao longo da viagem, se cruza com uma série de personagens que trarão de volta as memórias da sua vida. Depois de O Sétimo Selo, 1957 só ficaria completo com a estreia de Morangos Silvestres. Vencedor do Urso de Ouro em Berlim em 1958, e nos anos seguintes distinguido com um Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e nomeado para o Óscar de melhor argumento. Em 1970, Lágrimas e Suspiros, seria distinguido com o Óscar de melhor fotografia, para Sven Nykvist, colaborador regular de Bergman e considerado um dos melhores diretores de fotografia de sempre.
5. Persona (1966)
Persona (identidade assumida, personagem), título que deu A Máscara, em português. E será Persona a derradeira metáfora para todas as máscaras que o ser humano usa ao longo da sua vida ao ponto de se perder de si próprio, a partir da história de uma atriz, Elisabet Vogler (Liv Ullmann), que deixa de conseguir falar, num retiro com uma enfermeira, Alma (Bibi Andersson). Duas das atrizes recorrentes de Bergman para um filme tão fundamental que sobre ele o historiador de cinema e televisão Thomas Elsaesser escreveu ter sido para os críticos e académicos o mesmo que a subida ao Evereste para um alpinista: «O derradeiro desafio profissional. Além de Citizen Kane, provavelmente o filme sobre o qual mais se escreveu.»
6. Fanny e Alexander (1982)
Um novo filme de época, agora passado no início do século XX, com a história de duas crianças, Fanny e Alexander, obrigadas a deixar a casa onde são felizes quando a mãe se muda para a casa da família do padrasto. Mais do que austera, severa, numa quase-prisão. Uma grande coprodução entre Suécia, França e Alemanha para a qual Bergman partiu com a decisão de que seria a sua última longa-metragem. E foi, mas apenas no cinema. Depois de Fanny e Alexander, vencedor de quatro Óscares, viriam ainda dez telefilmes, até ao último, em 2003, agora em sala: Saraband.