O debate sobre o Estado da Nação foi um misto de promessas de fidelidade, contrapondo com a exigência da esquerda sobre uma clarificação do líder do PS relativamente ao futuro da ‘geringonça’. O PSD, mais articulado, acusou os parceiros do Governo de serem «um escorpião, que não resiste a fazer mal».
O primeiro-ministro, António Costa, começou por dizer que o facto de haver eleições legislativas no horizonte não o faz «mudar de rumo», mas os parceiros de esquerda exigiram-lhe mais. Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, exigiu uma clarificação sobre o futuro do acordo: «Reclamar aumento de pensões para o próximo OE é eleitoralista? O aumento de salários é eleitoralista? Reclamar respeito pelos direitos dos trabalhadores é eleitoralista? É eleitoralista o caminho que fizemos até aqui com a geringonça?».
O chefe do Governo procurou responder à altura: «Estamos com a ‘geringonça’ no coração, mas também na nossa cabeça. Estamos com coração, mas também com humildade e sem duplicidade». A frase foi repetida duas vezes para que a mensagem passasse. Costa dividiu-se entre juras de fidelidade ao Bloco e ao PCP: «Enquanto houver caminho para percorrer, devemos percorrê-lo». Desta vez, a resposta não foi dirigida a Jerónimo de Sousa, líder comunista.
Mas o caminho do Governo não será feito a todo o custo. Para António Costa, «nem sempre se pode avançar a grande velocidade».
Não se podem dar «passos maiores que as pernas». A frase foi do ministro Siza-Vieira, adjunto de António Costa, que substituiu Augusto Santos Silva no encerramento do debate. Uma estreia que não terá sido fruto do acaso. O ministro dos Negócios Estrangeiros protagonizou a polémica da semana ao defender que os acordos à esquerda devem ser repensados para incluir a política externa e europeia. A ideia representaria o fim dos acordos à esquerda face às divergências que prevalecem entre os parceiros do Governo nesta matéria.
Mas o fantasma de um ‘bloco central’ permaneceu no debate sobre o Estado da Nação, com a deputada Mariana Mortágua a lembrar a Costa que o PS procurou outros parceiros para negociar «bem longe da maioria».
Na senda de afastar o fantasma de um ‘bloco central’, Siza Vieira ensaiou o discurso de uma eventual reedição dos acordos à esquerda: «Podemos renovar a nossa ambição e encontrar novo objetivos».
O PCP escolheu o Serviço Nacional de Saúde como um dos temas mais importantes e obrigou o primeiro-ministro a reconhecer as dificuldades. Os comunistas acusaram o Executivo de ter em curso «uma poderosa operação contra o SNS», exigindo investimento no setor, com a contratação de mais pessoal.
Jerónimo de Sousa levou ainda o caderno de encargos do Orçamento de 2019 a debate. A lista ficou registada no discurso de encerramento: Revogação das normas gravosas da legislação laboral, aumentos na Função Pública e setor privado, subida do salário mínimo nacional para 650 euros, direito à reforma sem penalizações e a reposição do IVA na eletricidade e no gás nos 6 por cento. O líder comunista exigiu respostas claras a António Costa, porque nem todos são iguais: «Só em 2017 a EDP deveria ter pago cerca de 400 milhões de euros em impostos, mas pagou apenas 10 milhões. Diz-se que não há dinheiro para tudo, mas sobra sempre muito dinheiro para poucos». Para Jerónimo de Sousa, enquanto houver convergência entre o PCP e o PS a vida «dos portugueses e dos trabalhadores melhoram».
Costa respondeu: «O senhor pode escolher a parte boa da lua e mostrar. Eu assumo a lua por inteiro». A resposta do primeiro-ministro não foi alheia ao discurso mais distanciado dos comunistas, que colocaram a frase mais repetida nos comunicados do comité central, a da defesa de uma «política patriótica e de esquerda que liberte o país do Euro das imposições» da União Europeia.
Ainda no capítulo da Europa, a coordenadora do BE, Catarina Martins, defendeu que é necessário avançar com o relatório assinado entre o BE e o PS sobre a restruturação da dívida portuguesa e colocou Costa numa posição difícil. Exigiu que o primeiro-ministro se pronunciasse sobre o tratado orçamental, muito contestado pelo BE e pelo PCP. Costa reconheceu que também não concorda com o Tratado Orçamental, mas qualquer mudança terá de ser feita mais à frente. Além disso, existem variáveis que o país não controla – como a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos.
Negrão aplaudido de pé e Cristas concorrente
A estratégia do PS para garantir o apoio da esquerda foi selada pelo líder parlamentar, Carlos César, ao defender que a meta «é fazer da esquerda um dos motores do Portugal vencedor». Foi a frase final do discurso que não estava escrita na versão inicial.
O PSD, pela voz de Adão Silva, procurou atacar o PS com a acusação do «desmantelamento» do SNS. Mas foi o discurso do líder da bancada, Fernando Negrão, que galvanizou os sociais-democratas. Negrão acusou a esquerda de ser «um escorpião que não resiste a fazer mal» e de o Governo assentar numa solução esgotada. « Este Governo não tem matriz reformista, porque a génese deste Governo e desta maioria nunca foi fazer, mas sim desfazer».
O discurso foi aplaudido de pé e Negrão mereceu um cumprimento do seu antecessor– e crítico de Rui Rio – Hugo Soares.
O CDS também atacou as falhas na Saúde e a líder do CDS, Assunção Cristas, surgiu como concorrente ao PSD ao colocar-se no papel de «uma alternativa que não sonha com um bloco central de interesses, o eterno Tratado de Tordesilhas da política portuguesa».