Na sexta-feira em Washington não se falava noutra coisa. Susan Glasser, a jornalista da New Yorker que cobre os assuntos da Casa Branca, escreveu um artigo para o site da revista onde fala da «morte da política externa americana» depois daquilo que se passou na cimeira entre Donald Trump e Vladimir Putin, em Helsínquia.
«Tudo parece incompreensível para qualquer um com uma vaga perceção de como os Estados Unidos conduziram a sua política externa durante gerações», escreve Susan Glasser, que cita um antigo alto cargo do Conselho de Segurança Nacional: «Isto não é forma de governar uma superpotência».
Mais de ano e meio da Presidência de Donald Trump, quando quase todos pareciam habituados à forma sui generis como o Presidente dos Estados Unidos gere a Casa Branca, veio a cimeira Trump-Putin na Finlândia e todos perceberam que ainda não tinham visto tudo.
Observar um chefe de Estado norte-americano a alinhar em público com o Presidente de outra nação – ainda para mais da Rússia – contra os seus próprios serviços de inteligência, vê-lo admitir como boa ideia que um ex-embaixador e outros membros da sua diplomacia pudessem ser interrogados por agentes de uma potência estrangeira, são assuntos suficientemente graves para alguém como o ex-diretor da CIA John Brennan ter considerado que se tratava de «traição».
É certo que Trump depois deu o dito por não dito, afirmando exatamente o contrário do que antes dissera (acusando Putin de interferir nas eleições presidenciais de 2016 e garantindo que nenhum diplomata americano viajará para a Rússia para interrogatório). O maior dos problemas agora nem sequer é o que Trump disse, mas o que o chefe de Estado não contou.
Da reunião a sós com o Presidente russo, Trump não deu conta a ninguém, além de alguns íntimos. Na quinta-feira, a Casa Branca apanhou toda a gente de surpresa ao anunciar que Vladimir Putin visitará os EUA no outono. O diretor da Inteligência Nacional, Dan Coats, foi gravado em vídeo, no Aspen Security Forum, a ouvir pela primeira vez a notícia pela jornalista que o ia entrevistar: «O quê?!», perguntou, antes de acrescentar, «vai ser qualquer coisa especial!». Coats já afirmou publicamente que nada sabe: «Não sei o que se passou naquela reunião».
Sem o briefing do Presidente sobre o que aconteceu no encontro com o chefe de Estado russo, o Departamento de Estado, os serviços secretos, toda a Administração anda a tentar perceber qual é realmente a política da Casa Branca em relação à Rússia: amigo, inimigo, concorrente, aliado? E a Rússia tem aproveitado a vantagem para divulgar por seu lado que os dois estadistas chegaram a «acordos verbais importantes» na reunião à porta fechada na capital finlandesa, como adiantou na quarta-feira o embaixador da Rússia nos EUA, Anatoly Antonov. Na preservação do novo START (o Tratado de Redução de Armas Estratégicas) e do INF (o tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio) e em matéria de cooperação na Síria, onde os dois países têm estado em diferentes lados da barricada.
Se é certo isso ou se é apenas a Rússia a aproveitar o momento para uma manobra de contrainformação, não se sabe, porque os responsáveis da política externa norte-americana em geral e aqueles que lidam diretamente com a Rússia em particular não fazem ideia do que realmente aconteceu à porta fechada em Helsínquia.
«A Cimeira com a Rússia foi um grande sucesso», escreveu no Twitter o Presidente dos EUA na quinta-feira, «aguardo com entusiasmo o nosso segundo encontro para que possamos começar a implementar algumas das muitas coisas de que falámos, incluindo travar o terrorismo, segurança para Israel, nuclear…».
Que decisões são essas? Aparentemente, ninguém na administração sabe. «Não recebemos nenhuma diretiva específica até agora», afirmou na quinta-feira o general Joseph Votel, chefe do Comando Central dos EUA, responsável pelas forças militares envolvidas em operações no estrangeiro.
«Há uma divisão entre o Governo americano e o seu Presidente sobre a Rússia; o processo de tomada de decisões, ou mesmo de comunicação, desintegrou-se; e a sua capacidade para liderar uma aliança na Europa, cuja missão principal nos últimos anos tem sido contrariar e conter a renovada agressão russa, foi gravemente posta em causa», explica Susan Glasser.
A verdade é que no Departamento de Estado e no Departamento de Defesa dos EUA, bem como entre aqueles que têm sido os principais aliados norte-americanos no mundo, a política externa da Casa Branca causa confusão, por ninguém saber muito bem para onde vai.
Trump chama amigos e fala publicamente da sua admiração por Putin e pelo Presidente chinês, Xi Jinping, ao mesmo tempo que elege a União Europeia como principal «inimigo». Rasga tratados unilateralmente, entra numa guerra comercial, faz afirmações e depois volta atrás, aproveitando para atacar os media por divulgarem fake news quando estes se limitam a reproduzir as suas declarações.
Congressistas e senadores democratas tentaram que fosse exigido ao Departamento de Estado que entregasse as anotações do tradutor oficial de Trump na reunião com Putin ou obrigá-lo a testemunhar no Congresso, no entanto, a maioria republicana impediu qualquer ação nesse sentido. Segundo a AP, membros da Casa Branca e do Departamento de Estado estão preparados para lutar contra essa possibilidade, por considerarem que se trata de uma violação da autoridade executiva do Presidente.
«Isto é uma democracia. Se o nosso Presidente estabelece acordos com um dos nossos adversários – se não mesmo o maior –, o seu Governo tem de saber disso, tal como o povo americano», disse o líder do Partido Democrata no Senado, Chuck Schumer.
Ao contrário de todas as outras Normalmente o que acontece em todas as cimeiras, nomeadamente nestas particularmente importantes, como a de Singapura com o líder norte-coreano, Kim Jong-un, ou agora com o Presidente da Rússia, é que as negociações prévias duram semanas, meses. Tudo é meticulosamente programado e planeado, de modo a estudar o que as mudanças poderão conseguir no futuro. Os temas na agenda, os tópicos das conversas, aquilo que se pretende e mesmo a declaração final é preparada com antecipação. A diplomacia não gosta de deixar nada ao acaso e, na maioria das vezes, a assinatura dos chefes de Estado nos documentos é meramente protocolar, pois tudo foi discutido com anterioridade. Isto também permite à máquina diplomática do país comunicar as novas diretivas e afinar a forma de lidar com elas.
Com Trump nada acontece assim. O Presidente acredita que consegue resolver problemas diplomáticos que outros chefes de Estado antes de si não resolveram, prefere o improviso à preparação demorada e aposta tudo nos seus dotes de negociador. Parece ser o único. A cimeira de Singapura dá sinais de não conseguir mudar nada na Coreia do Norte, ao mesmo tempo que Kim Jong-un ganhou estatuto de estadista. A de Helsínquia foi um desastre. Já lhe chamam a «Cimeira da Rendição».
Charles M. Blow escrevia ontem no New York Times que nunca se pensou que pudesse haver um dia em que «a América poderia pôr em causa a lealdade do seu próprio Presidente» e foi isso mesmo que aconteceu esta semana depois do encontro com o chefe de Estado russo.
O desempenho de Trump na Finlândia foi tão questionável, que nem sequer a Fox News, o canal de televisão que o Presidente dos EUA prefere acima de todos os outros e que serve de fonte para muitos dos seus tweets, teve capacidade para sair em defesa do líder da Casa Branca.
O comportamento de Trump foi uma «exibição tão desleal e traidora que nos deixa espantados», definiu Charles Blow. Robert Mueller tinha acusado 12 membros dos serviços secretos russos de interferência nas eleições presidenciais dos EUA e Trump não só decidiu manter o encontro agendado com Putin, como ainda por cima preferiu dizer publicamente que preferia as explicações do Presidente russo, às informações dos seus serviços de inteligência. Para John Roberts, da Fox News, Trump «atirou os EUA para debaixo do comboio». «Aquilo que me preocupa», disse Neil Cavuto, falando diretamente para o Presidente, «é que parece que só diz coisas boas sobre os nossos inimigos e que se lixem os nossos amigos».